Por Tanya Velazquez (*)
O jornalista transgênero Câe Vasconcelos trabalha para amplificar as vozes da comunidade trans no Brasil – o país com o maior número de registros de pessoas trans assassinadas no mundo.
Entre outubro de 2020 e setembro de 2021, foram registrados 375 assassinatos de pessoas trans no mundo; só o Brasil foi responsável por 125 dessas mortes.
Embora as gerações mais jovens do país tenham progredido em direção à aceitação social e igualdade para as pessoas trans, ainda há muito conservadorismo na cultura de sua sociedade, disse Vasconcelos à LatAm Journalism Review (LJR). Em 2019, o Supremo Tribunal Federal do Brasil aprovou a criminalização da transfobia, mas a lei não é aplicada com rigor.
“Parte desse ódio vem de nossos parlamentares, principalmente do governo federal de Jair Bolsonaro”, disse Vasconcelos.
Vasconcelos, 30 anos, é jornalista e repórter especializado em cobertura LGBTQ+. Desde dezembro de 2019, Vasconcelos se identifica abertamente como homem trans em sua vida profissional e pessoal.
Ele trabalhou em vários meios de notícias, como a Ponte Jornalismo e a ESPN. Embora não tenha enfrentado nenhuma discriminação de seus empregadores até agora, ele disse que ainda vive em constante medo em sua vida cotidiana.
Ao mesmo tempo em que a violência contra jornalistas aumenta em toda a América Latina, pessoas trans são frequentemente agredidas e assassinadas no Brasil.
O Brasil vem liderando o ranking global de assassinatos de pessoas trans nos últimos 13 anos. Segundo o Pulitzer Center, pelo menos 4.402 pessoas trans foram assassinadas entre janeiro de 2008 e setembro de 2021 em todo o mundo.
Vasconcelos reconhece o perigo de ser um jornalista trans no Brasil, mas disse que foi a vontade de ajudar a comunidade trans que o levou a seguir carreira no jornalismo.
“Era a necessidade de amplificar as vozes da população marginalizada, que vem de onde eu vim, e que nunca foi ouvida pela imprensa da forma correta. Estou buscando dar visibilidade e defender os direitos humanos acima de tudo”, disse.
Vasconcelos disse que atualmente há poucos jornalistas no Brasil que se identificam abertamente como trans. Essa falta de jornalistas trans só alimentou a sub-representação dessa comunidade no noticiário brasileiro. Quando há representação de pessoas trans nas notícias, geralmente é um retrato negativo, disse ele.
“Quando a imprensa noticia algo é sempre no sentido de morte e violência, raramente vemos histórias positivas sobre nossas lutas”, disse Vasconcelos. “Sou um dos poucos jornalistas que aborda outros temas; positivo, de vida e avanços.”
A maioria dos atos discriminatórios contra pessoas trans no Brasil não são atos de agressão física, mas micro agressões psicológicas, disse Vasconcelos. Desde ter seu nome ou pronomes desrespeitados até não poder usar um banheiro público ou ter uma consulta médica negada, ele disse que essas ações violentas são “normais” no Brasil.
No país, foram registrados 1.276 crimes motivados por LGBTQ-fobia em 2019. 1.148 desses crimes foram delitos não físicos, como difamação, calúnia ou ameaças, e os 237 restantes foram atos de agressão física.
Mas um dos maiores medos de Vasconcelos – e uma ocorrência frequente que jornalistas trans e muitas outras pessoas trans enfrentam – é perder o emprego por ser sincero sobre sua identidade.
“Tenho colegas que já perderam o emprego por pedirem para usar seu nome social em um crachá”, disse ele. “Um dos meus maiores medos era perder o emprego por ser quem sou, algo muito comum aqui no Brasil.”
Um nome social no Brasil é aquele adotado por indivíduos que sentem que o nome representa melhor sua identidade.
Danielle Villasana, que é natural dos Estados Unidos e vive em Istambul, fez vários trabalhos na América Latina, onde se concentrou durante muito tempo em comunidades de mulheres trans na região.
Villasana disse que não fala em nome da comunidade trans, mas ao fotografar mulheres trans em suas comunidades, ela disse que testemunhou vários casos de micro agressões de pessoas que passaram por suas sessões de fotos. Ela disse que a maior parte das mulheres trans que ela fotografou citaram o trabalho sexual como sua única opção de trabalho devido à discriminação e à transfobia.
Apenas 4% da população trans no Brasil tem empregos formais com possibilidade de promoção e progressão na carreira, segundo dados registrados pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) em 2020. Além disso, 90% da população trans e queer tem a prostituição como principal renda.
A prostituição só aumenta a vulnerabilidade das pessoas trans a atos de violência, disse Villasana. A expectativa de vida das mulheres trans está entre 35 e 41 anos – aproximadamente metade da expectativa de vida da população geral do mundo, de acordo com a Warner Media. Uma vez que elas trabalham nesses empregos, é difícil para elas subir na escala socioeconômica do país, disse ela à LJR.
“É o fato de que elas só conseguem encontrar esse emprego. O trabalho sexual as deixa à mercê de tantas vulnerabilidades, violência, doenças e instabilidade econômica”, disse Villasana. “Não há espaço para mobilidade ascendente.”
A raiz da transfobia está nos valores conservadores e cisgênero que estão integrados nos governos do Brasil e de outros países latino-americanos, disse Donna DeCesare, professora associada da Universidade do Texas em Austin e ex-jornalista na América Latina. Ela também testemunhou em primeira mão a violência transfóbica que existe em países como o Brasil.
“Muitos governos na América Latina são muito repressivos e retrógrados”, disse DeCesare à LJR.
Bolsonaro é conhecido por ter feito declarações transfóbicas sobre pessoas trans ao vivo na TV, durante entrevistas e em seu Twitter, tanto antes de sua eleição como presidente quanto agora que está no cargo.
A ideologia de Bolsonaro influenciou algumas das políticas e ações federais do Brasil. Bolsonaro é uma figura reacionária e conscientemente LGBTQfóbica, disse James Green, professor de história do Brasil na Brown University. Ele morou no Brasil por seis anos e mantém-se atualizado sobre a política do país desde 1973.
“O governo, por exemplo, não financiou filmes que tratam de questões LGBTQ, incluindo questões trans. O governo também apoiou o fechamento de uma exposição de arte que incluía pessoas trans”, disse Green à LJR.
Jornalistas trans como Vasconcelos precisam primeiro superar os preconceitos da sociedade brasileira para conseguir um emprego no jornalismo. Depois de obter sucesso na carreira, os jornalistas podem usar sua plataforma para se manifestar contra os mesmos preconceitos que enfrentaram.
Nos cinco anos de carreira de Vasconcelos, ele disse que ainda não descobriu nenhuma organização jornalística específica para pessoas trans. O próprio Vasconcelos está trabalhando para criar mais apoio a jornalistas trans no Brasil e tornar os temas relacionados à transgeneridade mais difundidos no noticiário. Ele disse que planeja lançar a primeira agência de jornalismo feita apenas por pessoas trans no Brasil no final do ano.
“A ideia não é apenas cobrir os temas que fazem parte do nosso cotidiano, mas também proteger outros jornalistas, para que não sofram transfobia nas redações”, disse Vasconcelos.
O jovem jornalista se mantém esperançoso em relação à comunidade trans e ao seu futuro. Vasconcelos vislumbra uma sociedade mais receptiva e igualitária no Brasil e trabalha todos os dias para esse objetivo.
“Meu sonho, e é para isso que trabalho, é que o Brasil deixe de ser o país que mais mata pessoas trans”, disse. “Que possamos ver cada vez mais pessoas trans na televisão, de jornais a novelas e filmes. Que nossas crianças trans consigam crescer em um país menos violento, com carinho em casa e direito de acesso à educação, saúde e sociedade em geral.”
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*Esta reportagem foi realizada como um trabalho da disciplina “Jornalismo e Liberdade de Imprensa na América Latina”, na Escola de Jornalismo e Mídia da Universidade do Texas em Austin.
Tanya Velazquez é uma estudante de graduação de primeira geração na Universidade do Texas em Austin, cursando um Bacharelado em Jornalismo e Estudos Latino-Americanos, juntamente com certificações em Espanhol e em Direitos Humanos e Justiça Social. Após se graduar, ela espera ser uma repórter de TV/correspondente estrangeira cobrindo assuntos relevantes em toda a América Latina.