Esta é a primeira reportagem de uma série sobre a investigação e julgamento de casos de violência contra jornalistas na América Latina*.
Especialistas afirmam que os ataques contra jornalistas na América Latina aumentaram nos últimos anos graças à impunidade. A falta de processo e punição para aqueles que ameaçam, prejudicam ou matam jornalistas permitiu mais agressores, que imaginam que podem escapar impunes.
A UNESCO estimou que 78% dos assassinatos de jornalistas entre 2006 e 2019 na América Latina ficaram impunes. Ou seja, três em cada quatro casos não foram processados, às vezes nem resolvidos.
Mas, embora o assassinato seja a forma mais extrema de ataque a um jornalista, outros tipos de agressão também ficam impunes: assédio, ameaças, hackeamento. Quando as autoridades não agem contra os agressores, eles são favorecidos.
Examinamos as medidas tomadas pelos jornalistas para evitar ataques aos próprios jornalistas, bem como os esforços dos governos para protegê-los. Mas há um terceiro aspecto que é crucial para reduzir a frequência das agressões. Trata-se do julgamento dos casos.
Nas últimas duas décadas, vários países latino-americanos criaram escritórios especiais para processar crimes contra jornalistas ou liberdade de expressão em geral.
Algumas dessas instituições são anteriores à criação de mecanismos de proteção, que é outro eixo das estratégias estatais para prevenir ataques contra jornalistas. Em alguns países, as procuradorias especiais foram reformadas ou renomeadas devido a resultados iniciais insatisfatórios.
No entanto, a situação não é animadora. Ricardo Trotti, diretor da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), disse à LatAm Journalism Review (LJR) que, depois de duas décadas promovendo a criação de instituições dedicadas à proteção de jornalistas, "não atingimos as metas que havíamos estabelecido para nós mesmos, para uma verdadeira administração de justiça que combata a impunidade e reduza a violência”.
A SIP é o maior grupo de organizações jornalísticas da América Latina e o primeiro a promover a criação de promotorias especiais. De acordo com seus registros, os seguintes países estabeleceram escritórios para processar ou investigar ataques contra jornalistas:
Colômbia: Em 2002, a Unidade Nacional de Direitos Humanos criou uma subunidade para investigar crimes contra jornalistas, mas não há promotor especial dentro da Procuradoria Geral da República.
Guatemala: Em 2001, foi criada uma Promotoria Especial para Jornalistas e Sindicatos para investigar, processar e prevenir ameaças e ataques. No entanto, em 2019, o governo dividiu o gabinete em dois, com um procurador para crimes contra jornalistas e outro para crimes contra sindicatos e trabalhadores do sistema de justiça.
Honduras: Em 2018, foi criada a Procuradoria Especial para a Proteção de Defensores de Direitos Humanos, Jornalistas, Comunicadores Sociais e Operadores de Justiça (Feproddhh), com o mandato de proteger quem trabalha para promover os direitos humanos e a liberdade de expressão.
México: Em 2006, foi criada a Promotoria Especial para a Atenção aos Crimes Cometidos contra Jornalistas (FEADP) dentro da Procuradoria Geral da República. Quatro anos depois, argumentando a falta de resultados, o escritório foi alterado para a Promotoria Especializada de Atendimento aos Crimes contra a Liberdade de Expressão (Feadle) com o poder de "federalizar" os casos, para que possa tirá-los dos promotores locais.
Peru: Em 2010, a Suprema Corte ordenou que o governo criasse um escritório especial para processar crimes contra jornalistas e ampliou a autoridade da Câmara Criminal Nacional e dos Tribunais Penais de Lima para atrair esses casos. Esses tribunais têm poderes para admitir casos de assassinato, agressão, sequestro e extorsão contra jornalistas.
É evidente que não existe um modelo unificado para a criação de uma promotoria para investigar e julgar crimes contra jornalistas. Alguns países têm promotores especiais, enquanto outros têm unidades de investigação. Essas instituições foram criadas por reformas legais ou, como no Peru, pela Suprema Corte. Alguns promotores especiais também ouvem casos contra outros atores, como defensores de direitos humanos, enquanto outros se limitam a jornalistas.
Segundo Pedro Vaca, Relator Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), essa é uma das razões pelas quais é difícil avaliar os resultados desses esforços.
“O fato de haver promotores especiais em países com violência contra jornalistas é um alerta importante da política criminal desses Estados. Mas há uma diferença significativa entre o anúncio da criação de uma promotoria, seu funcionamento e sua eficácia”, disse Vaca à LJR.
“Há pouca informação sobre a eficácia, especialmente porque há uma diferença significativa entre os modelos ou as estruturas que foram aplicadas: promotores especiais, unidades de investigação, unidades dentro de unidades. As comparações são difíceis”, acrescentou.
Outro fator é a falta de informação. Alguns desses escritórios não possuem sites ou informações de contato publicamente disponíveis. Em outros casos, os jornalistas nem sequer têm conhecimento da criação destes gabinetes ou de sua implementação. Ou eles sabem de sua existência, mas não confiam neles.
A Colômbia é um caso, diz Raissa Carrillo, coordenadora de proteção e defesa jurídica da Fundação para a Liberdade de Imprensa (FLIP).
“Os poucos jornalistas que sabem que têm esses recursos disponíveis não querem ir até eles”, disse à LJR. "Há uma falta de confiança nos promotores que reflete a da Unidade Nacional de Proteção."
Carrillo disse que a Colômbia tem uma taxa de impunidade de 76% nos homicídios de jornalistas, e apenas três das dezenas de ameaças relatadas resultaram em uma sentença contra os autores.
“Não há nenhum benefício em ir às autoridades”, afirmou.
Comentando a resolução da Suprema Corte do Peru que ordenou a criação de um escritório especial, Zuliana Lainez, da Associação Peruana de Jornalistas (ANP), disse à LJR que o caso tem mais de uma década, mas a ordem nunca foi aplicada. Em vez disso, os casos de crimes contra jornalistas seguem os canais regulares de juízes especializados em direitos humanos.
“Não vemos que uma função especial tenha sido implementada para atrair esses casos. Este é um anúncio de uma década atrás, mas não ouvimos falar de nenhuma medida específica”, disse Lainez.
A SIP verificou a criação desses escritórios, mas apenas na medida em que os governos relatam o cumprimento das promessas de criar instituições para a proteção de jornalistas. O acompanhamento da implementação é difícil, segundo Trotti, que disse que há vários motivos para estar desanimado com os resultados.
“A falta de consistência nas políticas públicas é uma delas. Os governos adotam políticas para evitar o problema, mas não são consideradas como políticas de Estado, então os próximos governos as deixam cair no esquecimento. Antes de cada governo temos que começar de novo."
Outros fatores, segundo Trotti: “Muitos Estados são defensivos e resistentes em aceitar culpas ou irregularidades nos processos judiciais. Em muitos casos, os governos anteriores são responsabilizados, ou seja, não são reconhecidos como casos de Estado; além do fato de que muitos funcionários desconhecem suas funções e a jurisprudência interamericana existente sobre liberdade de expressão e violência contra jornalistas”.
E há a perene falta de recursos nos sistemas de proteção dos jornalistas. "Ainda estamos pedindo aos governos que forneçam os recursos necessários — profissionais e financeiros — para serem eficientes".
A LJR tentou entrar em contato com a Procuradoria Geral da Colômbia e o coordenador de promotores criminais no Peru para comentar, mas não recebeu uma resposta até o momento.
Em 2020, a UNESCO publicou as “Diretrizes para promotores em casos de crimes contra jornalistas”, com recomendações para investigar e levar casos ao tribunal.
A UNESCO deixa claro que os jornalistas não devem ter um status especial, “todos os cidadãos são iguais perante a lei”. Mas reconhece que é preciso “garantir o direito de exercer atividades relacionadas ao jornalismo em condições que permitam a efetivação dos direitos fundamentais”.
Um elemento crucial, de acordo com as diretrizes, é como determinar se uma vítima foi atacada especificamente por ser jornalista.
Por exemplo, na Colômbia, as investigações de ataques contra jornalistas não têm uma boa análise de contexto, “os casos acontecem mas não estão associados à profissão jornalística”, diz Carrillo.
De acordo com Vaca, as metodologias para determinar se um crime foi motivado por trabalho jornalístico são importantes para avaliar os resultados de um Ministério Público ou unidade especial.
“O próximo passo na construção dessas entidades é determinar quais informações são necessárias para monitorar sua eficácia, como serão avaliadas e seus mecanismos de responsabilização”, disse Vaca. "Essas são coisas necessárias após a criação e operação de promotorias especiais."
Trotti disse que há duas razões para ter esperança: trabalhar no Sistema Interamericano permite que as vítimas continuem buscando justiça depois de serem ignoradas pelas autoridades de seus países. E organizações como a SIP e outras estão constantemente denunciando e apresentando casos dentro deste Sistema para manter o tema na agenda pública.
Se, como aponta a UNESCO, evitar a impunidade dos ataques contra jornalistas é um elemento central da liberdade de imprensa, o julgamento desses crimes é um aspecto fundamental. A investigação imediata e o processo penal agem como um impedimento para potenciais infratores. Nesta série, examinaremos os esforços em três países que começaram com esse objetivo e avaliaremos seu nível de sucesso.
*Este é o décimo primeiro relatório de um projeto sobre segurança de jornalistas na América Latina e no Caribe. Este projeto da LatAm Journalism Review é financiado pelo Fundo Global de Defesa da Mídia, da UNESCO.
Leia outros artigos do projeto neste link.