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Justiça brasileira concede pensão à viúva de Vladimir Herzog 50 anos após o seu assassinato

Quase cinco décadas após o assassinato do jornalista Vladimir Herzog pela ditadura militar brasileira, a sua viúva, Clarice Herzog, hoje com 83 anos, receberá uma pensão do Estado como reparação econômica. Uma decisão da Justiça Federal determina o pagamento mensal vitalício de R$ 34.577,89 a Clarice. O caso reforça a luta de décadas por justiça e memória no Brasil, onde a impunidade dos crimes da ditadura ainda prossegue – mesmo no caso de Herzog, os indivíduos responsáveis pelo assassinato seguem sem responsabilização.

O assassinato de Herzog foi um dos casos mais emblemáticos da ditadura brasileira, e a forte reação da sociedade civil contra o crime contribuiu para o fim do regime sete anos depois. O caso já havia sido objeto de outras decisões judiciais, como a de 1978, histórica, quando a Justiça brasileira condenou a União pela prisão ilegal, tortura e morte do jornalista. Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Costa Rica, reforçou essa responsabilização, condenando o Brasil por não investigar e punir os responsáveis.

Em 1996, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos reconheceu oficialmente que Herzog foi assassinado, mas a sua família recusou a indenização oferecida, defendendo que o Estado deveria seguir investigando o crime. Segundo Ivo Herzog, o motivo para agora aceitarem a pensão está ligado ao estado de saúde de Clarice Herzog, que há alguns anos sofre com doença de Alzheimer e precisa de recursos para seus cuidados. 

“Minha mãe nunca quis fazer um processo com indenização financeira, porque ela se preocupava que seria muito fácil para o Estado então resolver o problema. Faria um cheque e o problema”, afirmou Ivo Herzog, filho de Clarice e Vladimir, à LatAm Journalism Review (LJR). “Para ela, a questão fundamental sempre foi provar que ele foi assassinado, e buscar os responsáveis pelo crime”. 

História de um jornalista

Vladimir Herzog, conhecido como Vlado, foi um jornalista, professor e cineasta. Nasceu na Croácia  — então parte da Iugoslávia —, em 1937, e sua família se estabeleceu no Brasil em 1942. Sua carreira no jornalismo começou em 1959, no jornal O Estado de S. Paulo. No início da década de 1960, casou-se com Clarice Herzog, com quem teve dois filhos, Ivo e André. Ao longo dos anos 1960 e 1970, trabalhou em diversos veículos, como o Serviço Brasileiro da BBC, em Londres, e a revista Visão. Também atuou como professor de jornalismo. 

Em 1975, foi nomeado diretor de jornalismo da TV Cultura, emissora pública pertencente ao Governo de São Paulo. Ele se tornou vítima de uma campanha contra a sua gestão levada a cabo na Assembleia Legislativa de São Paulo por deputados do partido de sustentação do regime militar, a Arena. No dia 24 de outubro daquele ano, agentes do Exército convocaram Vlado para prestar depoimento sobre ligações entre Vlado e o Partido Comunista Brasileiro, que atuava na ilegalidade durante o regime militar. 

Black-and-white photograph of journalist Vladimir Herzog sitting at his desk at TV Cultura on October 9, 1975. He holds a pen and looks at the camera with a serious expression. Papers are spread across the desk, and a typewriter is visible in the background. This image was taken just weeks before his assassination by Brazil’s military dictatorship.

Journalist Vladimir Herzog at his desk at TV Cultura on October 9, 1975, weeks before he was murdered by Brazil’s military dictatorship (Foto: CEDOC TV Cultura / Acervo Vladimir Herzog)

 

 

No dia seguinte, compareceu espontaneamente ao prédio do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, o DOI-CODI. Lá, ficou preso com mais dois jornalistas: George Duque Estrada e Rodolfo Konder. Em depoimento, Vlado negou qualquer ligação com o PCB. Depois disso, os outros dois jornalistas foram levados para um corredor, de onde puderam escutar uma ordem para que se trouxesse a máquina de choques elétricos. Para abafar o som da tortura, um rádio com som alto foi ligado e Vlado nunca mais foi visto com vida. 

Horas depois do assassinato, o Exército divulgou que Vladimir Herzog teria se enforcado com um cinto, e até uma foto do jornalista morto na cela do DOI-CODI chegou a ser divulgada. Em 2012, o autor da foto, Silvaldo Leung Vieira admitiu à Folha de S.Paulo que a imagem foi forjada, mais uma mentira contada pelos militares durante a ditadura

O assassinato de Vlado

A repercussão da morte de Herzog foi enorme,com a versão do governo de que Herzog se suicidou sendo considerada uma "mentira grotesca". A barbaridade do regime ditatorial ficava exposta. Começaram a eclodir manifestações populares em proporção que não se via desde 1968. Uma semana depois do assassinato, mais de 8 mil pessoas participaram de um culto ecumênico na Catedral da Sé, em São Paulo. 

Entre os presentes, estava uma pessoa até então despolitizada, que no entanto viria a se tornar um dos personagens centrais do caso: Márcio José de Moraes,que, três anos mais tarde, na condição de juiz, concedeu a sentença condenando o Estado brasileiro pelo crime.

“Eu era um alienado, não tinha interesse nesses assuntos. Na época, me falavam realmente que já havia perseguição política e tortura, e eu não acreditava”, afirmou Moraes à LJR. “Quando vi a manchete no jornal de que ele havia aparecido morto, foi uma decepção total. Pensei comigo: ‘Eu tô sendo um inocente útil’. Eu despertei politicamente depois daquilo’”.

Black-and-white photograph of Clarice Herzog and Cardinal Dom Paulo Evaristo Arns leaving the ecumenical service at São Paulo’s Sé Cathedral on October 31, 1975. Clarice, visibly emotional, walks alongside the archbishop, who played a key role in denouncing the crimes of Brazil’s military dictatorship. The service was held in memory of her husband, journalist Vladimir Herzog, murdered days earlier.

Clarice Herzog e o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns deixam o ato ecumênico realizado na Catedral da Sé, em São Paulo, em 31 de outubro de 1975, em memória do jornalista Vladimir Herzog, assassinado dias antes pela ditadura militar brasileira (Foto: Acervo Vladimir Herzog/Estadão Conteúdo)

 

 

Meses depois do assassinato, Clarice Herzog e os dois filhos ingressaram com uma ação na Justiça em São Paulo, em pleno regime militar, para obter a declaração da responsabilidade do Estado pela prisão ilegal, pelas torturas e pela morte do Vladimir. Segundo um dos advogados que atuou no caso, Samuel Mac Dowell Figueiredo, a família tinha duas possibilidades. Ou pleiteariam a responsabilização dos agentes militares perante o os próprios órgãos do Exército, “o que seria inútil”, ou iriam para o Judiciário, como de fato foram.

Clarice disse aos advogados que não queria pedir indenização porque não queria confundir seus objetivos e motivações. Ela queria uma ação que apenas pronunciasse a responsabilidade do Estado.

“Ela disse: ‘Minha ação é política. Eu tenho um objetivo político’”, afirmou Figueiredo à LJR. “E disse que a proposta deveria ser bastante pesada. Frontal contra o regime. E assim foi”.

Uma virada inesperada

O caso foi parar na mão do juiz Moraes de forma inusitada. O juiz que conduzia o processoestava prestes a se aposentar e tinha a sentença pronta. Marcou uma audiência para a leitura da decisão, mas o Ministério Público Federal conseguiu uma liminar impedindo-o de divulgá-la. Moraes, que era o juiz substituto, acabou se tornando o juiz do processo, e escreveu uma nova decisão.

Moraes, que em 1978 tinha 29 anos e estava na magistratura há pouco mais de dois, disse que o Judiciário brasileiro então vivia um clima de opressão, com os juízes mais antigos, nomeados e não concursados, tendo uma grande reserva em críticas ao governo ditatorial. No entanto, em sua avaliação, também havia uma evolução do direito público dentro da Justiça Federal. Alguns juristas brasileiros notaram que a Constituição vigente, escrita sob ditadura em 1967, dava margem para decisões que contrariavam o regime.

“O caso Herzog foi uma evolução da nossa interpretação do direito contra o governo ditatorial. Não foi algo repentino, mas o resultado de uma evolução do direito público”, afirmou Moraes. “Eu peguei um dispositivo da Constituição, o artigo 107 da época, que tratava da responsabilidade civil por atos do poder público. Expandi a a interpretação ação disso, para poder resultar na condenação da União Federal pela tortura e morte de Vladimir Herzog”.

No dia 27 de outubro de 1978, três anos depois do crime, o juiz proferiu a sentença histórica. Moraes declarou que Vladimir Herzog morreu de causas não naturais enquanto estava sob custódia do Estado. O juiz também se refere à ilegalidade da detenção do jornalista, concluindo que houve abuso de autoridade, assim como indícios claros de tortura. Nunca uma decisão tão dura da Justiça contra a ditadura brasileira fora publicada.

“O que era fundamental naquele momento era que se pronunciasse a responsabilidade do Estado por suas ações de perseguição, assassinato, tortura. Era importante sim, penalizar individualmente os responsáveis militares responsáveis, mas não era o primeiro assunto”, afirmou o advogado Mac Dowell Figueiredo. “A prioridade era institucional, nós estávamos combatendo uma ditadura militar. A sociedade civil estava toda reunida em torno desse objetivo”.

Uma luta que ainda não acabou

Além de responsabilizar o Estado, o juiz Moraes solicitou que o expediente fosse enviado ao procurador da Justiça Militar para a investigação e penalização dos responsáveis individuais pelo crime. Clarice Herzog entrou com uma série de outros pedidos na Justiça, pedindo investigações, mas isso nunca aconteceu.

Um dos grandes motivos da falta de mudanças é a Lei da Anistia, promulgada pelo regime militar em 1979, que perdoou os responsáveis por crimes políticos cometidos entre 1961 e 1979. A interpretação vigente da lei afirma que ela beneficia também torturadores e demais agentes da ditadura. Muitos juristas e setores da sociedade discordam dessa interpretação.

“É uma interpretação deformada”, afirma Ivo Herzog. “Mas o fato é que a Justiça comum se pronunciou nas mais diversas instâncias para arquivar o processo, seja por conta da Lei da Anistia ou depois, por uma questão de tempo temporal, de prescrição”.

Em 2009, Clarice Herzog entrou com um pedido na Comissão Interamericana de Direitos Humanos um pedido de investigação do caso Herzog. Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou o Estado brasileiro como responsável pela falta de investigação, de julgamento e de punição dos responsáveis pela tortura e pelo assassinato de Vlado.O Tribunal também responsabilizou o Brasil pela violação dos direitos a conhecer a verdade e à integridade pessoal dos seus parentes.

Ivo Herzog disse que inicialmente era contra a ideia de ir à Corte Interamericana de Direitos Humanos, pois estava cansado de lutar por justiça por 40 anos e a situação era muito desgastante. No entanto, sua mãe o convenceu a seguir em frente, argumentando que o caso do pai era emblemático e poderia abrir caminho para outras famílias buscarem justiça. O processo, segundo Ivo Herzong, foi longo e demorado, com momentos difíceis no tribunal, como o depoimento de militares que foram ofensivos com sua mãe. “A sentença foi muito além do que imaginávamos, porque ela não tratou só do caso do meu pai, mas de todas as pessoas que passaram por situações análogas”, disse Ivo Herzog. “A decisão diz que o Estado brasileiro tem obrigação de investigar esses crimes, que são crimes de lesa-humanidade, imperdoáveis, sobre os quais não vale nenhuma forma de anistia. Foi a primeira vez que o Brasil, na sua história de mais de 500 anos, foi condenado por crimes de lesa-humanidade”.

Ainda assim, uma investigação individual pelos crimes, no entanto, nunca aconteceu. Em 2013, o atestado de óbito de Vladimir Herzog foi retificado para atestar que ele morreu por violência física e não suicídio. No ano passado, a Comissão da Anistia reconheceu os prejuízos causados a Clarice Herzog durante a ditadura. A família poderia ter pedido a indenização há anos, mas só o fez agora devido a necessidades financeiras devido a seu estado de saúde.

Desde 2009, a família fundou o Instituto Vladimir Herzog, instituição com o propósito de manter viva a memória sobre o caso, sobre outros crimes cometidos pela ditadura e defender a liberdade de expressão, a democracia e os direitos humanos. 

A nova decisão beneficiando Clarice Herzog acontece em um contexto em que o Brasil se vê às voltas com a da memória do autoritarismo por diferentes motivos. Por um lado, o filme Ainda Estou Aqui, que trata do assassinato do ex-deputado federal Marcelo Rubens Paiva pelo regime militar, concorre ao Oscar em três categorias, incluindo melhor filme. Por outro, setores de extrema direita pedem anistia a pessoas condenadas pela invasão dos três poderes em 8 de janeiro de 2023, em uma tentativa de golpe de Estado, assim como para o ex-presidente Jair Bolsonaro, que deve ser julgado neste ano pelo STF por tentativa de golpe de Estado.

A nova tentativa de anistia indigna Ivo Herzog. 

“Anistias são para crimes políticos, como quando uma pessoa é perseguida pelo Estado por pensar diferente, e aí sofre sanções que a levam à prisão, ao exílio”, disse Ivo Herzog. “Agora, a pessoa vai lá, quebra, põe fogo, solta a bomba, e quer anistia? Na verdade, o que querem é permitir que um ex-presidente fascista, autoritário, que sempre defendeu a ditadura, sempre defendeu os torturadores assassinos, que diz que o problema da ditadura brasileira foi ter matado poucas pessoas, escape da Justiça e volte ao jogo político”.

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