A abordagem de diversidade, equidade e inclusão (DEI), cada vez mais adotada por redações ao redor do mundo, tem como aspecto mais conhecido as perspectivas racial e de gênero na produção de conteúdos e na formação das equipes. A atenção às pessoas com deficiência nem sempre é considerada. O projeto brasileiro “Acessibilidade jornalística: um problema que ninguém vê” se voltou às demandas das pessoas com deficiência visual para melhorar seu acesso à informação de qualidade. Para isso, realizou uma pesquisa qualitativa com pessoas cegas ou com baixa visão e uma análise de 21 sites jornalísticos, cujos resultados foram publicados em um relatório, e produziu o Lume, um aplicativo curador de conteúdo jornalístico voltado para pessoas com deficiência visual.
Carolina Monteiro, coordenadora do projeto, disse à LatAm Journalism Review (LJR) que uma das intenções da iniciativa é justamente ampliar o entendimento sobre inclusão e diversidade no jornalismo. “A diversidade no jornalismo é entendida basicamente como uma questão de gênero e raça, que é um debate fundamental, urgente e prioritário no Brasil, mas não é a única forma de diversidade. Fala-se muito pouco sobre a inclusão das pessoas com deficiência em geral no consumo de conteúdo jornalístico de qualidade e estamos querendo levantar esse debate para ampliar a discussão sobre diversidade no jornalismo e sobre diversidade e inclusão de uma forma geral”, afirmou.
Monteiro também é co-fundadora da Marco Zero Conteúdo e diretora da Escola de Comunicação da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). A Marco Zero é um dos nove meios independentes que formam a rede realizadora do projeto, que também conta com Olhos Jornalismo, Agência Saiba Mais, Agência Diadorim, Newsletter Cajueira, Eco Nordeste, Agência Retruco, Revista Afirmativa e Mídia Caeté, e com a Unicap.
A iniciativa surgiu como um projeto da jornalista Mariana Clarissa no mestrado em Indústrias Criativas da Unicap, que também faz parte da rede realizadora do “Acessibilidade jornalística”.
“Eu pensei [em fazer um] agregador de notícias, mas eu pensei em diversidade sim, de uma forma que eu pudesse me ver neste projeto e me sentir parte dele não só como jornalista, mas também com os meus ideais e as coisas que eu defendo, os meus princípios”, disse ela à LJR. “Eu sou uma mulher negra, então inicialmente eu pensei em fazer um agregador de notícias que falasse sobre assuntos em torno das questões de raça.”
No entanto, depois de identificar vários meios jornalísticos independentes dedicados a questões raciais no Brasil, Clarissa passou a buscar outro foco para seu projeto. Ela trabalha em uma secretaria de Estado e um de seus gestores, que é cego, comentou sobre a falta de acessibilidade dos sites do governo para pessoas com deficiência visual. Clarissa perguntou a ele sobre a acessibilidade de sites jornalísticos e como ele fazia para se informar.
“E aí na conversa ele falou o quanto era difícil, as problemáticas [para acessar notícias online]. Eu vi também que esse assunto não era discutido, não era muito aprofundado, não era muito pesquisado, poucas pessoas estavam falando sobre acessibilidade digital e tecnologia assistiva focada em jornalismo”, disse ela.
A partir da pesquisa de Clarissa em seu mestrado, formou-se a rede realizadora do projeto, que o inscreveu na edição 2021 do Desafio da Inovação da Google News Initiative. A iniciativa foi selecionada e financiada pela empresa de tecnologia.
Segundo o relatório do projeto, o Censo 2010 identificou mais de 6,5 milhões de pessoas cegas ou com baixa visão no Brasil, o que torna este tipo de deficiência o mais numeroso no país. Para entender quais são os hábitos e as demandas deste grupo populacional em relação ao consumo de conteúdo jornalístico, o projeto realizou entrevistas com 16 pessoas cegas ou com baixa visão. O resultado completo desta pesquisa qualitativa está disponível no relatório.
Todas as pessoas entrevistadas indicaram o celular como a ferramenta mais usada para acessar as notícias e as redes sociais. Mesmo quem disse buscar informação por meios tradicionais, como televisão e rádio, ressaltou consumir notícias pela internet. Somente três dos entrevistados disseram acessar diretamente os portais de notícias. Dos 16 entrevistados, 12 disseram receber links através do WhatsApp ou participar de grupos de compartilhamento de informações no Telegram.
Todos disseram usar aplicativos de leitura de tela para ter acesso ao conteúdo jornalístico no celular. Estes aplicativos “leem” e reproduzem em áudio o texto que aparece na tela do celular. No caso de imagens, o aplicativo lê o texto alternativo ou alt text, a descrição da imagem que deve ser inserida manualmente por quem sobe as imagens no gerenciador de conteúdo do site. Já os vídeos precisam ter áudiodescrição embutida para que pessoas com deficiência visual possam ter acesso ao conteúdo apresentado.
A partir das entrevistas, o projeto compilou uma série de recomendações para organizações de notícias aumentarem a acessibilidade de seus sites, entre elas:
Entre as recomendações relacionadas à produção jornalística e às políticas internas das organizações, estão:
Os insights oferecidos pelas pessoas entrevistadas foram aproveitados no desenvolvimento do aplicativo para celular Lume, um agregador de notícias cuja interface favorece a leitura por pessoas com deficiência visual. No momento, o agregador está disponível apenas para Android e é alimentado com todo o conteúdo publicado pelos nove meios que formam a rede realizadora do projeto. O objetivo é fornecer conteúdo jornalístico de qualidade e de maneira acessível a pessoas cegas ou com baixa visão.
“O Lume cumpre todos os critérios de acessibilidade definidos pelos protocolos internacionais”, disse Monteiro. “Ele exclui ruídos e problemas presentes no código dos sites de origem que dificultam a leitura por aplicativo de leitura de tela.”
Um dos consultores do projeto é o comunicador Michel Platini, que é publicitário e consultor em acessibilidade. “A gente tem um lema no movimento das pessoas com deficiência que é ‘nada sobre nós sem nós’, então é mais do que justo que um projeto como este conte com uma pessoa com deficiência visual e que também é profissional da comunicação”, disse ele à LJR.
Segundo ele, o aplicativo Lume possibilita “em poucos cliques ter acesso à leitura da notícia completa”. “Não precisa enfrentar cookies ou popups, ou seja, sobreposição de tela; não precisa enfrentar anúncio e tudo mais. (...) Quando uma pessoa se depara com uma ferramenta que ela tem facilidade de utilizar, ela vai usar por mais tempo e indicar para outras pessoas. Quando a gente se depara com uma ferramenta que a gente vê dificuldade, vem um sentimento de frustração, e a gente desiste, não tenta mais. Então um aplicativo acessível ajuda até a saúde mental de quem quer se informar”, afirmou.
Platini acredita que o projeto “Acessibilidade jornalística” “pode ser um divisor de águas para as pessoas com deficiência visual”. “A gente fala sobre direito à comunicação, o quanto é importante a comunicação ser democrática, mas a comunicação só será democrática quando todos tiverem acesso a ela. Isso passa pela acessibilidade comunicacional”, destacou.
O projeto também realizou uma pesquisa sobre a relação de organizações jornalísticas com a acessibilidade, da qual participaram 53 organizações, representadas por pessoas em cargos de gestão, edição e reportagem.
Quase todos os respondentes – 98% – disseram não contar com pessoas cegas ou com baixa visão em suas equipes, e 60% disseram não produzir conteúdo com os requisitos de acessibilidade necessários para o acesso das pessoas com deficiência visual.
Questionados sobre qual o nível de conhecimento sobre as técnicas que contribuem para garantir acessibilidade em sites de jornalismo, 71,7% dos respondentes disseram ter pouco ou nenhum conhecimento sobre tais técnicas, e 13,2% disseram ter nenhum conhecimento. Além disso, a maioria das organizações – 80,4% – nunca fez um diagnóstico do nível de acessibilidade de seu site, newsletter ou podcast.
O projeto também realizou uma análise da acessibilidade de sites jornalísticos brasileiros para pessoas com deficiência visual. Foram analisados 21 sites, incluindo os nove meios da rede realizadora do projeto e outros 12 sites escolhidos com base no ranking do Digital News Report 2021, do Reuters Institute, que indicou os portais de notícias mais acessados no Brasil no ano passado.
A análise concluiu que nenhum dos 21 sites cumpre integralmente os critérios mais básicos de acessibilidade. O item mais contemplado foi a nomeação de todos os botões e links nas páginas, presente em 95% dos sites. A descrição de imagens, algo relativamente simples de ser implementado, está ausente em 90% dos sites. Os portais que mais atingiram os critérios de acessibilidade analisados foram o Jornal Extra (77% dos critérios contemplados) e Marco Zero Conteúdo, Yahoo!News e MSN News (54%).
Segundo Carolina Monteiro, até se envolver no projeto “Acessibilidade jornalística”, a Marco Zero vivia uma situação similar à que a maior parte das organizações jornalísticas reportou na pesquisa. “Tínhamos noção da importância da acessibilidade e de que esse era um assunto relevante, mas muito pouco conhecimento técnico sobre como implementar a acessibilidade no nosso site. Achávamos que as soluções eram caras. E vivíamos esse impasse entre saber que era um assunto importante, mas ao mesmo tempo não priorizá-lo”, disse ela.
Após a experiência no projeto, a Marco Zero se encontra agora “em processo de mudança”. “Estamos começando a entender os impactos e as necessidades que esse projeto está trazendo para o nosso dia a dia. Pensamos em incluir na produção do nosso conteúdo mais pautas para atender aos desejos e às demandas que foram apontadas na pesquisa [com pessoas cegas ou com baixa visão], e também queremos implementar mais recursos de acessibilidade para tornar o site ainda mais acessível”, contou.
“Não adianta muito se prender a técnicas e a desenvolver algo que seja funcional; o ideal é que quem participa de um projeto como esse mude de perspectiva”, destacou Platini. “Mude de perspectiva para o mundo, seja na sua rede social, descrevendo imagens; seja no seu dia a dia, utilizando terminologias corretas como pessoa com deficiência, pessoa cega, enfim, terminologias que não agridam a dignidade humana da pessoa com deficiência; seja trazendo para os jornalistas pautas que são interessantes para as pessoas com deficiência. Um projeto como esse não se acaba nos produtos finais, é um projeto de transformação de paradigmas mesmo”, disse ele.