Por Júlio Lubianco and Marina Estarque
Num episódio criticado por organizações que defendem a liberdade de imprensa, o jornalista americano Glenn Greenwald foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) por suposto envolvimento com os hackers que acessaram trocas de mensagem feitas no aplicativo Telegram por diversas autoridades, como o ministro da Justiça Sergio Moro e o promotor Deltan Dallagnol, que lidera a força-tarefa da Operação Lava-Jato.
Em vídeo postado no Twitter, Greenwald diz que o procurador Wellington Divino de Oliveira, que assina a denúncia, “está abusando do seu cargo para atacar inimigos políticos.”
“É um ataque contra a imprensa livre, contra a nossa reportagem, mas também contra a Polícia Federal e ao STF [Supremo Tribunal Federal], que disse que eu não poderia ser investigado, muito menos denunciado, pela minha reportagem, porque é uma violação do direito constitucional de uma imprensa livre. Isso é obviamente uma retaliação do governo Bolsonaro. Nós nunca nos intimidaremos por ninguém (que esteja) abusando do aparato do Estado,” disse Greenwald no Twitter.
Os diálogos de Dallagnol com outros integrantes da força-tarefa e com o juiz Sergio Moro, hoje ministro da Justiça, servem de base para a série de reportagens Vaza-Jato, publicada por The Intercept Brasil, Folha de S.Paulo, Veja, UOL e El País Brasil.
The Intercept Brasil, site fundado por Greenwald, alega que a série foi produzida “a partir de arquivos enormes e inéditos – incluindo mensagens privadas, gravações em áudio, vídeos, fotos, documentos judiciais e outros itens – enviados por uma fonte anônima.” Mais tarde, o hacker que invadiu os telefones foi preso e confessou ter sido ele a fonte do Intercept.
As reportagens mostraram uma proximidade entre Moro e os procuradores da Lava Jato e colocaram em dúvida a imparcialidade do juiz. Se houver entendimento de que Moro atuou de forma parcial, suas sentenças podem ser anuladas. Tanto o ex-juiz quanto Dallagnol dizem que não reconhecem a autenticidade dos arquivos, mas afirmam que, mesmo se forem verdadeiros, não demonstrariam ilegalidades.
Greenwald lembra que o procurador Divino de Oliveira, que assina a denúncia, é o mesmo que em dezembro de 2019 havia causado polêmica ao pedir o afastamento do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, por críticas feitas ao ministro da Justiça Sergio Moro. A Justiça arquivou o pedido. Veja o vídeo na íntegra:
Sobre a notícia da denúncia do MPF: é um ataque a liberdade de imprensa, o STF, as conclusões da PF e a democracia brasileira.
Nos vamos defender uma imprensa livre. Não seremos intimidados pelo abuso do aparato do estado nem pelo governo Bolsonaro. pic.twitter.com/bQ8smWw2sm
— Glenn Greenwald (@ggreenwald) January 21, 2020
Em nota enviada à Folha, Greenwald disse que a denúncia é uma forma de intimidação. "É uma tentativa óbvia de atacar a imprensa livre em retaliação pelas revelações que relatamos sobre o ministro Moro e o governo Bolsonaro", afirmou.
O jornalista diz que vai seguir seu trabalho. "Não seremos intimidados por essas tentativas tirânicas de silenciar jornalistas. Estou trabalhando agora com novos relatórios e continuarei a fazer meu trabalho jornalístico. Muitos brasileiros corajosos sacrificaram sua liberdade e até a sua vida pela democracia brasileira, e sinto a obrigação de continuar esse nobre trabalho," afirmou.
Na nota, Greenwald diz que o presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores não acreditam na liberdade de imprensa e cita ataques do chefe do Executivo contra jornalistas.
A denúncia ocorre apesar de estar em vigor uma decisão liminar do Supremo Tribunal Federal “garantindo [o direito] ao jornalista Glenn Greenwald não ser investigado pela divulgação de informações que preservam o sigilo da fonte,” como explicou na época uma nota no site do tribunal.
Os advogados de Greenwald, Rafael Borges e Rafael Fagundes, disseram, por meio de nota, que receberam a denúncia com perplexidade. "Trata-se de um expediente tosco que visa desrespeitar a autoridade da medida cautelar concedida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 601, do Supremo Tribunal Federal, para além de ferir a liberdade de imprensa e servir como instrumento de disputa política". A nota foi publicada em veículos como Globo e Folha.
Segundo os advogados, o objetivo da denúncia é depreciar o trabalho jornalístico do The Intercept Brasil. A defesa afirma que prepara uma medida judicial cabível.
Na investigação que se seguiu à invasão de celulares de autoridades do Estado brasileiro, a Polícia Federal havia indiciado seis pessoas. O inquérito da PF diz não ser “possível identificar a participação moral e material do jornalista Glenn Greenwald nos crimes investigados.”
"Há menos de dois meses, a Polícia Federal, examinando todas as mesmas evidências citadas pelo Ministério Público, declarou explicitamente que não apenas nunca cometi nenhum crime, mas também exerci extrema cautela como jornalista […]. Até a Polícia Federal, sob o comando do ministro Moro, disse o que está claro para qualquer pessoa: eu não fiz nada além do meu trabalho como jornalista — eticamente e dentro da lei," escreveu o jornalista na nota divulgada pela Folha.
Já na denúncia, o procurador Divino de Oliveira considera os contatos entre Greenwald e sua fonte aconteceram enquanto ainda ocorria “prática delituosa”. Ele pede a instauração de processo-crime contra Greenwald por invasão de dispositivo informático, interceptação ilegal de comunicações e associação criminosa. Contraditoriamente, ele argumenta ainda que a decisão do STF foi cumprida, já que o jornalista não foi alvo das investigações. Leia a denúncia na íntegra.
Divino de Oliveira usa como principal argumentação conversa em que o Luiz Molição, também denunciado, pergunta a Greenwald sobre se deveria obter dados de outras autoridades. O jornalista responde que não pode lhe dar conselhos, mas garante que exercerá o direito constitucional de preservar suas fontes. Ele também acusa Greenwald de orientar Molição a deletar os arquivos.
Após a denúncia, o site The Intercept Brasil publicou nota em apoio ao seu jornalista. Nela, o site afirma que o procurador tenta criminalizar o jornalismo brasileiro. "Não existe democracia sem jornalismo crítico e livre. A sociedade brasileira não pode aceitar abusos de poder como esse", diz o comunicado.
O veículo defende ainda que a denúncia é um ato político. "Causa perplexidade que o Ministério Público Federal se preste a um papel claramente político, indo na contramão da ausência de indícios informada no inquérito da Polícia Federal", disse.
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) disse, por meio de nota, que a denúncia contra Greenwald viola a liberdade de imprensa.
Segundo a entidade, os diálogos apresentados como prova não confirmam as acusações do promotor de que o jornalista teria aconselhado o grupo a apagar arquivos, com o objetivo de dificultar as investigações.
"O jornalista apenas diz que já armazenou as mensagens em local seguro, que não vê necessidade de o grupo manter os arquivos e manifesta preocupação em proteger a identidade do grupo de Molição como fonte das reportagens. Greenwald não sugere, orienta ou ordena a destruição do material. (...) O jornalista não diz que o grupo deve apagar mensagens para evitar ser pego pelas autoridades", afirmou a Abraji.
A associação diz ainda que a denúncia tem como único objetivo constranger e desqualificar o profissional. "Por duas vezes, o procurador refere-se a Greenwald com o termo jornalista entre aspas, como se ele não se qualificasse como tal –e como se coubesse a um membro do MPF definir quem é ou não jornalista", afirma a entidade, que pede que a Justiça rejeite a denúncia.
"É um absurdo que o Ministério Público Federal abuse de suas funções para perseguir um jornalista e, assim, violar o direito dos brasileiros de viver em um país com imprensa livre e capaz de expor desvios de agentes públicos", disse a Abraji.
A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) também disse que a denúncia é absurda e manifestou solidariedade ao jornalista, em comunicado. "A denúncia, inteiramente inepta, representa um atentado à Constituição brasileira, um desrespeito ao STF e à Polícia Federal, bem como uma tentativa grotesca de manipulação, para tentar condenar o jornalista", disse.
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), também se manifestou contra a denúncia, em sua conta do Twitter. "A denúncia contra o jornalista @ggreenwald é uma ameaça à liberdade de imprensa. Jornalismo não é crime. Sem jornalismo livre não há democracia", afirmou.
Segundo publicação na Folha, o ministro Gilmar Mendes, do STF, considerou que a denúncia desrespeita a sua decisão de agosto do ano passado. Já o Globo ouviu o ministro Marco Aurélio Mello, também do Supremo. "Eu receio muito qualquer ato que possa implicar uma inibição no direito-dever de informar. Isso é ruim para a sociedade", disse o ministro, que ressaltou não ter lido a denúncia contra o jornalista.