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Novas leis e asfixia econômica: o golpe final para os meios de comunicação independentes na Venezuela?

Duas leis que entraram recentemente em vigor e a suspensão do financiamento de agências dos Estados Unidos poderiam dar o golpe final ao jornalismo independente na Venezuela. As novas legislações fazem parte de um longo histórico de medidas restritivas e de criminalização impostas pelo regime do presidente Nicolás Maduro para silenciar vozes críticas, segundo jornalistas e especialistas do país.

Embora estas leis não sejam especificamente dirigidas à imprensa, o seu impacto colateral restringiria o exercício do jornalismo e a liberdade de expressão, segundo organizações defensoras da liberdade de imprensa, que manifestaram preocupação com a potencial violação dos direitos fundamentais e a obstrução do fluxo de informação.

O acima mencionado, somado à recente ordem executiva do presidente Donald Trump para suspender a ajuda financeira dos EUA a organizações estrangeiras, e à narrativa de criminalização por parte do governo Maduro aos meios de comunicação que receberam este tipo de financiamento, deixa a imprensa independente com muito poucas opções para continuar a realizar o seu trabalho.

Dos ejemplares de la Gaceta Oficial de Venezuela en los que se publican nuevas leyes.

Duas cópias do Diário Oficial da Venezuela em que novas leis são publicadas. (Foto: Capturas de tela do Diário Oficial da Venezuela)

Uma das novas legislações em questão é a Lei de Fiscalização, Regularização, Atuação e Financiamento de Organizações Não Governamentais e Organizações Sociais Sem Fins Lucrativos. Popularmente conhecida como Lei Anti-ONG ou Lei Anti Sociedade, foi aprovada em 15 de agosto de 2024 e entrou em vigor três meses depois.

O objetivo desta normativa é regular e supervisionar as atividades das ONG que operam na Venezuela. No país, grande parte dos meios de comunicação independentes são constituídos como organizações sem fins lucrativos, segundo o Instituto de Imprensa e Sociedade da Venezuela (IPYS).

A lei exige que as ONGs se registrem junto às autoridades com estatutos alinhados às novas regulamentações. Como parte deste processo, devem fornecer informações detalhadas sobre as suas finanças, incluindo a origem nacional ou estrangeira das suas fontes de financiamento, o registro das doações recebidas e até a identidade dos seus doadores.

A exigência de que os veículos entreguem suas informações financeiras para cumprir a nova lei faz soar o alarme, disse Saúl Blanco, responsável pelo programa de promoção, defesa e ação pública da organização venezuelana de defesa da liberdade de expressão Espacio Público. Além disso, disse ele, a Lei Anti-ONG foi aprovada em um contexto de acentuação da perseguição contra jornalistas e defensores dos direitos humanos após a crise pós-eleitoral na Venezuela.

"O fato de o Estado ter informações sobre o financiamento das organizações pode significar uma nova onda de repressão contra as organizações da sociedade civil, especialmente levando em conta que existe uma criminalização do financiamento externo por parte dos funcionários do Estado", disse Blanco à LatAm Journalism Review (LJR).

O descumprimento das obrigações previstas na nova lei será punido com penalidades que vão desde multa até cancelamento do registro da organização. No entanto, a lei também estabelece que o descumprimento das obrigações poderá dar origem a sanções civis e penais previstas em outras leis.

Melanio Escobar, jornalista e ativista venezuelano especializado em liberdade de expressão e direitos humanos, alertou que as informações financeiras provenientes de ONGs poderiam ser utilizadas como prova para criar casos sob leis com zonas cinzentas de interpretação, como a lei contra o financiamento do terrorismo ou a lei contra o ódio. Embora a Lei Anti-ONG não preveja penas de prisão, essas outras leis preveem.

"Sem ter qualquer tipo de prova em mãos, o regime já utilizou o financiamento internacional para criminalizar, desacreditar e atacar meios de comunicação, jornalistas e organizações", disse Escobar à LJR. "Você pode imaginar o que pode acontecer se a organização entregar voluntariamente ao Estado venezuelano informações e valores sobre quais são os projetos, com quais intenções, quem é o doador e em que prazo devem ser executados".

Especialistas questionam a real necessidade da nova lei, além de servir como instrumento de controle e repressão. Muitos dos novos requisitos não fazem sentido no sistema jurídico venezuelano porque já existiam leis que regulamentam as ONG, disse Blanco.

Além disso, grande parte das informações que as autoridades solicitam às organizações já são públicas e facilmente acessíveis, especialmente aquelas que estão registradas no estrangeiro, acrescentou Escobar, cuja organização e meio de comunicação RedesAyuda opera a partir dos Estados Unidos.

"Quando você tem uma organização registrada nos Estados Unidos, você informa ao Estado [americano] quanto recebe, de quem recebe, como foi gasto, etc. E essas declarações fiscais são públicas", disse Escobar. "Se o Estado venezuelano quiser saber quem financia, quanto financia ou em qual projeto está financiando, pode fazê-lo através de uma pesquisa no Google".

Outro aspecto da Lei Anti-ONG que preocupa os especialistas é a proibição do registro, e portanto o possível encerramento da organização, para ONGs que "promovam o fascismo, a intolerância ou o ódio", e para aquelas que realizam atividades "com fins políticos", conforme estabelece a legislação. Isso representa um grande risco porque deixa a definição destes conceitos aberta à interpretação das autoridades, disse Blanco.

"A questão é que 'político' é um termo muito amplo. O fato de trabalhar pelos direitos humanos já está na esfera política", disse Blanco. "Se o Estado venezuelano descobrir que o meio de comunicação X estava 'incitando ao ódio' contra um funcionário, a organização poderia ser submetida a anulação e, com isso, bem, basicamente o meio de comunicação já não poderia existir."

Uma lei repressiva que não vem sozinha

Outra lei aprovada no ano passado, a Lei Orgânica Libertador Simón Bolívar contra o Bloqueio Imperialista e em Defesa da República Bolivariana da Venezuela, comumente conhecida como Lei Simón Bolívar, também inclui regulamentações que podem representar obstáculos legais para a imprensa crítica.

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O jornalista e ativista venezuelano Melanio Escobar fala durante a transmissão de seu programa no YouTube. (Foto: Captura de tela do canal do YouTube de Melanio Escobar)

Esta lei foi anunciada como uma medida para defender o país contra o bloqueio e as sanções impostas por países estrangeiros ao governo Maduro. No entanto, o IPYS considera que na realidade faz parte da estratégia do regime para criminalizar a informação e a opinião, e finalizar a oficialização da censura em assuntos de interesse público.

De acordo com a referida lei, os meios de comunicação, jornalistas ou qualquer pessoa que divulgue conteúdos que sejam considerados promotores de sanções internacionais contra funcionários ou empresas estatais estarão sujeitos à revogação das suas concessões e multas de até 50 milhões de bolívares [mais de US$776 mil].

"Inclusive, sem que seja necessário um procedimento prévio e com base em suspeitas, a lei permite a imposição de medidas econômicas restritivas", afirmou o IPYS em uma análise da legislação.

Além disso, a Lei Simón Bolívar estabelece a criação de um registro nacional de pessoas suspeitas de envolvimento em "ações contrárias aos valores e direitos irrenunciáveis do Estado", que poderão ser sancionadas com medidas econômicas restritivas, incluindo o congelamento de ativos e a proibição de constituição de sociedades comerciais ou civis.

"Devido à recorrência de discursos estigmatizantes contra a imprensa independente, que totalizam 95 eventos em 2024 segundo os registros do IPYS Venezuela, qualquer meio de comunicação ou jornalista corre o risco de ser incorporado a esse registro e estar sob ameaça latente", afirmou o IPYS em sua análise.

Para Escobar, a intenção do regime de Maduro ao colocar as ONGs e os meios de comunicação contra a parede através de legislações como estas é consolidar uma hegemonia comunicacional que há vários anos tentam impor para controlar a narrativa sobre a realidade do país.

"Eles não se importam com o que acontece na Venezuela, o que importa para eles é como o que acontece na Venezuela é contado e eles querem dominar essa narrativa e a única maneira de dominá-la 100% é acabar com todos os meios de comunicação e organizações de direitos humanos", disse Escobar. "Essa é uma forma de eles tirarem o controle social de suas costas e poderem continuar com suas ações ditatoriais e criminosas".

Segundo Escobar, desde que o governo do falecido presidente Hugo Chávez retirou a concessão ao canal de televisão Radio Caracas Televisión (RCTV) em 2007, por supostas violações das leis de telecomunicações, o chavismo entendeu que através da criação de leis os meios de comunicação críticos ao poder poderiam ser criminalizados.

"De acordo com a narrativa deles, eles não estão prendendo ninguém por se expressar, mas essa pessoa violou a lei contra o ódio e eles estão apenas impondo a lei", disse Escobar. "Ou eles não vão fechar uma ONG que foi solicitada a passar por uma auditoria, mas, como ela não quis, então já não pode mais operar."

Embora as novas leis possam afetar o funcionamento dos meios de comunicação independentes na Venezuela, o que ameaça mais seriamente a sobrevivência do jornalismo no país é a suspensão da ajuda proveniente de entidades dos Estados Unidos, segundo jornalistas e especialistas venezuelanos.

"Na situação da Venezuela, as empresas ou não querem financiar o jornalismo ou não têm dinheiro. E se o tiverem, estão sob ameaças do governo de fazê-lo", disse à LJR um jornalista venezuelano que pediu anonimato. "Então, como podemos sustentar o jornalismo se não com ajuda internacional?"

O jornalista disse que, apesar da perseguição e do assédio judicial que a imprensa crítica tem sofrido nos últimos anos, o seu veículo tem conseguido superar as ameaças tentando avaliar a reação do regime após a publicação das suas investigações e ajustando as suas estratégias de publicação adequadamente.

"Apesar da existência destas leis tão draconianas que nos colocam numa situação de vulnerabilidade jurídica [...], o que realmente está atingindo o objetivo de sufocar a sociedade civil e os meios de comunicação é o que infelizmente o governo de Donald Trump está fazendo através  [do cancelamento do apoio] da USAID e outras organizações", disse o jornalista.

Na Venezuela, os meios de comunicação e as ONGs afetadas pela suspensão do financiamento dos EUA permaneceram em silêncio tendo em vista a narrativa promovida pelo regime, que sustenta que recursos de agências dos Estados Unidos foram utilizados para desestabilizar o país e tentar derrubar Maduro.

O que pode ser feito?

Os meios de comunicação que operam como ONGs têm poucas opções para evitar serem afetados pela aplicação das novas leis.

Cover of Veneuela's El Nacional newspaper with a magnifier glass highlighting the story of the approval of an Anti-NGO law.

Capa do jornal El Nacional da Venezuela com uma lupa destacando a matéria sobre a aprovação de uma lei anti-ONGs. (Foto: Captura de tela e Canva)

No caso da Lei Anti-ONG, em matéria jurídica, as organizações poderiam apresentar pedidos de proteção, ou mesmo solicitar a anulação da lei, disse Blanco. No entanto, acrescentou, considerando a falta de independência e imparcialidade do poder judicial venezuelano, é pouco provável que tais medidas funcionem.

"Esta lei afeta efetivamente o direito de associação, o direito à privacidade e outros direitos", disse Blanco. "Mas a questão é que mesmo quando se pode argumentar isto, e mesmo quando isto faz sentido, muitas vezes o Estado venezuelano tomou decisões contrárias aos direitos humanos para proteger certos interesses públicos."

Escobar disse que, na ausência de proteção legal, os meios de comunicação que operam como ONGs têm duas opções: enfrentar a fiscalização na esperança de que a informação fornecida não seja usada contra eles, ou simplesmente não cumprir a lei.

"Penso que em todas as redações e em todas as organizações de direitos humanos estamos na discussão se vamos entrar na ilegalidade ou se vamos cumprir os requisitos legais que o regime de Nicolás Maduro está propondo", disse Escobar. "Até agora não conheci ninguém que decidiu ser fiscalizado, dentro do ecossistema onde trabalho. Entre as organizações com quem conversei, a abordagem ainda é que elas estão decidindo."

O jornalista que pediu anonimato disse que o registro afeta apenas os meios de comunicação que funcionam como associações civis e não como empresas anônimas. Além disso, a lei também não pode sancionar os meios de comunicação que operam no exílio.

No entanto, encerrar operações no país para transferi-las para um país estrangeiro multiplica a dificuldade de fazer jornalismo sobre a Venezuela, disse Escobar. Não só é mais caro contratar pessoas em outros países, mas os riscos também aumentam quando se realiza cobertura dentro da Venezuela.

"Já não posso contratar um jornalista na Venezuela para cobrir as notícias para mim ou para fazer a matéria para mim se eu não estiver mais operando lá. Isso representa inclusive um risco para o jornalista, que trabalha ilegalmente para mim", disse Escobar.

A Lei Anti-ONG estabelece um prazo de 90 dias após a sua entrada em vigor para as organizações apresentarem às autoridades os seus estatutos ajustados à nova regulamentação. Esse prazo se encerrou em 13 de fevereiro. As ONG cujos estatutos não cumpram com as disposições da nova lei têm até 14 de maio para reformá-los de acordo com a legislação.



Traduzido por Marta Szpacenkopf
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