Veículos jornalísticos que têm o público como principal fonte de receita, através de assinaturas, membresía e outros programas, estão mais inclinados a integrar a voz da audiência nas suas decisões editoriais. Foi o que constatou uma pesquisa publicada na Brazilian Journalism Research, que analisou 80 meios de 20 países da América Latina quanto à incidência de conteúdo gerado pela audiência.
“O que vemos na fala deles [dos meios] é que dependem do público para sobrevivência financeira, porque não têm dependência da publicidade. Precisam muito dos membros, do crowdsourcing, da vaquinha do Intercept. Depende tanto do público que quer fazer um jornalismo para esse público, trazendo ele para perto,” disse à LatAm Journalism Review (LJR) a pesquisadora Gabriela Gruszynski Sanseverino, uma das autoras.
O estudo mostra que a maior parte dos veículos analisados relega a participação da audiência a conteúdos das redes sociais, como fotos e vídeos virais, republicados com foco na curiosidade, sem sustentação numa apuração jornalística mais profunda.
Não foi o caso, no entanto, de três dos meios analisados, que contaram com a audiência para produzir conteúdo jornalístico relevante e de alto nível no contexto dos primeiros meses da pandemia de coronavírus. A existência prévia de estruturas de contato com membros do público também contribuiu para que essas experiências tivessem sucesso.
No caso do argentino RED/ACCIÓN, as ferramentas de colaboração já fazem parte da sua estrutura desde a fundação do veículo, em 2018, com a proposta de reconectar o jornalismo com a audiência, promovendo sua participação ativa no processo editorial. Nos últimos 18 meses, desde a declaração da pandemia, o meio vem se apoiado na sua comunidade para “co-criar” conteúdos e identificar oportunidades de trabalhar em conteúdos que lhes sejam úteis, segundo o diretor editorial, Javier Drovetto.
“Um exemplo muito claro disso é o Guia para viver em tempos de coronavírus, que desde o seu nascimento, nos primeiros meses da pandemia, pretendia ser um instrumento para responder às dúvidas cotidianas das pessoas diante da crise de saúde. E, nesse sentido, o públicofoi fundamental: a partir de um formulário de consulta e de nossas redes sociais reunimos grande parte das 80 perguntas respondidas no guia,” disse Drovetto à LJR.
“A quarentena mais rígida fechou muitas possibilidades de estarmos cara a cara com nosso público, mas com a participação deles pudemos explicar questões complexas de uma forma muito calorosa, como os pesadelos que podemos ter quando há uma crise dessa natureza. Isso foi muito bem conseguido neste especial Las pesadillas nos hablan: historia ilustrada de los sueños de nuestros lectores (Pesadelos falam conosco: história ilustrada dos sonhos de nossos leitores),” disse Drovetto.
Segundo o diretor editorial, a comunidade de membros pagantes e assinantes dos conteúdos de RED/ACCIÓN continuou crescendo durante a pandemia. Ele acredita que a crise sanitária deu mais valor à ideia de comunidade e ao conceito de assinaturas.
“Na quarentena, muitas pessoas viram veículos jornalísticos como RED/ACCIÓN como uma companhia. Em todos os sentidos: uma companhia informativa, porque nos esforçamos muito para gerar conteúdos úteis e de serviço que esclareçam, na medida do possível, a crise da saúde; e uma empresa na construção da comunidade, porque nos preocupamos justamente em fazer valer a opinião, a contribuição e o olhar dos nossos leitores no nosso jornalismo."
“O RED/ACCIÓN, até antes da pandemia, trazia o público para trabalhar com repórteres. Saíam na rua, um grupo de membros, que eles chamam, para participar desse processo. … Ele tem essa estrutura desde a base, diferente das outras. E os outros exemplos aproveitaram muito bem o período da pandemia para fazer esses experimentos,” disse à LJR o pesquisador Mathias Felipe de Lima Santos, um dos autores da pesquisa.
No Equador, o portal GK foi mais que uma companhia durante a pandemia, mas um prestador de serviços cruciais no momento em que seus leitores mais precisavam. O país foi um dos mais atingidos pela COVID-19, com o colapso do sistema de saúde que levou a um elevado número de mortes em um curto espaço de tempo. Para conter o contágio, foi decretada uma quarentena severa que proibiu inclusive velórios de vítimas do coronavírus. Sensível à dor do público, o GK criou o projeto colaborativo “Voces para la Memoria”.
“Muita gente morreu repentinamente, funerais foram proibidos, aglomerações foram proibidas, despedidas foram proibidas, abraços foram proibidos. E nos pareceu importante poder ter um memorial, ou seja, criar um espaço digital para que os familiares possam se despedir e dizer o que teriam falado no velório, no enterro,” explicou à LJR Isabela Ponce, diretora editorial de GK.
A audiência de GK foi chave também no especial “Los que no aparecen”. Depois de uma reportagem mostrar a demora na liberação de corpos de vítimas da COVID-19 na cidade de Guayaquil, a redação do GK começou a receber relatos de leitores que estavam enfrentando o mesmo problema. O site criou uma página para envio de relatos.
“Começamos a acompanhar o que havia acontecido com aqueles corpos. Aí, os próprios familiares, começamos a contatá-los um a um para saber a história e nos pareceu que a melhor forma de contar a história era escrever na primeira pessoa,” disse Ponce. “Ainda há corpos que não apareceram e estamos trabalhando neste projeto, que em breve sairá, uma nova etapa para os familiares que ainda não encontraram seu ente querido.”
A primeira pessoa também foi o formato preferido pelo Intercept Brasil. Mesmo antes da pandemia, a seção “Vozes” era usada para contar histórias de membros da audiência. O site tem foco em jornalismo investigativo e prioriza reportagens de profundidade, mas de apuração mais demorada. Com o Vozes, o site deu mais dinamismo à sua cobertura da pandemia.
“Chegaram algumas histórias de leitores, que recebemos. A gente faz newsletters de arrecadação, e nelas a gente explica o que estamos fazendo, aí damos o exemplo do Vozes, o que queremos com aquilo, e se os leitores mandam sugestões,” disse à LJR a editora Silvia Lisboa, responsável pelo Vozes. “Mas óbvio que fazemos toda uma busca para chegar à informação. Tem muitas que não dão em nada, vamos atrás e a coisa não se confirma, não era bem assim. A gente tem todo um procedimento jornalístico de checar aquela informação, se ela realmente existe.”
O processo descrito por Lisboa é, na avaliação dos pesquisadores, um dos motivos que limita a implementação de mais colaborações da audiência em veículos jornalísticos no continente.
“É porque dá trabalho, né?'', disse Sanseverino. “Dá bastante trabalho, no momento em que começa a trabalhar com o público. É o que os artigos de conteúdo gerado por usuário geralmente tratam, que é processo de verificação, da questão ética de como usar, por que não usar. E cada vez mais, com redações diminuindo, dá muito trabalho.”