Na última década, o Grupo Jovem Pan foi o maior conglomerado de mídia a acolher e difundir ideias da direita radical no Brasil. Teses anticientíficas sobre vacinas, ataques sem evidências sobre a lisura do processo eleitoral, alusões a uma suposta pretensão ditatorial de políticos progressistas: não faltou espaço para teorias da conspiração na grade da rádio, que em 2014 deu uma guinada editorial e adotou um viés assumidamente ultraconservador, obtendo assim grande sucesso e conseguindo até mesmo inaugurar o próprio canal na TV a cabo em 2021.
Fundado em 1944, o grupo enfrenta agora o maior desafio legal de sua história, com um pedido por parte do Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo pelo cancelamento dos direitos de radiodifusão de suas três estações de rádio, além do pagamento de uma indenização milionária ao Estado e da obrigação de veicular conteúdos sobre a idoneidade do processo eleitoral brasileiro na sua grade.
Sem precedentes desde a redemocratização em 1988, o processo, que ainda precisa ser julgado, acusa a rádio de disseminar “reiteradamente conteúdos que desacreditaram, sem provas, o processo eleitoral de 2022, atacaram autoridades e instituições da República, incitaram a desobediência a leis e decisões judiciais, defenderam a intervenção das Forças Armadas sobre os Poderes civis constituídos e incentivaram a população a subverter a ordem política e social”.
Em editorial divulgado no mesmo dia do anúncio do processo, a Jovem Pan diz ser vítima de uma tentativa de intimidação e de censura por parte do Ministério Público. A liberdade de imprensa, diz a Jovem Pan, é assegurada pela Constituição brasileira, de modo que o pedido de cassação dos direitos de radiodifusão constitui também um ataque contra o Estado democrático. “Não importa se de esquerda, direita, centro ou apolítico, defender o fechamento de um veículo de imprensa é um atentado contra a democracia”, disse a Jovem Pan.
Especialistas em censura e liberdade de expressão ouvidos pela LatAm Journalism Review (LJR) explicam os fundamentos do processo. Segundo eles, o pedido do MPF é, sim, compatível com a legislação brasileira, que faz uma série de exigências para garantir o direito de radiodifusão que a Jovem Pan pode ter violado. Embora entendam que a Justiça, que tem atuado de forma enérgica para combater a desinformação no Brasil, por vezes possa se exceder, não é este o caso desta vez, pois a legislação brasileira é clara a este respeito, afirmam. Além disso, o processo expõe também a desatualização do marco regulatório das normas de radiodifusão no Brasil, de 1962.
Com 215 páginas, o processo submetido à Justiça Federal pelo MPF tem por objetivo “responsabilizar a Jovem Pan pela veiculação sistemática e multifacetada, ao menos entre 01 janeiro de 2022 e 08 de janeiro de 2023, de conteúdos desinformativos a respeito do funcionamento de instituições públicas nacionais, contextualmente atrelados a conteúdos incitatórios à violência e à ruptura do regime democrático brasileiro”.
Embora ressaltem que “tem plena consciência do valor fundamental das liberdades de expressão, jornalística e de radiodifusão no Brasil, em especial considerando nosso trágico histórico, ainda recente, de ditaduras e de governos autoritários”, os procuradores Yuri Corrêa da Luz e Ana Leticia Absy, responsáveis pela acusação, consideram que houve abuso dessa prerrogativa.
Os procuradores lembram que o serviço de radiodifusão no Brasil depende de concessões públicas, e está por isso submetido a um regime jurídico marcado por limites mais estritos do que válido para outros produtores e difusores de conteúdo, como aquele, por exemplo, de publicações impressas ou da internet. Por depender de um espectro limitado de ondas eletromagnéticas, a rádio só pode ser explorada sob gestão do Estado, estando sob avaliação mais rigorosa do que outros meios, que podem ser utilizados por número indefinido de atores.
Segundo a acusação, as condutas da rádio “tiveram potencial real de incitar atos violentos e de ruptura democrática”, citando como exemplo a tentativa de golpe de Estado no dia 8 de janeiro, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram e depredaram as sedes dos três Poderes em Brasília.
Um longo trecho da acusação, de quase 150 páginas, se dedica a descrever e examinar condutas supostamente ilícitas da Jovem Pan. O grupo reproduz a própria programação da rádio em seu canal no YouTube, de modo que os procuradores puderam facilmente ter acesso à programação, concentrando-se em quatro programas de grande sucesso, “Os Pingos nos Is”, “3 em 1”, “Morning Show” e “Linha de Frente”.
A Jovem Pan adotou um modelo de jornalismo fortemente marcado por análises e comentários políticos. Em geral, um âncora faz uma breve apresentação de uma notícia, e então o tema passa aos analistas, que são os verdadeiros protagonistas dos programas.
Segundo a acusação, estes comentaristas, embora leigos, sistematicamente “veicularam discursos peremptórios, capazes de minar a confiança das pessoas na higidez do processo eleitoral em curso e de alimentar a sensação de que viveríamos em uma anomia, com ‘ilegalidades’ e ‘inconstitucionalidades’ supostamente praticadas por diversas autoridades brasileiras sendo citadas diariamente sem qualquer fundamentação”.
As dezenas de acusações listadas pelo MPF dividem-se em quatro categorias: 1) Veiculação de conteúdos desinformativos sobre a lisura dos processos democráticos realizados no país e sobre o funcionamento dos Poderes constituídos; 2) Veiculação de conteúdos incitatórios à desobediência à legislação e a decisões judiciais, pela população em geral e por forças policiais; 3) Veiculação de conteúdos incitatórios à rebeldia, à indisciplina e à intervenção das Forças Armadas brasileiras sobre as instituições e os Poderes civis constituídos: 4) Veiculação de conteúdos incentivadores e legitimadores da subversão da ordem política e social e de manifestações ilegais.
Incontáveis comentaristas citados pela ação insistiram não haver transparência nem confiabilidade no processo eleitoral brasileiro, e alguns casos listados pelo MPF chamam mais atenção. Por exemplo, o comentarista Caio Mastrodomênico – cuja formação é em Odontologia – disse sem nenhuma prova no dia 10 de novembro de 2022 que todos os países que, como o Brasil, utilizam urnas eletrônicas, “acabam exatamente com este esse resultado”, em relação aos números da eleição presidencial realizada 10 dias antes.
Vários comentaristas defendem uma insubordinação a ordens judiciais e pedem mais ou menos explicitamente uma intervenção militar ou uma revolução no país. O próprio Mastrodomênico afirmou no dia 2 de dezembro que “a única maneira de restaurar a ordem é através do caos”.
Outro comentarista, Fernão Lara Mesquita, afirmou no ar que, ao reconhecer o resultado das eleições, o Judiciário brasileiro só deixava aberto “para o sem voz o caminho da violência, o caminho da pancada, da greve, do bloqueio, do que for (...) Eles estão desmoralizando a própria democracia e jogando gasolina na fogueira da insegurança nacional, estão fechando as saídas institucionais das crises e deixando abertas apenas as portas da violência”.
Paulo Figueiredo, uma das vozes mais agressivas, chegou a propor até mesmo uma “guerra civil” como alternativa ao alegado impasse institucional. “Ou a gente aceita uma eleição sem transparência, sem legitimidade, sem confiança da população, ou a gente aceita tudo isso, e abaixa a cabeça, ou a gente vai ter guerra civil”, disse no dia seguinte à eleição, antes de concluir: “Então que tenha guerra civil, pô! Mas que porcaria de frouxidão é essa”.
Pedindo uma intervenção militar, o mesmo comentarista afirmou no dia 22 de dezembro de 2022: “Vocês [Forças Armadas][ vão defender a pátria, e vai haver reação de vagabundo. Ué, passa o cerol [matem], pô! Vocês são treinados pra isso”.
Por diversas afirmações como estas, o MPF entende que a Jovem Pan violou o artigo 53 do Código Brasileiro de Radiodifusão, de 1962. Este determina ser um abuso o emprego do rádio para, entre outros, “incitar a desobediência às leis ou decisões judiciárias”; “fazer propaganda de guerra ou de processos de subversão da ordem política e social”; “insuflar a rebeldia ou a indisciplina nas Forças Armadas ou nas organizações de segurança pública”; “veicular notícias falsas, com perigo para a ordem pública, econômica e social”; e “colaborar na prática de rebeldia, desordens ou manifestações proibidas”.
Segundo o MPF, a ação “não se volta contra discursos que legitimamente fazem parte ordinária dos dissensos políticos e ideológicos de sociedades plurais, mas sim busca a devida responsabilização de quem, praticando graves atos ilegais, abusou de outorgas de serviço público e desvirtuou os princípios e as finalidades sociais que lhes dão lastro”.
O MPF pede o cancelamento apenas das três outorgas de rádio que a Jovem Pan detém em São Paulo e Brasília, mas não abrange nem o canal de TV por assinatura e nem o YouTube. O pedido só se refere às rádios “pelo fato de a radiodifusão constituir um serviço público, concedido ou permitido pela União a particulares interessados em explorá-lo”, diz MPF. O conteúdo das rádios é reproduzido nacionalmente em 103 empresas que atuam como as suas associadas.
Além da cassação, o MPF pede que a Jovem Pan seja condenada ao pagamento de R$ 13,4 milhões como indenização por danos morais coletivo, e que a Justiça Federal obrigue a emissora a veicular, ao menos 15 vezes por dia entre as 6h e as 21h durante quatro meses, mensagens de dois a três minutos com informações oficiais sobre a confiabilidade do processo eleitoral.
Procurados pela LJR, nem o MPF e nem a Jovem Pan quiseram se manifestar. A defesa da rádio veio principalmente por meio de um editorial divulgado no mesmo dia do anúncio do processo intitulado “Atentado contra a democracia”.
De quatro parágrafos, o texto diz que o grupo é atacado por defender posições conservadoras. “A Jovem Pan ousou tornar evidente seus princípios conservadores e, por isso, é atacada. A Jovem Pan ousou questionar, criticar e mostrar que não há apenas uma única visão de mundo e, por isso, é atacada. A Jovem Pan ousou se transformar na voz de milhões de brasileiros e, por isso, é atacada”, diz o editorial.
O texto lembra que “a liberdade de imprensa está resguardada pela Constituição — a mesma Carta que, aliás, garante ao cidadão o direito de questionar, de criticar, de pensar e de manifestar livremente suas ideias”. Segundo o grupo, “justamente por exercer esse papel e por dar voz às ideias de parcela significativa da população é que a Jovem Pan tem sido sistematicamente perseguida. Uma empresa cuja idoneidade é inquestionável, uma emissora cujos serviços prestados à sociedade brasileira preenchem páginas e mais páginas da história do Brasil está sob ataque, justamente, por ousar ser aquilo que se espera: livre, independente, diversa e crítica”.
Segundo a Jovem Pan, o que está em questão neste processo “é o seu direito de questionar e de ter um veículo de imprensa que represente o que você pensa e que respeite a pluralidade de ideias e o contraditório. É sobre viver em um país que não usa a democracia como instrumento para a supressão dos direitos dos cidadãos”.
Por fim, a rádio diz que “não é aceitável que a sociedade brasileira dê respaldo para que grupos criminosos que atuam nas sombras, escondidos atrás de avatares em redes sociais, façam terrorismo com empresas para promover o estrangulamento financeiro de um grupo de mídia. Menos aceitável ainda é que representantes do Estado façam coro a esse movimento usando narrativas falaciosas e tendenciosas para legitimar o assassinato de reputação de uma empresa que sempre arcou com todas as suas responsabilidades. A Jovem Pan nunca se desviou de seu compromisso com o Brasil e com os brasileiros. E não o fará agora. Você não deve se desviar de seu compromisso com a sua cidadania”.
Além do editorial, a Jovem Pan tem levado ao ar a opinião de juristas conservadores, que dizem que o processo viola o direito de liberdade de expressão expresso na Constituição, sem no entanto discutir as limitações a este existentes no marco relativo ao direito de radiodifusão.
No dia 3 de julho, por exemplo, a emissora levou ao ar um debate onde só participaram vozes em sua defesa. Na ocasião, o conhecido jurista conservador Ives Gandra chamou o processo de “censura”. “Os pulmões da sociedade tem que ser a imprensa. No momento atual, estamos vivendo, depois uma luta de redemocratização, hoje há um comando do que democrático do que não é. Aquilo que você pode dizer e o que não pode. Isso traz o perigo de poder fazer o debate amplo, com situação e oposição. A liberdade de expressão está sendo atingida”, afirmou.
O ex-ministro do Trabalho Almir Pazzianotto concordou com o colega. “Estamos vivendo uma ameaça direta ao regime democrático a um órgão livre da imprensa. Espero que se atentem ao risco que corremos de retrocesso. Sem imprensa livre não há regime democrático”, disse.
Esta foi também a posição do jurista e político conservador (União Brasil) Fernando Capez. “Você usa a narrativa da defesa da democracia para afrontar ela. A livre expressão do pensamento e da atividade intelectual de comunicação não pode ser limitada por qualquer tipo de interpretação”, afirmou no debate.
Em nota, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que representa as emissoras de rádio e TV, disse que considera “muito preocupante” a ação civil pública ajuizada pelo MPF. “O cancelamento de uma outorga de radiodifusão é uma medida extrema e grave, sem precedentes em nosso Estado Democrático de Direito. A liberdade de programação das emissoras é fundamental para o livre exercício do jornalismo e para a existência do pluralismo de opinião, que devem ser sempre preservados”, afirmou.
A despeito dos ataques ao processo, três especialistas independentes em liberdade de expressão e censura consultados pela LJR afirmaram que a ação do MPF é bem fundamentada e que a lei brasileira proíbe a veiculação sistemática de conteúdos como aqueles pelos quais a Jovem Pan é processada.
Especialista em liberdade de expressão na internet, o professor de Direito no Insper Ivar Alberto Hartmann afirmou que “dentre as respostas que as instituições brasileiras deram à disseminação desenfreada de desinformação nos últimos dois anos, essa é uma das que está mais bem apoiada na legislação”.
Hartmann diz ver problemas em outras ações do sistema de Justiça brasileiro para combater a desinformação, citando como exemplo questionável as decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que ordenaram que a Jovem Pan precisava dar direito de resposta ao então candidato Luiz Inácio Lula da Silva durante as eleições do ano passado. Segundo ele, os mesmos problemas não são válidos na situação atual.
“Essa ação contra a Jovem Pan é uma das que estão mais bem enquadradas dentro de hipóteses que a legislação prevê com clareza há muito tempo. Se há algum caso [legítimo] de cassação de uma licença de rádio nos últimos anos, claramente é esse. Este é um dos casos mais fáceis de se fazer. Então acho que é bem-vindo”, afirmou.
Embora o principal fundamento do processo, o Código Brasileiro de Radiofusão – que passou a vigorar dois anos antes da instituição da ditadura no Brasil em 1964 –, esteja ultrapassado e tenha artigos que são até mesmo inconstitucionais, algumas acusações contra a Jovem Pan, como “insuflar a rebeldia ou a indisciplina nas Forças Armadas” realmente são constitucionais “e estão muito bem enquadradas”, disse Hartmann.
“Essa hipótese não é apenas compatível com a Constituição, mas se enquadra no que ouvimos em vários dos programas informativos da Jovem Pan”, afirmou.
A historiadora Beatriz Kushnir, especialista na relação entre censura e liberdade de imprensa, afirma que “o rigor da lei é importante para que as pessoas entendam a responsabilidade que têm ao receber uma concessão pública”.
Kushnir disse à LJR que a Jovem Pan desfruta de “uma concessão pública, passível de ser dada e ser retirada. E não é o governo em si, o Executivo, que está fazendo a ação. Quem está pleiteando a ação é o sistema de Justiça, que é independente, e está mostrando que a Jovem Pan não está conseguindo cumprir com o que é a função pública de uma rádio”.
A pesquisadora elogia a forma como o pedido de punição foi formulado, incluindo a previsão de que o conteúdo permaneça na internet para ser acessado por estudiosos, e acrescenta que o processo “não é uma censura, mas é uma forma legítima e reguladora do Estado em dizer que há limites de como a liberdade de expressão pode ser usada. Não existe o direito de distribuir sistematicamente informações falsas”.
Professor de Comunicação Social da Universidade Federal do Mato Grosso, Luãn Chagas há vários anos estuda a programação da Jovem Pan. O pesquisador afirma que a rádio “descumpre totalmente o Código Brasileiro de Radiofusão quando privilegia a desinformação em prol de uma linha ideológica. Ela infringe toda a legislação, infringe todas as normas de conduta ou os códigos deontológicos da própria área de atuação”.
Chagas diz que as posições defendidas pela Jovem Pan “não foram só agressivas, mas pregaram contra o sistema eleitoral brasileiro sem provas e defenderam abertamente uma intervenção militar. Isso foge do escopo do que está dentro do processo de liberdade de expressão. Nesse caso, há um crime contra o regime democrático”.
Para o pesquisador, o caso é importante para favorecer uma discussão dos marcos regulatórios da comunicação no Brasil. Ele observa que não se sabe quem detém cerca de 10 mil concessões de rádio pelo país, e cita uma pesquisa de 2017 que apontou que mais de 70% das rádios brasileiras estão nas mãos de grupos políticos. O pesquisador afirma que não só o Código de Radiodifusão precisa ser atualizado, como é urgente também o debate sobre a regulamentação das plataformas digitais.
“A gente precisa ter uma regulação que preveja algum tipo de punição quando for comprovado que há agentes que propagam a desinformação e informações que são indiscutivelmente mentira. Pode parecer uma coisa muito estatizante, mas, numa sociedade, isso precisa ser regulado”, disse Chagas. “É inaceitável em uma democracia recente como a nossa que haja ataques sucessivos à própria democracia sem qualquer tipo de regulação”.