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Relatório mapeia debate sobre remuneração ao jornalismo por plataformas digitais no Brasil

O debate sobre como as plataformas digitais como Google e Facebook podem pagar por conteúdo jornalístico no Brasil acaba de ganhar um subsídio importante, com a publicação nesta quarta-feira (17 de maio) do relatório “Remuneração do jornalismo pelas plataformas digitais” pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), entidade multissetorial responsável por coordenar as iniciativas relacionadas ao uso e funcionamento da internet no Brasil.

O estudo, escrito a pedido da Câmara de Conteúdos e Bens Culturais do comitê, se propõe a mapear o debate dentro e fora do Brasil sobre a remuneração do jornalismo pelas plataformas digitais. A pesquisa sistematiza quais são os principais pontos de atrito até março de 2023 para o estabelecimento de um marco regulatório no país, com resumos das posições de cada ator na discussão e quais têm sido suas principais ações.

O momento da publicação do estudo é urgente: disputas acirradas envolvem a regulação das plataformas digitais no Brasil, em pauta há mais de três anos. A proposta de legislação, popularizada com o nome PL das Fake News, teve a sua votação no Plenário da Câmara adiada há duas semanas e hoje é incerta se vai acontecer.

Entre os temas do abrangente projeto de lei, cujos temas abarcam desde a punição a big techs por conteúdos como incitações a golpes de Estado à transparência dos algoritmos de recomendação de conteúdo, a remuneração das plataformas digitais ao jornalismo é assunto especialmente contencioso. 

Em meio a várias controvérsias, as plataformas alegam que a lei pode vir a obrigá-las a pagar para agentes de desinformação que se apresentam com verniz jornalístico. Há ainda divergências entre meios de comunicação menores e maiores sobre como deve se dar a distribuição de recursos. 

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As principais opções na mesa são o mecanismo de barganha, isto é, negociações diretas entre plataformas digitais e empresas jornalísticas, ou um 

fundo para o setor, de governança participativa, para financiar o jornalismo. No lançamento do relatório, cogitou-se ainda um híbrido entre os dois.

Como noticiou primeiro o jornalista Guilherme Amado no dia 5 de maio, líderes partidários chegaram a um acordo para retirar o dispositivo sobre o pagamento do jornalismo do pacote. A remuneração por conteúdo jornalístico pode acabar sendo votada separadamente nesta própria semana, junto de um dispositivo que diz respeito aos direitos autorais de artistas.

Além de abordar o debate no Brasil, o relatório, que teve redação e pesquisa da cientista política Marisa von Bülow e coordenação editorial do antropólogo Rafael Evangelista, discute também os principais marcos regulatórios equivalentes no mundo, como é o caso de leis na Austrália e na União Europeia. 

O estudo várias vezes enfatiza ser necessário prestar atenção a especificidades locais. “Até 2022, o debate concentrou-se principalmente em países desenvolvidos”, diz o texto. 

“Trazer esse debate para países em desenvolvimento, como o Brasil, implica refletir sobre os desafios específicos a serem enfrentados. Em um contexto de maiores desigualdades digitais – tanto no acesso como na qualidade do acesso – do que em países desenvolvidos, a crise do jornalismo no Brasil tem impactos que são sentidos de maneira desproporcional pela população que mora em periferias ou em lugares mais isolados”, acrescenta.

Cinco controvérsias

A base para a pesquisa consistiu na análise comparada das iniciativas legais dentro e fora do Brasil, na revisão da bibliografia sobre o tema e na realização de entrevistas com atores-chave, como pesquisadores, ativistas, consultores legislativos e representantes das plataformas digitais.

A noção de que as plataformas digitais devem pagar por jornalismo se dá a partir do entendimento de que, em boa medida, a crise que o jornalismo atravessa hoje é consequência de uma nova situação para a publicidade digital e de novas formas de consumo, produção e distribuição de conteúdo jornalístico. 

“A síntese do argumento a favor de novos marcos regulatórios que obriguem as plataformas digitais a negociar com empresas jornalísticas é: produtores de notícias dependem cada vez mais das plataformas para alcançar suas audiências e angariar recursos de publicidade, mas não são adequadamente compensados pelo uso que estas fazem de seu conteúdo e não conseguem negociar, de maneira equilibrada, sem a intervenção do Estado”, diz o estudo.

Cinco pontos são identificados como fontes especiais de atritos a dividirem os atores no debate. O primeiro deles diz respeito a “quem deve ser beneficiado”, isto é, quais devem ser os critérios mínimos para designar os atores a serem pagos.

Até aqui, as propostas legislativas dentro e fora do Brasil buscam estabelecer critérios mínimos para designar potenciais beneficiários, como o número de empregados ou faturamento, ou o tempo de funcionamento do veículo e a necessidade de adesão a um código de ética.

Todos os critérios são passíveis de crítica: pequenos negócios, pessoas físicas ou recém-ingressantes no mercado podem acabar não contemplados. Por outro lado, a ausência de um filtro para designar quem é profissional pode acabar por permitir que agentes de desinformação tenham acesso a recursos. 

Uma alternativa, como defendem, em propostas separadas, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e a Associação de Jornalismo Digital (Ajor), é a criação de um fundo público, que permitiria o financiamento de atores específicos, como o jornalismo que atendesse a comunidades subrrepresentadas ou desertos de notícias, e que permitisse também financiar projetos benéficos para a sustentabilidade do jornalismo como um todo.

A segunda controvérsia versa sobre quem deve ser responsável por pagar. Não há consenso internacional no vocabulário empregado para determinar os atores que pagam: enquanto a Austrália se refere em sua lei a “plataformas digitais”, a União Europeia utiliza o termo “prestadores de serviços de compartilhamento de conteúdos online”, e o Canadá, onde o projeto ainda está em tramitação, fala em “empresas intermediadoras de notícias digitais". No Brasil, o PL das Fake News 2630 usava a expressão “provedores de redes sociais, ferramentas de buscas e serviços de mensageria instantânea”. 

Mais importante do que a denominação são os critérios de quem será responsável por pagar: isso determina, por exemplo, se só Google e Facebook irão remunerar o conteúdo jornalístico, ou se o projeto de lei também deve incluir outras organizações, desde o Twitter, até o LinkedIn e o Twitch. 

Pagar pelo quê?

A terceira controvérsia diz respeito ao que constitui jornalismo e jornalismo de interesse público. Este tema é importante porque grande parte do que meios de comunicação publicam e que atrai mais público tem relação a entretenimento, como notícias de celebridades, de esportes ou fait divers de toda sorte. Critérios como cliques podem servir para diminuir a qualidade do jornalismo.

Esse ponto também se relaciona à possível negociação de acordos voluntários entre plataformas e empresas de jornalismo. A Austrália adotou este modelo, com acordos confidenciais: isso gera críticas de que não é possível avaliar os impactos da lei, devido à falta de transparência. 

Segundo o relatório, neste caso, a ideia de um fundo pode ser uma solução para o problema, por abrir “outras possibilidades de remuneração, como o financiamento de iniciativas de inovação tecnológica, e de uso de critérios distintos aos da quantidade de conteúdo produzido ou da audiência”.

A quarta controvérsia diz respeito à necessidade de dar mais transparência à atuação das plataformas, em itens como, por exemplo, seu faturamento com publicidade e seus algoritmos para impulsionar determinados conteúdos em detrimento de outros.

Segundo as plataformas, este ponto é sensível porque grande parte destes dados estão protegidos por segredos de negócios, não podendo vir a público. No entanto, segundo o relatório, “números que não podem ser corroborados por uma auditoria independente ou por um órgão regulador torna muito difícil o processo de tomada de decisão sobre o tema da remuneração do jornalismo”.

Por fim, a quinta controvérsia é sobre qual deve ser o papel do Estado nas negociações entre plataformas digitais e produtores de conteúdo jornalístico. A principal proposta para o Brasil tem sido, tal como no caso australiano, a de barganha: os atores negociam entre si, e, se necessário, o Estado exerce papel de árbitro. Esta é a posição defendida pelas principais organizações de comunicação, como os grupos Globo e Folha.

Segundo o CGI.br, “não há, no entanto, consenso sobre se esse é o melhor modelo, considerando, inclusive, as especificidades do contexto brasileiro, em que a livre negociação entre as partes pode ter como resultado uma concentração ainda maior de recursos e de poder em um número pequeno de atores”.

Mais uma vez, a ideia de um fundo setorial público gerido de forma participativa surge como alternativa, na qual o Estado teria papel mais pró-ativo.

Debate para além do Brasil

O debate no Brasil sobre a remuneração do jornalismo acontece de forma acelerada, com desenvolvimentos praticamente todos os dias. 

Isto significa que o estudo, tendo encerrado sua coleta de dados em março de 2023, não contemplou, por exemplo, que a remuneração ao jornalismo aconteça a partir de uma lógica de direitos autorais junto a produções artísticas, tal como é a proposta que ganhou mais força nas últimas semanas. Congressistas dizem que a votação do projeto de lei pode acontecer a qualquer momento, mas é incerto quando isso de fato acontecerá.

No evento de lançamento do relatório, a autora von Bülow disse que a equipe considerou em adiar a publicação, mas preferiu por lançá-la logo de modo a conseguir intervir no debate.

“Pensamos em adiar, pois cada dia havia novidade. mas, para manter o timing, lançamos logo. Talvez possamos fazer atualização daqui a alguns meses, mas lançamos logo para tentar influenciar e melhorar o debate”, afirmou a pesquisadora.

Questionados sobre qual modelo seria o melhor para o Brasil, von Bülow se manifestou favorável a um modelo híbrido que unisse o mecanismo de barganha e o fundo setorial.

Duas pessoas sentadas lado a lado em frente a dois laptops apresentam o relatório

A autora do estudo, a cientista política Marisa von Bülow, ao lado do coordenador editorial da iniciativa, o antropólogo Rafael Evangelista

“Um fundo pode ser uma solução ruim. A resposta pode estar em algo híbrido. [A política] pode ser pensada a partir de dois objetivos diferentes”, disse ela. “Teria a barganha, seguindo lógica canadense, levando em consideração a questão da pluralidade da notícia, mas, ao mesmo tempo, um fundo que permita pensar no setor e ter política de fomento. No mundo ideal, seria um modelo híbrido. Mas falta amadurecer esse diálogo. Não sei de nenhum caso de modelo híbrido”, disse ela.

Ao seu lado, o coordenador editorial Evangelista completou que “não vê nenhum problema em o Brasil ser pioneiro”.

A despeito de sua atenção a um contexto nacional específico, o relatório também pode ajudar pessoas em outros países a pensarem como as plataformas digitais podem pagar pelo jornalismo em seus próprios países. Como diz a autora no primeiro capítulo, novos projetos de lei têm sido apresentados em diferentes países que olham uns para os outros em busca de exemplos e ideias. 

“Os desafios são globais, e o Brasil é uma de suas principais vitrines: o que for decidido no país terá enorme impacto na América Latina e em outras regiões”, afirma o estudo.

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