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Rede chilena Mi Voz propõe ‘ágora do século 21’ com jornalismo cidadão e cobertura regional

*Esta reportagem faz parte de um projeto especial do Centro Knight sobre Inovadores no Jornalismo Latino-Americano e Caribenho.


Em 2018, o acesso à internet e a possibilidade de se expressar por meio das diversas plataformas e redes sociais como blogs, Tumblr, Facebook e Twitter são quase fatos dados para uma parcela significativa da população latino-americana.

Em 2005, porém, o cenário era outro. O alcance da internet se expandia devagar, mas definitivamente, e os blogs eram uma invenção recente que começava a transformar a produção de conteúdo online. No Chile, o comunicador social Jorge Domínguez e a desenhista industrial Paula Rojo viram nessa revolução em ato a oportunidade de atuar sobre algumas questões que lhes inquietavam, como a concentração midiática e a possibilidade de construir novas realidades a partir do jornalismo. Assim criaram a rede de diários online Mi Voz, que inovou ao investir em jornalismo cidadão e na cobertura regional fortemente conectada ao território.

Hoje com 15 meios digitais distribuídos em 14 regiões chilenas, Mi Voz se baseia na colaboração voluntária de “correspondentes cidadãos”, que escrevem sobre as questões que afetam as comunidades onde vivem. A rede também tem uma equipe de cerca de 30 jornalistas e editores que produz conteúdo regional e nacional e coordena o material enviado pelos correspondentes nos territórios.

Segundo Domínguez, gerente-geral da rede, a primeira razão de ser de Mi Voz foi criar uma alternativa à concentração midiática no Chile, uma das mais altas na América Latina, segundo um estudo de 2016. O estudo apontou que a situação no mercado de imprensa do país é de um “virtual duopólio” dos grupos El Mercurio e La Tercera (Copesa), que concentram 80% dos leitores e 83% da publicidade no setor, além de terem um forte controle da imprensa regional.

“Chile é um país extenso subdividido em regiões e com uma capital, Santiago, muito centralizada, onde vivem aproximadamente 40% da população chilena”, disse Domínguez ao Centro Knight. “Mas os 60% que vivem nas regiões tinham essencialmente um grupo midiático que lhes dava informação, que era a cadeia Mercurio. Nascemos em parte como uma alternativa a essa concentração.”

Mi Voz também buscou sanar “a urgência de que a cidadania protagonizasse a conversa que constrói a cidade”, colocando-se como uma “ágora do século 21”, disse Domínguez. “Nos pareceu uma tremenda possibilidade convidar cidadãos e cidadãs a vir a campo e ser parte da construção da realidade do território em que vivem”, afirmou.

Contribuição cidadã pelo jornalismo

Esse convite à cidadania foi feito pela primeira vez em Arica, cidade de 180 mil habitantes na ponta norte do Chile, na fronteira com o Peru. Lá eles realizaram as primeiras oficinas de capacitação de correspondentes cidadãos, das quais participaram 600 moradores. “Convidamos todos os grupos de interesse: estudantes, indígenas, professores, empresários, pescadores; a maior variedade possível, que nos permitisse ter o leque completo para que a conversa territorial fosse mais rica, não a conversa das elites”, disse Rojo, gerente de clientes de Mi Voz, ao Centro Knight.

Essa primeira formação se tornou o modelo para as seguintes, realizadas antes da abertura de cada um dos meios da rede, até 2012. Nas oficinas, os futuros correspondentes eram apresentados às possibilidades oferecidas pela internet, desde o email até os blogs e as redes sociais, além da formação para o jornalismo cidadão. “Muitíssimos não tinham um endereço de email”, lembra Domínguez.

“Ensinávamos como usar blogs a quem quisesse criar seus próprios canais, e ao mesmo tempo ensinávamos o que significa ser um correspondente cidadão”, lembra Rojo. “Como se responsabilizar pelo fato de que você é a pessoa que fala, com nome e sobrenome, não com um pseudônimo, como se constrói uma nota e, mais importante, como construir notícias que sejam uma contribuição para a comunidade onde você está.”

A vontade de investir na contribuição cidadã por meio do jornalismo para o desenvolvimento dos territórios foi outro ponto importante para a criação de Mi Voz. Domínguez e Rojo lembram que no início da rede eles examinaram durante meses as primeiras páginas de jornais regionais de todo o país e encontraram uma cobertura focada quase exclusivamente em crime e fofocas sobre celebridades.

“Não havia uma manchete que construísse uma realidade que fosse relevante à comunidade que lia aquele meio”, disse Rojo.

“Fazíamos as oficinas e mostrávamos as primeiras páginas [de meios regionais chilenos], que eram terríveis”, lembra Domínguez. “Perguntávamos às pessoas se essa era a realidade com a qual elas queriam viver, e a maioria, se não todas, diziam que não. Há muitas outras coisas que não são objeto de atenção dos meios. Pareceu-lhes muito sedutor trazer um relato na construção da realidade que era certamente mais positiva.”

Um exemplo, segundo Rojo, pode ser a cobertura de um acidente. “Se neste acidente morreu uma pessoa relevante para a cidade, por que não, em vez do acidente, destacar a pessoa relevante e a contribuição que ela fez ao território? Assim damos uma abordagem que nos permita construir algo valioso, e não ficamos no mórbido, que no fim das contas não leva a nada.”

Com essa proposta e com os 600 correspondentes cidadãos formados em Arica, foi lançado o primeiro meio da rede, El Morrocotudo, em setembro de 2005. O modelo do diário digital e das formações com moradores do território foi repetido em outras 13 regiões do Chile até 2012, quando foi criado El Magallanews, o meio mais recente da rede.

“Entre 2005 e 2012, trabalhamos com cerca de 30 mil chilenos nessa estrutura de formação”, disse Domínguez. “Foi maravilhoso porque nos permitiu conhecer profundamente cada região do Chile, conhecer sua diversidade e dar voz a quem não tinha voz.”

O processo editorial

Cristian Mena, atual editor geral da rede Mi Voz, é um dos 30 mil que foram formados como correspondentes cidadãos. “Comecei quando era estudante de jornalismo”, contou ele ao Centro Knight. “Como os trabalhos [da universidade] ficariam na sala do professor, eu os publicava no El Morrocotudo, porque também sou de Arica.”

De correspondente, Mena foi contratado como repórter e depois passou a editor do meio de sua cidade. Conhecendo o processo editorial “de fora para dentro”, ele participou da criação de meios da rede em outras cinco regiões chilenas. Mena também passou pela área comercial de Mi Voz, trabalhando com os clientes publicitários, e hoje coordena o conteúdo editorial dos 15 meios da rede.

Ele explica que a convocatória para novos correspondentes cidadãos está sempre aberta, e quem deseja escrever para algum meio da rede Mi Voz deve apenas se registrar pelo site do meio em questão. A equipe entra então em contato com o candidato a correspondente e lhe envia um breve guia com orientações editoriais referentes à forma e ao conteúdo. Entre as orientações está a necessidade de que o texto responda às perguntas básicas do jornalismo (o quê, quem, quando, onde, como e por que), traga a opinião da pessoa que escreve e uma proposta construtiva para solucionar o problema posto.

Os editores acordam com os correspondentes a periodicidade das publicações –uma vez por semana, por quinzena, por mês. Ao receber o material enviado pelo correspondente, os editores o revisam, checam as informações apresentadas e cuidam para que não haja algo por que o diário possa ser responsabilizado judicialmente, como plágio, violações de direitos autorais ou calúnias, disse Mena, lembrando que a rede Mi Voz é regida pela Lei de Imprensa chilena.

Os correspondentes cidadãos são voluntários, e com a popularização das redes sociais, houve uma diminuição nas contribuições para os diários de Mi Voz em relação aos primeiros anos da rede. Embora tenham começado com 30 mil correspondentes, Domínguez estima que a rede conte hoje com a participação de cerca de cinco mil a cada ano.

“Quando começamos, não havia Twitter nem Facebook, portanto não havia tantos canais pelos quais as pessoas podiam se expressar”, avalia Rojo. “Quando aparecem esses outros canais, diminui muito a quantidade de correspondentes. Temos um processo de convidá-los, fazer com que sintam que o diário é deles e não nosso, e que seu conteúdo é relevante para o que se está construindo.”

Para contornar essa queda na participação cidadã e aproveitar o conteúdo produzido nas novas plataformas, os meios da rede Mi Voz hoje também fazem curadoria de posts nas redes sociais e nos próprios diários. “Às vezes um correspondente não manda algo, mas como o seguimos nas redes sociais pedimos o conteúdo e o publicamos sem problemas”, disse Mena, destacando que também por isso é importante prestar atenção nas novas vozes regionais que se expressam nas redes sociais. “Vemos que há alguns novos líderes e que estão comentando dentro de nossa linha editorial e os convidamos para participar.”

 “Laboratório de líderes”

Desde as formações iniciais promovidas por Mi Voz, a rede busca conscientizar cidadãos e cidadãs sobre sua capacidade de incidir sobre temas importantes para a região em que vivem. Um dos primeiros impactos nesse sentido se deu com a Campanha Pró Água de Qualidade, lançada pelo diário El Morrocotudo no início de 2007 a partir de uma cobertura sobre os altos índices de minerais tóxicos na água consumida pelos habitantes da região de Arica e Parinacota.

A campanha chegou à então presidente do Chile, Michelle Bachelet, com a entrega de um abaixo-assinado pela mudança na lei sobre o padrão de qualidade da água no país, segundo reportou IPS à época. Vlado Mirosevic, que era diretor de El Morrocotudo à época da campanha, se elegeu como deputado em 2013 pelo Partido Liberal e apresentou como seu primeiro projeto de lei no Congresso chileno a proposta para a adequação da qualidade da água segundo padrões da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Mirosevic não é o único egresso de Mi Voz a se eleger para um cargo político: segundo Domínguez, por todo o Chile há autoridades municipais e regionais que saíram das fileiras da rede de meios. Um deles é Geraldo Espíndola Rojas, atual prefeito de Arica pelo mesmo Partido Liberal do deputado Mirosevic. O jornalista ajudou a fundar e foi o primeiro editor de El Morrocotudo.

Para Domínguez, a conversão de participantes dos diários em autoridades políticas é um “efeito lateral” da proposta da rede. “O convite que fizemos desde o início de Mi Voz foi gerar um espaço que provocasse a cidadania a contribuir à qualidade da conversa e melhorar a cidade desde um meio de comunicação”, afirmou. “Desses grupos emergiram líderes que tiveram a oportunidade de divulgar suas perspectivas, suas ideias, também como uma plataforma para que agrupassem outras pessoas. Naturalmente, tempos depois essas pessoas passaram a ter diferentes papeis na ação social, política e econômica.”

O editor geral Cristian Mena também acredita ser “natural” que a rede seja não apenas formadora de lideranças, mas também veículo de diferentes perspectivas políticas de seus correspondentes cidadãos.

“Cada um tem sua ideologia e seu ponto de vista, e quem quiser se somar aos diários e expô-los abertamente, será bem-vindo”, disse. “O que nós garantimos como equipe editorial é que se escreve alguém de direita, buscamos uma voz interessante do outro lado, ou de todos os lados, para que não pese mais um setor sobre o outro. Podemos escrever sobre cultura, economia, entretenimento, mas sempre vamos ter nosso ponto de vista político em tudo aquilo que expressamos. Nesse sentido, não nos preocupa que as pessoas façam uso político dos meios, porque a equipe editorial vai cuidar para que essa pessoa se responsabilize pelo que escreve e também buscar vozes diversas.”

“Inovar com propósito”

Para Rojo, a principal inovação aportada por Mi Voz foi a aposta no jornalismo cidadão e o uso da lógica dos blogs para construir a rede de meios conectados com cada região chilena em que estão presentes. O momento atual, porém, exige “inovar com propósito para não morrer”, segundo Domínguez.

Isso devido à “agonia do modelo de negócio publicitário”, disse o gerente geral. Este é o modelo que sustenta a rede, que “não tem e nunca teve aportes do Estado ou de mecenas internacionais”, afirmou. “Tudo foi feito por uma empresa através da venda de produtos e serviços publicitários.”

A rede de diários online é um dos ramos ao qual a empresa Mi Voz se dedica. Seus outros braços são um centro de estudos de redes sociais que trabalha com big data, uma agência de incidência digital e uma área de inovação social e tecnológica, explicou Domínguez. Segundo Rojo, apesar do objetivo de que cada unidade da empresa seja autônoma, eles eventualmente precisam alocar fundos vindos dos outros ramos de atuação para subsidiar a rede de meios, “quando a publicidade não alcança cobrir a totalidade” dos custos. (Os fundadores de Mi Voz preferiram não abrir ao Centro Knight seus custos de operação ou a receita anual via publicidade.)

Aqui também a expansão das redes sociais afeta Mi Voz, já que estas estão ficando com a maior parte da torta publicitária que até poucos anos atrás iria para meios como os da rede, comentou o editor geral Cristian Mena. “Então, se não mudamos o modelo para torná-lo mais atraente e economicamente sustentável, pode ser que termine uma bela história e tenhamos que baixar a cortina”, afirmou.

Para evitar que isso aconteça, Mi Voz está testando alguns projetos-piloto que ajudem a responder a pergunta colocada por Domínguez: “Como fazer algo que aporte valor à sociedade e como recuperar economicamente este valor?” Como os projetos estão em fase de testes, Domínguez e Rojo preferiram não dar detalhes sobre o que consistem, mas deram pistas de que se trata não só de estabelecer novas fontes de renda como também experimentar novas maneiras de produzir e apresentar o conteúdo dos diários online.

“Os meios têm que ser entendidos como bens públicos”, disse Domínguez, indicando que esse aspecto é determinante nas transformações em ato na rede Mi Voz. “Pode haver uma dimensão privada, mas disponibilizado como bem público, como uma praça, a serviço da comunidade, não do interesse do dono ou do financiador.”

Para Mena, “o maior desafio é nos reinventar sem perder a linha histórica de Mi Voz, de ser uma ágora e um lugar de maior liberdade, de construção, com a identidade do território”. Nesse desafio está também a incorporação de outros formatos, como gráficos, vídeos e memes, de maneira a “captar muito melhor a atenção e informar de modo diferente, não apenas com a escrita, que tem sido nosso forte. Seguir sendo uma escola de líderes, mas com habilidades mais desenvolvidas, agora que os celulares facilitam muito”, disse ele.

As transformações tecnológicas estão movendo mundos em toda a indústria de notícias, fortalecendo inclusive o jornalismo cidadão que é a base dos meios de Mi Voz. Mena encara esse fenômeno como uma “volta às origens” do jornalismo. “Em sua origem, o jornalismo era um ofício, depois se profissionalizou e chegou à cátedra universitária”, observou o editor.

O jornalismo cidadão, então, coloca um desafio aos jornalistas profissionais, acredita ele. “Noto com muitos colegas que a universidade prepara jornalistas para ser soldados e não engenheiros da comunicação. E este é um grande desafio, que um meio tenha mais engenheiros da comunicação, jornalistas com habilidades filosóficas, éticas, sociológicas, porque será exigido mais do que gerar conteúdo, como também administrar o conteúdo produzido pelos cidadãos. Hoje, com a tecnologia, o que resta aos profissionais da comunicação é administrá-la muito melhor, para que seja uma contribuição à sociedade.”


A série "Inovadores no Jornalismo", que é possível graças ao generoso apoio da Open Society Foundations, abrange as tendências e as melhores práticas da mídia digital na América Latina e no Caribe. Ele continua nossa série anterior, transformada em ebook, Jornalismo Inovador na América Latina, ao analisar as pessoas e equipes que lideram iniciativas inovadoras de reportagem, narrativa, distribuição e financiamento na região.

Nota do editor: Essa história foi publicada originalmente no blog de jornalismo nas Américas do Centro Knight, o predecessor do LatAm Journalism Review.

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