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Reformas do Código Penal cubano intensificam a repressão ao jornalismo e criminalizam o financiamento estrangeiro de meios independentes

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  • 23 Maio, 2022

Por Marissa Galicia* e César López Linares

Em 15 de maio de 2022, a Assembleia Nacional de Cuba aprovou reformas ao Código Penal que, segundo especialistas, poderiam criminalizar ainda mais o trabalho de jornalistas independentes na ilha e permitir que o governo cubano continue atacando a cobertura jornalística desfavorável ao Estado.

A aprovação dessas reformas, que também impedem grupos independentes de mídia de receber financiamento estrangeiro, coloca os jornalistas em perigo iminente e os deixa procurando opções de como continuar.

Os meios independentes e o jornalismo dependem de financiamento estrangeiro porque Cuba só financia meios administrados pelo governo, que não o retrata de forma negativa. O financiamento estrangeiro inclui a ajuda de organizações fora de Cuba que apoiam meios de comunicação e jornalistas independentes.

Interior of Cuba's National Assembly

Assembleia Nacional de Cuba aprovou a reforma penal no dia 15 de maio. (Foto: Instagram da Assembleia Nacional de Cuba)

 

 

“A maioria dos sites de notícias começa em Cuba, mas depois passam a ser editados fora de Cuba devido a problemas governamentais e da internet”, disse Circles Robinson, editor do Havana Times, à LatAm Journalism Review (LJR). O Havana Times agora é editado na Nicarágua, mas a maioria de seus jornalistas e colaboradores vive em Cuba.

A plataforma multimídia de jornalismo independente elTOQUE é outro exemplo do tipo de meio que seria afetado por essas reformas. O site funciona por meio de doações e fundos de iniciativas internacionais como Fondo VelocidadMEEDAN International Fact-Checking Network.

Da mesma forma, a revista digital Periodismo de Barrio recebe financiamento de embaixadas estrangeiras de países como Holanda, Noruega e Suécia em troca da realização de projetos editoriais, conforme consta em seu relatório de transparência financeira.

A conectividade à internet é outro problema enfrentado pelos jornalistas. Como o único provedor de internet em Cuba é administrado pelo governo, a maioria dos sites está bloqueada. Isso significa que os sites de notícias independentes não são facilmente acessíveis aos cidadãos cubanos. Para acessar os meios cubanos independentes, os cidadãos devem usar VPN (Rede Privada Virtual, na sigla em inglês), que contornam as restrições.

“Por enquanto, as pessoas que usam VPN podem ver o que está sendo escrito em meios independentes e alternativos. No entanto, [o governo e os militares] têm uma vigilância muito boa”, disse Robinson.

Uma alternativa às VPNs são os “pacotes”, um terabyte semanal de conteúdo que pode incluir conteúdo de notícias, filmes, programas de TV, livros e muito mais, distribuídos por meio de discos rígidos externos em todo o país. Como menos de 5% dos lares cubanos têm conexão à internet, os pacotes são uma opção acessível.

“Toda semana, curadores não identificados compilam uma seleção de conteúdo e a entregam por meio de uma rede complexa de centenas de distribuidores que, como os antigos jornaleiros, entregam o pacote na porta de seus assinantes”, escreveu Emilio San Pedro, da BBC News.

O Havana Times não foi restringido pelo governo, o que significa que a população cubana pode acessar e ler livremente seus artigos. A principal razão pela qual não foi bloqueado é porque o governo não conseguiu rastrear de onde vêm seus fundos, disse Robinson. Dessa forma, o governo não tem como saber se recebe financiamento externo.

Além do fato de que os sites de notícias independentes são de difícil acesso, os cidadãos cubanos dificilmente usam seu tempo muito limitado na internet para ler artigos de notícias. “O tempo na internet é limitado, então as pessoas o usam para encontrar medicamentos na dark web, como aspirinas, ou para se comunicar com a família”, disse Robinson.

Entre os artigos do código penal que podem afetar a liberdade de imprensa em Cuba está o artigo 143, que criminaliza especificamente qualquer valor monetário usado contra o Estado.

De acordo com este artigo, qualquer pessoa ou organização, nacional ou estrangeira, que "apoie, encoraje, financie, forneça, receba ou tenha em sua posse fundos, recursos materiais ou financeiros, para o pagamento de atividades contrárias ao Estado e à sua ordem constitucional, incorre em pena de privação de liberdade de quatro a dez anos”.

“Este artigo que ataca diretamente o financiamento está intimamente relacionado com algo de que sempre nos acusaram, de que somos mercenários. No código anterior, o mercenarismo era descrito como um crime relacionado a ações bélicas e guerrilheiras, o que obviamente não se aplicava a nós”, disse à LJR Camila Acosta, correspondente em Cuba do jornal espanhol ABC.

“Agora sim, agora isso fala especificamente de ações que são financiadas para contrariar a ordem constitucional. E para eles já sabemos que qualquer coisa, uma crítica, já é considerada algo que vai contra a ordem constitucional.

O artigo 185.1 estabelece pena de prisão e multa para “quem ameaçar, caluniar, difamar, injuriar ou de qualquer forma afrontar ou ofender, verbalmente ou por escrito, em sua dignidade ou decoro, funcionário ou autoridade pública ou seus agentes ou assistentes, no exercício de suas funções ou por ocasião ou para fins delas”.

The Havana Times home website

Havana Times não foi reprimido pelo governo porque não foi possível rastrear a origem de seu financiamento. (Foto: Captura de tela)

Da mesma forma, de acordo com o artigo 263.3, há pena de três a oito anos de prisão por “desordem pública”, que inclui a obstrução de vias públicas ou pontos de acesso e a invasão de instalações ou edifícios.

Sob esses preceitos, dezenas de jornalistas foram detidos nos últimos anos enquanto cobriam manifestações ou protestos contra o governo cubano. Uma delas é Acosta, que foi indiciada no ano passado por "desordem pública e instigação a delinquir", depois de cobrir as manifestações de 11 de julho em Havana.

Acosta e muitos outros jornalistas passaram vários meses em prisão domiciliar, vigiados de perto por membros da Polícia Nacional Revolucionária (PNR).

“Acho que há artigos, e este é um deles, que respondem diretamente a eventos relevantes de agitação social ou protestos sociais ocorridos em Cuba nos últimos dois anos”, disse Acosta. “Estou enfrentando acusações de desordem pública pelo protesto de 11 de julho, mas agora se eleva o marco de sanções e o que é entendido como crime de desordem pública fica mais explícito.”

Reforma penal aumenta lista de complicações que afetam meios independentes

Segundo jornalistas cubanos, o objetivo do governo com as reformas aprovadas em 15 de maio é acabar com os meios não governamentais, pois não querem nada negativo escrito sobre eles. No entanto, os jornalistas cubanos sempre enfrentaram a rejeição do regime.

"A mídia sempre foi ilegal (em Cuba)", disse Robinson.

Acrescentou que o governo cubano nunca esteve relacionado com nenhum tipo de meio ou jornalismo, de modo que a aprovação deste código penal não surpreendeu a muitos. Portanto, as consequências para jornalistas escrevendo sobre o governo são amplas.

“[O governo] funciona como a máfia. Eles vão te prender um dia para te interrogar e se mostrarem caras legais, e no dia seguinte eles vão te ameaçar”, disse Robinson.

Além da prisão, outra consequência do trabalho dos jornalistas é o exílio.

Cuban journalists Camila Acosta claps during her house arrest in Havana.

Camila Acosta foi acusada de desordem pública e instigação a delinquir no ano pasado, após cobrir as manifestações de 11 de julho. (Foto: Captura de tela de una transmissão de Facebook Live)

“Eles dão a opção de banimento, com uma viagem ao aeroporto”, disse Robinson. “O governo cubano é tão contra qualquer tipo de imprensa ou informação negativa que expulsa pessoas de seu próprio país.”

O governo cubano também invade escritórios de jornais para prender jornalistas que se manifestam contra o governo.

Essa é apenas uma das muitas táticas de intimidação usadas pelo governo para alertar jornalistas e meios de comunicação a não produzirem trabalhos que os retratem negativamente.

Outra tática de medo utilizada pelo governo cubano é não permitir que jornalistas saiam do país.

“O governo decide se eu saio ou não. Evidentemente, pedi permissão várias vezes e todos disseram não, e em outras ocasiões nem me responderam”, disse o jornalista Abraham Jiménez Enoa à LJR em 2020.

Muitos profissionais deixam o jornalismo e encontram um trabalho mais tradicional para proteger a si mesmos e suas famílias. Outros deixarão o país para sempre enquanto continuam a informar, disse Robinson.

"Muitos de nossos jornalistas do Havana Times foram ativistas no mundo do jornalismo e a pressão que recebem os faz deixar o país e usar pseudônimos", acrescentou.

Embora o jornalismo independente sempre tenha sido considerado ilegal em Cuba, isso não foi explicitamente estabelecido na lei. A gravidade da nova lei penal é que o regime agora tem as ferramentas legais para legitimar ataques à imprensa independente.

“Até agora, jornalistas e ativistas independentes foram punidos por outros crimes definidos no código penal, como desordem pública, resistência ou desacato”, disse Acosta. “Até agora funcionamos à margem da lei, mas não havia uma lei explícita que nos declarasse ilegais [...] Neste momento o regime está contando com a ferramenta que há muito precisava para justificar ir contra todos nós. Claro que estou preocupada, porque é um recrudescimento da repressão.”

Após a aprovação da reforma do Código Penal cubano, o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) condenou a decisão da Assembleia Nacional cubana e expressou grande preocupação.

“Com o novo código penal, as autoridades cubanas continuam a construir um intrincado e perverso regime legal de censura e a desferir um golpe devastador em jornalistas independentes e meios de comunicação”, disse Ana Cristina Núñez, pesquisadora sênior do CPJ na América Latina e Caribe em um comunicado emitido em 16 de maio.

O novo código penal deverá entrar em vigor em 90 dias.

Esta história foi produzida como parte da disciplina “Jornalismo e Liberdade de Imprensa na América Latina” na Escola de Jornalismo e Mídia da Universidade do Texas em Austin.

Marissa Galicia é estudante da Universidade do Texas em Austin, onde estuda Relações Internacionais e Estudos Globais, bem como Estudos Latino-Americanos. Embora não seja estudante de jornalismo, Marissa escolheu seu curso por causa do foco em cultura e notícias internacionais.

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