A sócia e diretora da agência de jornalismo Alma Preta, Elaine Silva, sabia que não podia bater na porta das grandes agências de publicidade sozinha.
"Eles não iam escutar a gente, por causa da nossa audiência, porque eu sou uma só", disse ela à LatAm Journalism Review (LJR).
Já com uma rede de 26 meios digitais independentes espalhados pelo Brasil, com uma audiência total de 2,5 milhões de usuários únicos por mês, a negociação mudava de patamar.
Essa é a proposta da Black Adnet, uma rede que visa aproximar grandes marcas de coletivos e veículos, com o objetivo de ajudar na sustentabilidade e fortalecimento do jornalismo independente.
A rede foi lançada em outubro de 2020, com dez membros, e fundada pela Alma Preta e pela Zygon Adtech, empresa de tecnologia voltada para publicidade. Em menos de um ano, o grupo fez campanhas para grandes empresas como Boticário, Avon, Tim, Google e Facebook.
Inicialmente, os integrantes da rede eram, em sua maioria, sites de mídia negra, especializados na temática racial. Com o tempo, a rede foi ampliando o espectro de participantes, incluindo veículos com foco em públicos periféricos, na questão de gênero e LGBTQIA+ ou na defesa dos direitos humanos.
"Não necessariamente o veículo tem que falar 100% da temática racial, mas precisa ter um recorte de alguma maneira, prestar atenção a esse tema e ter pessoas negras na equipe", afirma Silva, que é uma das idealizadoras da rede. Em resumo, o meio de comunicação e a sua linha editorial devem ter uma sensibilidade para a questão racial.
Para o CEO da Zygon Adtech e idealizador da Black Adnet, Lucas Reis, é importante abarcar sites com outros enfoques, entre outros motivos, para que a rede possa crescer.
"Porque um dos problemas que queremos resolver é que há poucos publishers que produzem conteúdo afrocentrado", disse ele, em entrevista à LJR.
"A gente tem ampliado para olhares que sejam minorizados. Por exemplo, o [meio de comunicação] Nós, Mulheres da Periferia. Não necessariamente são pessoas negras, mas são da periferia. O mesmo com veículos com enfoque de gênero. A gente nasceu, até por isso se chama Black Adnet, com olhar afrocentrado e, nesse momento, a gente tem incorporado outros olhares de grupos minorizados", explica Reis, que também é presidente do Comitê de Diversidade e Inclusão na IAB Brasil (Interactive Advertising Bureau).
Por enquanto, toda equipe que trabalha na rede é da Alma Preta e da Zygon, porque o projeto está incubado nas duas empresas. A Zygon entra com a parte tecnológica e comercial, e a Alma Preta, com a ponte com a mídia independente.
Desde o lançamento da Black Adnet, a coordenadora de projetos da Alma Preta, Marina Nascimento, tem feito uma busca ativa para incluir novos membros na rede. Segundo ela, um dos diferenciais do grupo é reunir veículos de todo o país.
"O objetivo é nacionalizar e sair dessa concentração [de mídia e recursos] no Sudeste e Sul", explicou ela à LJR.
"A maioria dos conteúdos produzidos pelas agências de publicidade não visa a população negra e periférica. E essa é a maioria do país, essa é a cara do Brasil, e essa é a nossa audiência,” afirma Nascimento. “Então trazer publicidade para dentro da rede é, de certa forma, aproximar essas marcas da nossa audiência, que consome o ano todo, não só em alguns períodos [como mês da Consciência Negra].”
E como a Black Adnet funciona? A Alma Preta e a Zygon fazem o contato e a negociação com as agências de publicidade e apresentam as campanhas para a aprovação da rede. Cada meio de comunicação então escolhe se quer ter aquele anúncio no seu site ou se considera que aquela campanha fere algum dos seus valores e prefere não veicular.
Os pagamentos são distribuídos de forma proporcional à audiência de cada veículo, porque as agências oferecem um valor a cada mil visualizações, no caso dos banners e peças publicadas nos sites. Quando o tipo de publicidade é diferente, como email marketing, produção de conteúdo em geral, como podcast, textos ou materiais para redes sociais, a distribuição é outra. E o veículo da rede responsável pela criação do material ganha pela produção e pela veiculação.
Embora os meios de comunicação possam escolher quais campanhas querem veicular, as empresas ou agências publicitárias não podem optar pelos sites da rede nos quais desejam anunciar. Ou seja, a venda é feita em pacote: a audiência de cada veículo é sigilosa, e apenas o volume total é apresentado aos clientes.
A Alma Preta e a Zygon participam ainda da criação das campanhas, para garantir que elas estejam alinhadas aos valores da rede. "Às vezes eles passam a ideia e a narrativa da campanha e nós damos uns toques para o criativo da agência, temos essa liberdade", conta Silva.
Além disso, a Black Adnet faz um filtro prévio, para selecionar as marcas que podem anunciar na rede. Isso porque, afirma Silva, é muito comum empresas oportunistas buscarem o grupo após casos de racismo que geram comoção nacional e internacional e quererem se aproveitar de campanhas como Vidas negras importam. Existe ainda um risco de que essas empresas tentem usar a rede para fazer social washing, uma espécie de lavagem da sua imagem após escândalos internos de racismo.
"Várias marcas batem na porta e a gente não dá trela, como a gente vai anunciar para empresas que promovem trabalho escravo, que a pessoa trabalha 12, 14h por dia?", diz Silva, se referindo a empresas de aplicativos de delivery ou de transporte. Anúncios de bebida alcoólica e de cigarro também estão vetados.
A preocupação com quem pode ou não anunciar na rede é grande, afirma Nascimento, porque a maioria dos sites da Black Adnet nunca tinham trabalhado com publicidade, justamente por medo de que isso pudesse prejudicar sua imagem como veículo independente, que luta por causas sociais.
"Colocar uma marca que não dialoga com esses valores pode acabar gerando um ruído ou perda de seguidores e leitores", alerta ela.
Nascimento e Silva reforçam que, para uma marca, anunciar na rede é uma espécie de chancela.
"A partir do momento que a gente se associa à marca, isso dá um peso maior, uma qualificação para a marca, de que ela faz um trabalho sério dentro das temáticas que a gente trabalha. A gente nunca veiculou publicidade no portal, então para uma marca ter um anúncio no site da Alma Preta é um privilégio", diz Silva.
Benefícios para quem participa da rede
Para os anunciantes, uma das principais vantagens da rede é essa transferência de valor dos veículos, comprometidos com a causa racial, de gênero, LGBTQIA+ e os direitos humanos, para a marca, como se fosse um selo de qualidade.
"São sites liderados por pessoas negras engajadas na luta antirracista, então as marcas têm uma relação com esses formadores de opinião, têm um canal direto de relacionamento com um público que é ligado à questão étnica, seja porque de fato é uma pessoa negra ou porque se interessa por esse tema", afirma Reis.
Outro ponto positivo, segundo Reis, é que a rede fornece um ambiente seguro para as marcas, sem desinformação ou conteúdo de ódio, por exemplo.
"É uma questão muito cara para os anunciantes sobre onde a minha marca vai aparecer. E quando entra numa rede como essa você tem a garantia de que são todos publishers idôneos", explica ele.
Por fim, ele cita também o benefício da rede de poder oferecer uma comunicação de massa, para milhões de pessoas, com segmentação. Ou seja, o anunciante escolhe aparecer na rede, mas apenas para pessoas com determinado perfil.
"Esse match acontece de forma automática. [...] Quero anunciar para mulheres do Rio que se interessam por hidratante para cabelos cacheados. Assim que a pessoa acessa um site da rede esse anúncio é exibido. Se for uma pessoa com outro perfil esse anúncio não é exibido. A mídia programática permite essa automação", conta.
Ao mesmo tempo, um diferencial da rede é que ela chega a públicos que veículos tradicionais têm dificuldade de atingir, afirmam os fundadores da Black Adnet. Justamente porque esses meios tradicionais costumam ser chefiados, em sua maioria, por homens, brancos, héteros, cis, de classe média ou alta, de meia idade e da região Sudeste do país, aponta Reis. Enquanto na Black Adnet, o editor pode ser da periferia, mulher, negro, mais jovem e ser do Nordeste, por exemplo.
"Os meios tradicionais não conseguem oferecer esse olhar que é o olhar do minorizado, que é conseguir analisar um acontecimento, como a COVID-19, pelo olhar de quem mora na periferia. Então quem quer se enxergar no conteúdo acaba não conseguindo no mainstream. A rede produz conteúdo para esse público que é a maioria do país e que não consegue se ver ou ter a sua vida refletida no noticiário da grande mídia", diz Reis.
Já para os veículos membros da Black Adnet, uma das principais vantagens é somar as audiências e, assim, ter mais poder de barganha para negociar com as grandes marcas e agências. Isto é, a rede ajuda a furar a bolha publicitária.
De acordo com Reis, "a maioria dos publishers de grupos minorizados não tem acesso a esse mercado publicitário", porque é preciso negociar com os anunciantes, ter uma estrutura profissional na área comercial e de tecnologia, algo que é muito raro nessas iniciativas jornalísticas.
Isso gera um círculo vicioso, alerta Reis.
"Por não ter estrutura, você não tem audiência, por não ter audiência, não tem receita e, como não tem receita, não tem estrutura, e isso recomeça".
O objetivo da rede é justamente interromper esse ciclo e permitir que esses veículos tenham um fluxo de receita contínuo e crescente, que antes não existia. O que, consequentemente, os ajudaria a aumentar suas equipes, produção de conteúdo e audiência e, por fim, aumentar a sua voz e protagonismo.
"O nosso slogan é: mais voz, mais nós. Entendemos que é importante que tenhamos mais espaço, sejamos escutados em primeira pessoa, nós falamos por nós mesmos e não alguém por nós", diz Reis.
Na Black Adnet, a Zygon ajuda os meios de comunicação a estruturar suas áreas de tecnologia e segurança da informação, para que possam veicular os anúncios. Esse suporte contribui para profissionalizar os sites da rede, algo que fica de legado para os membros.
Outro aprendizado que a rede proporciona é a própria experiência de vender anúncios e o conhecimento sobre o mercado publicitário, algo que, em geral, os jornalistas não possuem.
"Os primeiros feedbacks que recebemos [dos meios] foi: 'a gente tinha preconceito de trazer publicidade para o portal e dessa forma a gente excluía uma forma de ganho, então hoje tem mais uma forma, a gente diversificou as fontes de receita'", comemora Nascimento.
Segundo ela, o filtro da rede em relação aos anunciantes é algo que ajuda os jornalistas a abandonarem esse preconceito, porque entendem que é possível veicular propaganda que esteja alinhada aos valores do site.
O fato de ter recursos extras também têm impactos positivos. Para a Alma Preta, os anúncios passaram a formar 8% das receitas totais.
Com os ganhos da Black Adnet, alguns veículos puderam contratar mais profissionais, outros compraram equipamentos para investir em podcasts e oferecer um produto novo. Um dos membros usou os recursos para reformular o site que, do jeito que estava, não atraia leitores e não proporcionava uma experiência interessante, conta Nascimento.
"Eles desenvolveram melhorias, para conseguir trazer mais audiência, mais publicidade e novas formas de ganho", afirma ela.
Essa receita extra, considerando que muitos desses veículos trabalham com equipes voluntárias por falta de recursos, faz uma diferença enorme, diz Nascimento.
"Teve um membro da rede que comentou que, pela primeira vez, eles conseguiram se pagar [remunerar a equipe]. Foi no final do ano, e eles falaram que foi o presente de Natal deles. Isso foi muito importante para nós".