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Sob ataque, jornalismo avança nos anos Bolsonaro, mas hesita diante de fascismo e democracia

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  • 22 novembro, 2022

*Por Moreno Osório, publicado originalmente por Headline e Farol Jornalismo

No dia 1º de janeiro de 2019, posse do presidente Jair Bolsonaro, jornalistas que cobriam o evento em Brasília viveram um dia de cão, nas palavras da jornalista da Folha de S.Paulo Mônica Bergamo. Mal sabíamos que aquele seria o primeiro de muitos. Os (quase) quatro anos seguintes foram exaustivos, perigosos e de muito, mas muito trabalho. Nesse período, o jornalismo brasileiro avançou bastante — ainda que sob pesados ataques. Mas as circunstâncias também expuseram dilemas, novos e antigos, com os quais a profissão ainda vai ter de lidar.

Essa é a percepção de especialistas ouvidos por Headline e pelo Farol Jornalismo, a respeito do jornalismo nos anos Bolsonaro e nas eleições de 2022.

Professor do Departamento de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e um dos líderes do Observatório da Ética Jornalística (ObjETHOS), Rogério Christofoletti avalia que houve muito aprendizado nos últimos quatro anos. Mas não precisava ter sido com violência e danos à saúde mental e física dos profissionais. "A gente não precisava passar por isso", diz. "A gente precisava aprender de uma outra maneira. Não foi bom. Foi ruim, foi péssimo para o jornalismo, esse governo."

Não se trata apenas de uma percepção de Christofoletti. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) acompanha e registra casos de violência contra jornalistas desde 2013, mas nos últimos anos vem dando mais atenção ao assunto. No ano passado publicou a primeira edição de um relatório anual de monitoramento de ataques a jornalistas. O documento expressava uma situação "preocupante que precisa de atenção das autoridades políticas, dos meios de comunicação e da sociedade brasileira". Em agosto deste ano, a entidade informou que os casos de violência grave contra jornalistas aumentaram 69,2% em 2022, quando comparado ao ano anterior.

"O governo Bolsonaro foi desastroso para o exercício do jornalismo. Em outros governos, a gente tinha situações de conflito, mas isso é parte do jogo. O que a gente percebeu nos últimos quatro anos é um conflito exacerbado, estratégico e proposital na linha de descredibilizar a imprensa. Isso foi diferente dos outros governos", disse a presidente da Abraji, Katia Brembatti, acrescentando que os jornalistas precisam ser respeitosos com o presidente, mas o presidente também precisa ser respeitoso com a imprensa e entender o papel do jornalismo e dos jornalistas em uma sociedade democrática.

Não foi, como sabemos, o caso de Bolsonaro. O resultado, segue Brembatti, foi, para além de um número de agressões que vem crescendo ano após ano, problemas de saúde mental, autocensura e muitas vezes uma sensação, por parte dos profissionais, de não se sentir aceito e compreendido pela própria sociedade. "O que é muito triste", observa.

Ou seja, foi um período de fragilidade e exaustão.

Quando vazou um barulho de lata abrindo na transmissão da apuração do segundo turno, o apresentador William Bonner explicou para os telespectadores, de forma descontraída, que havia bebido água, e não outra coisa. Sua colega Renata Lo Prete confirmou, rindo. Muito comentado na internet, o episódio ilustra um final de jornada — eleitoral e de governo Bolsonaro — que se mostrou um alívio para jornalistas. Nos dias subsequentes, os semblantes de apresentadores e comentaristas de redes de TV pareciam mais tranquilos.

A questão é se essa tranquilidade vai durar. Vivemos, ao longo dos anos Bolsonaro, um ambiente atípico de pressão, observa a doutora em Comunicação e professora da Escola da Indústria Criativa da Unisinos e Gerente de Educação na Fiquem Sabendo, Taís Seibt. "Atípica até então, porque a dúvida que fica é se esse não vai ser o 'novo normal', para usar um termo da pandemia", diz. Se levarmos em consideração as agressões sofridas por jornalistas nas coberturas dos bloqueios e manifestações golpistas pelo país, esse estado de tensão permanente parece ter chegado para ficar.

O ambiente hostil ao jornalismo, por outro lado, contribuiu para que observássemos alguns efeitos colaterais positivos. A união da categoria, por exemplo. Christofoletti observa que os jornalistas não são, em geral, unidos. São, sim, muito competitivos. "E em vários momentos os jornalistas se uniram para defender os colegas, para defender veículos de comunicação", lembra. A hostilidade serviu para fortalecer os laços entre profissionais — bem como evidenciar os valores aos quais o jornalismo serve, e qual o seu papel na sociedade.

Mais colaboração

A união apareceu não apenas na defesa de colegas ou da profissão, mas também no seu exercício. Dois grandes exemplos de como a colaboração no jornalismo avançou nos anos Bolsonaro são o projeto Comprova e o consórcio de veículos de imprensa criado para cobrir a pandemia diante do apagão de dados e da omissão do governo federal.

Ambos cristalizam na prática o jornalismo como uma instituição que atua na sociedade e que é dependente da democracia ao mesmo tempo que atua para mantê-la. "Em 2022, o jornalismo tentou jogar mais como instituição. Uma instituição preocupada com a manutenção da democracia, e dependente dela. Houve uma simbiose forte entre esses dois lados. E em 2018, não (havia)", analisa Christofoletti.

Para ele, as próprias instituições não estiveram muito ativas naquele ano. Ele comparou a fala do ministro Alexandre de Moraes logo após o segundo turno deste ano com a de Rosa Weber, que era chefe do TSE em 2018.

Segundo Christofoletti, Rosa Weber foi muito branda. Ele observa que o TSE foi mais forte e combativo em 2022. Assim como o jornalismo. "A gente chegou a ver manchetes da Folha de S.Paulo e do Estadão dizendo 'Bolsonaro mente', 'Bolsonaro falseia'. Isso era impossível de imaginar em 2018". Para Christofoletti esses exemplos ilustram um avanço acelerado.

"É muito complicado você cobrir o poder. E é muito complicado você cobrir de uma maneira normal um governo anormal. Um governo que não concorda em seguir liturgias, não cumpre pactos de trabalho, de postura como um agente público", avalia. Para o pesquisador, o governo Bolsonaro foi coerente nesse sentido: declarou a imprensa como inimiga no primeiro dia de 2019 e só foi simpático a quem estava alinhado com ele.

A doutora em Teorias e Tecnologias da Comunicação e professora de Ética e Jornalismo no Departamento de Jornalismo da Universidade de Brasília (UnB) Rafiza Varão concorda que houve, sim, uma curva de aprendizado do jornalismo nesses quatro anos.

Mas faz algumas ressalvas.

Por exemplo, Varão lembra que nas eleições de 2018 a cobertura jornalística estava muito focada em parecer seguir os princípios rígidos que regem, historicamente, a atividade: objetividade, neutralidade, isenção. Mas, como sublinha o jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), Eugênio Bucci, naquele momento, o candidato Jair Bolsonaro já deixava claro que não estava no campo democrático, como a defesa de torturadores, a defesa do golpe de 1964 e de mecanismos de inibição ou de censura da imprensa, por exemplo.

Bolsonaro leaves his car in front of supporters gathered in fenced area

Jair Bolsonaro e seus apoiadores no cercadinho. Fotos: Daniel Marenco/HDLN

Com o passar do tempo foi ficando evidente que Bolsonaro não poderia ser colocado — primeiro como um candidato, depois como uma figura pública — no campo democrático. E então o jornalismo percebeu que algumas práticas e posicionamentos consolidados no exercício profissional teriam de ser revistos. E isso culmina nas eleições de 2022.

Ainda assim o jornalismo caiu em algumas armadilhas.

Instrumentalização de jornalistas

O jornalismo declaratório é uma delas, observa Rafiza Varão, cujas pesquisas abordam o jornalismo sob o ponto de vista da ética. Para quem não é da área, jornalismo declaratório é uma prática questionável, embora muito comum, de apenas reproduzir falas de suas fontes — em especial oriundas de fontes oficiais — de forma acrítica, sem contexto e sem ponderar se o conteúdo é verdadeiro e de interesse público.

Varão observa que as redes sociais estão tomando o lugar das entrevistas na prática desse tipo de jornalismo. A ascensão e o domínio das plataformas no nosso cotidiano fizeram com que atores políticos — em especial os da extrema direita — usassem esses canais como formas de acesso direto aos seus eleitores. O resultado, para a política, é uma campanha eleitoral permanente. E para o jornalismo, o entendimento foi, na avaliação de Varão, "um lugar de fala privilegiado", de maneira a repercutir aquelas declarações em seus próprios produtos. Ela chama a atenção para o papel da TV nessa construção.

"O jornalismo [televisivo] não só printa a fala [do ator público], aquilo que está escrito, mas também lê [o conteúdo da fala] para quem está assistindo à televisão. Assim ele reforça de inúmeras maneiras aquele material. E esse material não é colocado sem ser de uma forma estratégica", analisa Varão. "Quem o produz, espera que ele vá repercutir também nos meios tradicionais e em outras mídias sociais. Então, no caso do jornalismo declaratório que vem das mídias sociais, o jornalismo brasileiro ainda se encontra num impasse."

O resultado, segue a pesquisadora, é que acaba faltando ao jornalismo capacidade de discernimento, de saber quando está sendo instrumentalizado por esses personagens.

"Quando a própria fala se transforma em notícia, muitas vezes o que acaba acontecendo é que nós, jornalistas, somos instrumentalizados pela fonte. E o ator político nas mídias sociais se coloca nesse patamar de ser permanentemente fonte. Ainda mais quando você está falando de fontes oficiais. Isso gera armadilhas pra gente", observa.

Falsas equivalências

Na percepção dos especialistas, a busca cega pelos valores basilares do jornalismo também acabou expondo outra fragilidade do exercício profissional ao longo dos últimos anos: a falsa equivalência, ou falsa simetria.

Christofoletti sublinha que essa é uma questão que o jornalismo ainda não conseguiu resolver. Não porque não haja tentativas, mas porque é realmente difícil. Por quê?

"Porque a falsa equivalência afeta um aspecto que é crucial dentro da nossa profissão, que é buscar equilíbrio, a equidistância. Eu busco uma distância em que eu fique próximo o suficiente da minha fonte para extrair informações, mas eu tenho que manter uma distância suficiente para ser crítico a ela. É muito complicado estabelecer isso", pontua.

Para Varão, o problema da falsa equivalência se tornou mais agudo com a aceleração dos processos jornalísticos. Ela diz que a instantaneidade não abre espaço para reflexão e tira o espaço da explicação. E não se trata de explicar para o público. Trata-se de uma explicação anterior, a que o próprio jornalista deve ter para poder cobrir determinado acontecimento.

"Muitas vezes, o jornalista não consegue explicar as coisas para si mesmo e acaba ficando na superficialidade. A falsa simetria vem muito dessa superficialidade que não explica as coisas para si mesmo. Se a gente pensa pelo viés da ética jornalística, isso é um problema seríssimo. Porque nós somos responsáveis, inclusive, pela construção da democracia", adverte Varão. "Nós somos um espaço fundamental para que as pessoas entendam quais são os seus direitos, para que a democracia seja representada, para que liberdade de expressão esteja ali, o direito à informação seja respeitado também. Então, quando o jornalista não consegue explicar para ele qual é a responsabilidade dele, o trabalho inteiro fica comprometido".

Varão vê uma ascensão, nos últimos anos, de um jornalismo "que não explica para si mesmo o que está acontecendo". "Não é que ele erre os dados, sobre o acontecimento em si, mas ele erra porque não entende o acontecimento", explica.

Pense em um bloqueio de trânsito em uma grande cidade em função de um protesto contra a fome, por exemplo. Um eventual repórter que olhe para o acontecimento apenas sob o ponto de vista do direito de ir e vir, embora possa fazê-lo com precisão, pode não estar entendendo o que está acontecendo se ignorar os motivos da manifestação. Ao preferir registrar tamanho do congestionamento e coletar depoimentos de motoristas a buscar as razões do bloqueio, o jornalista não "explicará a si próprio" o acontecimento.

Para Christofoletti, o editorial da Folha de S.Paulo do dia 29 de outubro, véspera do segundo turno da eleição, é outro exemplo do dilema da falsa equivalência. Embora observe que se tratava de duas candidaturas muito diferentes, o texto afirmava que a Folha continuaria apartidária. "Mas não se trata de você ter uma adesão partidária. Isso é muito hipócrita da Folha de S.Paulo, pois em outras ocasiões a Folha tomou posições muito claras", critica.

Segundo ele, como a Folha tem um corpo de editorialistas, o texto deve ter passado por muitas mãos, e ao final ficou reticente. Taís Seibt diz que o editorial até estabelece as diferenças, mas "não finca pé". "Acho que essa foi uma expectativa frustrada", afirma.

Entre o fascismo e a democracia

Em entrevista recente ao Nexo, Eugênio Bucci afirmou que certos setores da imprensa ainda acreditam que há um "ponto equidistante entre o fascismo e a democracia". "E isso é um equívoco, é uma ilusão de ótica. Entre o fascismo e a democracia, o jornalismo tem o dever de assumir o partido da democracia", afirmou.

Por outro lado, Bucci acredita que, ao contrário de 2018, a imprensa teve uma postura mais madura, crítica e sólida em relação a Bolsonaro em 2022. "O lado do jornalismo não é um lado partidário. É um lado do paradigma de organização do estado e da sociedade. É o lado da República e o lado da democracia. Isso não pode ser visto como frase de efeito", afirma o professor da USP.

Para a professora e pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Fabiana Moraes, os problemas do jornalismo — especialmente o mainstream, representado pelas tradicionais empresas de mídia — vão além de questões pontuais, como o jornalismo declaratório ou a falsa equivalência. Ela avalia que ao hesitar tratar Bolsonaro como uma figura única, o jornalismo ajudou a corroer o ambiente democrático brasileiro.

Fabiana Moraes entende que não é fácil mudar a maneira de realizar a cobertura de um presidente da República. Mas a tentativa de cobrir Bolsonaro como os outros acabava por normalizá-lo.

"Ele [Bolsonaro] estava quase pedindo 'Não me tratem com normalidade', e acho que um marco para o jornalismo brasileiro é quando ele coloca um comediante no cercadinho, vestido de presidente, para responder às perguntas dos jornalistas por ele, e para jogar bananas nos jornalistas", lembra. Fabiana Moraes acrescenta que "a instituição cercadinho" precisa ser analisada, porque "talvez seja o símbolo dessa tentativa de normalização".

Foram as jornalistas mulheres, afirma Moraes, que começaram a mudar o tom e colocar Bolsonaro em um lugar mais específico. "Eu sinto isso quando elas começam a dizer, tanto para Bolsonaro quanto para pessoas ligadas a ele, 'eu vou terminar de falar e o senhor retoma'. De certa maneira isso passa pela questão de gênero, mas tinha também a figura de autoridade da jornalista", analisa. Para a pesquisadora, a postura e as falas das jornalistas mulheres — em especial as da imprensa tradicional — representam um ponto de inflexão na maneira de como o jornalismo profissional começou a tratar o presidente.

Complexificação do racismo

Moraes também observa outros avanços nesse período. O jeito como o jornalismo aborda o racismo e questões de gênero, por exemplo, deixou de ter um caráter de militância. "A imprensa absorveu um pouco melhor esses temas. Eu acho que há mais disposição de se entender algumas questões de maneira mais complexificada a partir do jornalismo. Não colocá-las em caixas específicas e entender como elas são tentaculares e provocam efeitos em diferentes espaços sociais", observa a jornalista.

Mas a pesquisadora também faz críticas, lembrando que foi necessário o episódio de George Floyd, nos Estados Unidos, para mexer com algumas engrenagens de cobertura jornalística aqui no Brasil. Ela cita uma fala de Helaine Martins, criadora do projeto "Entreviste um Negro", falecida em 2021. Quando perguntada, em uma aula, Fabiana Moraes contou que perguntou a Helaine como era a procura de jornalistas por esse banco de dados. "Ela me disse que em cinco anos do Entreviste um Negro, a vez que eles foram mais demandados foi quando George Floyd foi assassinado. Acho que esse episódio é bem eloquente para pensar como a gente normaliza os assassinatos de pessoas negras em solo nacional", afirma a professora da UFPE.

O papel do fact-checking

Não dá para analisar o jornalismo nos últimos quatro anos sem observar o trabalho das agências de checagem. Embora às vezes possamos ter uma postura pessimista em relação aos resultados desse tipo de prática profissional — afinal, a quantidade de desinformação sempre será muito maior do que a capacidade de checagem do jornalismo —, os especialistas ouvidos pela reportagem concordam: melhor com o fact-checking do que sem ele.

Rogério Christofoletti afirma que o fact-checking avançou muito nos anos Bolsonaro e que especialmente as agências especializadas vêm cumprindo um papel de dar visibilidade, contabilidade e de volume das mentiras do atual presidente. Em um futuro próximo, diz ele, não vai dar para pensar o jornalismo sem as agências de checagem.

Taís Seibt, cuja tese de doutorado analisa a prática do fact-checking no Brasil, também tem a sensação de estarmos enxugando gelo. Mas tudo seria pior sem ele.

"Para quem procura informação verificada, é importante que existam profissionais olhando e acompanhando as tendências de viralização para poder produzir conteúdo e dar essa resposta a quem procura. Se a gente não tivesse essa parceria com as plataformas seria pior", entende "Tento amenizar um pouco essa impressão de que estamos enxugando gelo para dizer que, bom, é necessário. Não é a única saída, não será".

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