No Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, 3 de maior, o diretor e fundador do jornal digital salvadorenho El Faro foi às mídias sociais para advertir sobre uma possível séria ameaça por parte do governo de Nayib Bukele.
Carlos Dada afirmou ter sido informado por uma fonte que a Procuradoria da República de El Salvador está preparando ordens de prisão contra no mínimo sete jornalistas do veículo, após a publicação de entrevistas que revelam supostos pactos firmados entre o governo e gangues criminosas.
A crise atual foi desencadeada pela publicação de entrevistas no dia 1 primeiro em três partes com Carlos Cartagena, um ex-líder da facção Barrio 18 Revolucionarios conhecido como “Charlie”, e com “Liro Man”, um chefe de escalão mais baixo do mesmo grupo criminoso. Eles detalham diversos acordos entre o governo Bukele e organizações criminosas. Segundo as entrevistas, esses pactos remontam à época em que Bukele era prefeito de San Salvador, em 2015, e continuaram durante sua ascensão à Presidência.
Cartagena, que segundo o El Faro chegou a um posto importante no crime aos 16 anos e hoje é procurado pelo governo, disse que o grupo pediu votos para Bukele tanto para a Prefeitura de San Salvador quanto na primeira candidatura à Presidência, em 2019.
“As orientações dele eram de que tínhamos que apoiar, e foi dada a instrução de votar em Bukele”, afirmou Cartagena. “Fizemos parte do apoio que ele precisou naquele momento. Ele nem sequer tinha um partido político”.
Há suspeitas e boatos sobre um acordo entre Bukele e gangues há muito tempo, e o próprio El Faro já publicou várias reportagens sobre o assunto. Desta vez, trouxe um depoimento de um líder de gangue procurado criminalmente, que diz que deixou El Salvador com a cooperação do governo.
“O que os vídeos mostram é que a aliança entre Bukele, o ‘bukelismo’ e os membros de gangues construiu o poder político de Bukele”, afirmou Óscar Martínez, chefe de redação El Faro, numa conversa com Dada transmitida no Youtube. "Estão nos pedindo que contemos uma história política sem os seus sócios políticos, e isso é um absurdo”.
Foi na mesma conversa que Dada afirmou haver o risco de prisão.
“Temos informações confiáveis de que a Procuradoria está preparando ordens de prisão, avançando contra nós. Supomos que essa é a única saída que encontraram para nos silenciar”, disse Dada. “O governo se sente profundamente inseguro, porque sabe que há abundância de provas”.
Segundo Dada, ele soube do risco de prisão por meio de uma fonte que apresentou evidências que conferem credibilidade a esse relato. Ele não especificou quais foram as evidências. Os mandados contra o El Faro incluíram, segundo relatos, acusações de apologia ao crime e associação ilícita. A relação entre jornalista e fonte em El Salvador conta com proteções explícitas e históricas.
Desde março de 2022, El Salvador vive em permanente estado de exceção. O governo de Bukele emprega métodos brutais de repressão ao crime organizado, incluindo prisões em larga escala que segundo organizações de direitos humanos não respeitam o devido processo legal. O método reduziu a violência a níveis muito inferiores aos anteriores e trouxe popularidade ao presidente, assim como denúncias de autoritarismo e desrespeito aos direitos humanos.
Em paralelo, Bukele adquiriu um poder sem pesos e contrapesos, com a dominação dos poderes Legislativo e Judiciário por aliados. A imprensa oferece uma das poucas forças críticas ao seu poder, e nenhum outro veículo de comunicação exemplifica tanto um espírito independente e sem medo do poder quanto o El Faro.
Desde 2023, o El Faro opera a sua parte administrativa da Costa Rica, após sofrer assédio judicial por parte do governo Bukele e a descoberta de que jornalistas da publicação foram espionados com o software israelense Pegasus. Com frequência, ao publicar uma reportagem de peso, os jornalistas da publicação deixam o país de antemão.
Após a publicação dos vídeos com os líderes da gangue, o governo salvadorenho iniciou uma campanha coordenada contra os jornalistas do veículo. O diretor do Organismo de Inteligência do Estado, Peter Dumas – que, segundo Dada, há mais de um ano e meio ataca sistematicamente o El Faro – escreveu na quinta-feira que “não se deve lançar morteiros contra quem lança bombas”. Logo em seguida, ele acusou o El Faro de cumplicidade com o crime, e pediu mais orçamento para espionagem.
“Com ‘jornalistas’ financiados e ligados a gangues, narcotráfico, abusos sexuais, tráfico de pessoas e outros crimes, deveríamos ter o dobro do orçamento”, escreveu. “Eles não podem se esconder para sempre sob o manto invisível do ‘jornalismo’”.
Dada reagiu à ameaça de mais verbas para a espionagem.
“Em público, o diretor do organismo de inteligência do Estado está pedindo mais orçamento para espionar, para continuar espionando jornalistas”, afirmou Dada. “Um funcionário público já está nos imputando uma série de crimes, nos acusando dessas coisas”.
A resposta mais direta que Bukele ofereceu às denúncias das entrevistas foi um post no X questionando o trabalho de organizações Não Governamentais e meios de comunicação.
“Está claro que um país em paz, sem mortes, sem extorsão, sem sangue, sem cadáveres todos os dias, sem mães chorando por seus filhos, não é lucrativo para as ONGs de direitos humanos, nem para os meios de comunicação globalistas, nem para as elites, nem para Soros”, escreveu o presidente.
Em seguida, Bukele publicou um vídeo com a frase “Medo de quê?”, que se tornou um slogan de seu governo.
Em um tom mais baixo, o comissionado presidencial de Direitos Humanos e Liberdade de Expressão de El Salvador, Andrés Guzmán, afirmou que no país "se respeita" e "garante" a liberdade de imprensa.
O comissionado afirmou ainda que qualquer pessoa, incluindo jornalistas, pode exercer sua profissão sem receio de represálias, desde que respeite a lei.
“O princípio da legalidade rege em nosso país para todos os cidadãos, inclusive os jornalistas”, disse ele, acrescentando que, caso haja acusações contra qualquer pessoa, é responsabilidade das instituições competentes garantir o devido processo e a presunção de inocência.
Além destas declarações, muitos trolls em redes sociais atacaram o El Faro. Diversos relatos diziam que, se o presidente fez um acordo com as gangues e depois rompeu o pacto e prendeu os seus membros, o seu mérito era ainda maior. Outros diziam que dar voz a um criminoso confesso e procurado, mesmo se for para apresentar uma evidência de uma denúncia contra o governo, constitui um delito
“Se você se reúne com terroristas de gangues e repete todas as mentiras que eles te contam, você se torna mais um deles”, escreveu o advogado Guillermo Gallegos, presidente da Assembleia Legislativa de 2016 a 2018.
Os jornalistas do El Faro defendem veementemente que seu trabalho não constitui nenhum crime, mas simplesmente o exercício da liberdade de imprensa. Eles explicam que entrevistar fontes, incluindo criminosos, é uma prática comum no jornalismo investigativo.
Dada afirmou que foi por esse método que o El Faro revelou crimes de guerra, a infiltração da quadrilha Zetas na Guatemala, as rotas do narcotráfico que passam por El Salvador, esquadrões de assassinos dentro da Polícia Nacional Civil e a infiltração do crime organizado em todos os partidos políticos.
"El periodismo su principal función es informar y el acto de informar es sobre todo por el interés de la ciudadanía. A veces informar requiere hablar con gente que está en una condición prófuga”. “Em nossos 27 anos de trajetória fazendo jornalismo no El Faro, encontramos narcotraficantes, assassinos, ladrões, membros de gangues, corruptos, que nos ajudaram a compreender como funcionam as organizações criminosas”, afirmou Dada.
“O que fizemos foi o que tínhamos que fazer”, disse Martínez. “É nosso trabalho fazer jornalismo, dar a vocês informação para que vocês saibam e façam com essa informação o que desejarem”.
Diversas entidades, como a Sociedade Interamericana de Imprensa, a Human Rights Watch e a Associação de Jornalistas de El Salvador (Apes, na sigla em espanhol), assim como o relator especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Pedro Vaca, manifestaram apoio a El Faro, condenando as possíveis ordens de prisão.
“Minha atenção e alerta sobre a denúncia do El Faro, que teria recebido informações sobre ordens de prisão e mandados de busca”, escreveu Vaca no X. “Valorizo e reconheço a trajetória e relevância jornalística do El Faro. A gravidade da denúncia exige uma reação oficial sobre garantias ao jornalismo”.
O jornal vem documentando relações entre Bukele e organizações criminosas há anos, começando com uma denúncia publicada em 2018 sobre um suposto pacto com quadrilhas envolvendo o mercado Cuscatlán quando Bukele era prefeito de San Salvador.
Os jornalistas também citaram as sanções impostas pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos contra funcionários do governo Bukele, como Carlos Marroquín (diretor de Tecido Social) e Osiris Luna (vice-ministro de Segurança e diretor de Centros Penais), por facilitarem pactos com gangues, como prova de que as denúncias são verdadeiras.
“Não somos nem de longe os únicos que documentaram o pacto de Nayib Bukele e seu governo com as gangues”, disse Dada.
Para os jornalistas do El Faro, as ameaças atuais representam um momento crítico não apenas para o jornal, mas para toda a liberdade de imprensa em El Salvador e para a própria democracia no país.
“Todas essas ordens de prisão que sabemos hoje que estão sendo preparadas, embora absurdas, embora kafkianas, não são surpreendentes”, afirmou Dada. “Esse é o problema quando se permite uma concentração tão excessiva de poder”.