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A próxima presidente do México prometeu proteger os jornalistas do país. O que ela pode fazer?

Três dias antes de sua contundente vitória nas eleições presidenciais do México, no último dia 2 de junho, Claudia Sheinbaum assumiu um importante compromisso para a segurança dos jornalistas no país. Assim como já tinham feito os dois principais candidatos da oposição, ela assinou um termo proposto pela organização Repórter Sem Fronteiras (RSF) prometendo proteger e defender a liberdade de imprensa e os jornalistas mexicanos. 

A assinatura do documento, combinada com outras ações de Sheinbaum, levou especialistas a acreditarem que a situação dos jornalistas no México possa melhorar. O cenário atual é catastrófico: durante os quase seis anos em que Andrés Manuel López Obrador está no poder, no mínimo 37 jornalistas mexicanos foram assassinados, mantendo o país no topo mundial do ranking de assassinatos de jornalistas no mundo exceto Gaza. A cada 14 horas, um jornalista sofre uma agressão no país.

A ausência de consequências, enquanto isso, predomina. O índice de impunidade nos crimes contra jornalistas no México é de 98%, segundo a organização Artigo 19. No caso de desaparecimentos de jornalistas, o índice de não resolução de crimes chega a 100%.

Para além da violência brutal do crime organizado, que entranha-se em diversas estruturas do Estado e surgiu com a intensificação da guerra às drogas em 2006, em seu mandato, Amlo dirigiu ele mesmo novos ataques à imprensa. Nas mañaneras, as suas entrevistas coletivas diárias, hostilidades contra repórteres eram comuns

Com frequência, se algum jornalista fazia alguma pergunta crítica ou incômoda ao presidente, em vez de responder ao argumento, López Obrador atacava o jornalista. O atual presidente chegou a revelar a suposta renda de uma jornalista durante uma coletiva.  Em fevereiro deste ano, ele divulgou informações privadas da chefe de escritório do The New York Times no México, América Central e Caribe.

O compromisso assumido por sua sucessora, que é do Morena, o mesmo partido de López Obrador, inclui cinco eixos: priorizar a defesa do jornalismo e do direito à informação; garantir proteção integral aos jornalistas; promover legislações que salvaguardem a capacidade de exercer o jornalismo com total segurança; combater a impunidade dos crimes de violência contra jornalistas; desenvolver medidas de sustentabilidade e segurança para os meios de comunicação social nas áreas onde ocorrem desaparecimentos. 

Claudia Sheinbaum speaking during her tenure as Mexico's City mayor in 2020

Claudia Sheinbaum, a nova presidente do México, em uma foto de fevereiro de 2020, quando era chefe do governo da Cidade do México (Foto: Gabriela Malagón/ Secretaria de Cultura da Cidade do México)

Estes eixos se dividem em 22 medidas. Sheinbaum, que assumirá no dia 1º de outubro, se comprometeu a lançar um grupo de trabalho no primeiro trimestre de 2025 para avançar na direção de seu cumprimento, sob a coordenação da Secretaria de Governo.

Para que todas promessas se tornem realidade, serão necessárias ações em diversos níveis, dizem especialistas. O mecanismo de proteção a jornalistas e defensores de direitos humanos do país, já existente, precisa de reformas. Autoridades estaduais também terão que colaborar muito mais com o governo. Finalmente, o combate à impunidade, que está no coração do problema, exige reformas profundas, para que investigações eficazes aconteçam. Segundo especialistas, seis anos são pouco para resolver um problema desta magnitude.

Mas o que a nova presidente do México pode fazer, para melhorar a proteção dos jornalistas? Por onde deve começar? E o que de fato esperar de Claudia Sheinbaum?

Diminuição de tensões

Defensores da liberdade de imprensa concordam que a primeira ação que Sheinbaum pode tomar para aumentar a segurança dos jornalistas é simples e de custo econômico zero: adotar um comportamento menos hostil do que o de López Obrador e, com isso, reduzir tensões.

“É fundamental que se reconheça o trabalho jornalístico, que este não seja estigmatizado e que se rechacem os atos de violência”,  afirmou à LatAm Journalism Review (LJR) Balbina Flores Martínez, representante no México da RSF e a principal articuladora no país para que o compromisso fosse assinado por Sheinbaum e os outros candidatos.

A importância do fim destes ataques vindos do mais importante cargo do país vai além da proteção dos jornalistas que lidam diretamente com o Poder Executivo mexicano. Quando um presidente ataca um jornalista, outras autoridades de menor nível e ativistas políticos se sentem encorajados a fazer o mesmo, afirmou à LJR Javier Garza, jornalista no estado de Coahuila, no norte, e diretor do grupo Horizonte Lagunero.

“Amlo, com seus ataques constantes à imprensa, estava criando um clima de hostilidade. Se o presidente ataca jornalistas, eu também posso. Outros funcionários menores também o fazem”, disse Garza.

Um bom exemplo vindo de cima pode ter um efeito benéfico irradiador sobre estas autoridades, disse Leopoldo Maldonado, diretor regional da Artigo 19 no México e na América Central.

“Com o controle que o Morena tem hoje em vários estados e em seus congressos, isso pode ser alcançado: acabar com a difamação, a calúnia, os insultos e todos esses crimes verbais que são mantidos como forma de pressionar a imprensa”, afirmou Maldonado à LJR.

Em seu comportamento até hoje, incluindo um mandato como chefe do governo da Cidade do México (2018-2024), Sheinbaum não foi tão hostil em relação à imprensa quanto Amlo. Mesmo assim, Garza acrescentou que a presidente-eleita “sim, tem um certo desdém pela mídia. Tende a classificar qualquer coisa negativa ou crítica como notícia negativa ou falsa. Não foi tão intensa, mas não a vejo como uma pessoa que tenha a liberdade de imprensa no topo da sua escala de valores”.

A sombra de López Obrador também pode pesar sobre o governo de Sheinbaum, e isso tem o potencial para gerar conflitos com a imprensa. Embora o atual presidente tenha dito que vai se aposentar, é pouco provável que ele vá se afastar completamente do Morena, partido que construiu, e da vida pública.

"Se ele decidir que Claudia precisa de aumentar a pressão sobre os jornalistas porque eles estão a ser demasiado críticos e a falar mal do partido, pergunto-me se Sheinbaum será capaz de resistir a essa pressão e ser a sua própria presidente, ser a sua própria mulher nessa questão. lutar. É difícil operar sob uma sombra tão gigante. López Obrador é o político mais importante que o México teve neste século;”, disse à LJR Jan-Albert Hootsen, representante para o México do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ). 

President Andrés Manuel López Obrador, of Mexico, talks surrounded by shadows and cameras; to the right, Claudia Sheinbaum is seated

O atual presidente do Méxicco, Andrés Manuel López Obrador, em uma de suas entrevistas coletivas diárias, com a então chefe do governo da Cidade do México, Claudia Sheinbaum, em uma foto de 2020 ( Foto: EneasMx/Licença Creative Commons 4.0)

 

Reformas no mecanismo

Se adotar uma atitude menos hostil em relação à imprensa exige apenas boa vontade de Sheinbaum, as outras medidas para aumentar a proteção de jornalistas demandam políticas mais sofisticadas.

Entre as 22 medidas assumidas no compromisso com a RSF, estão: revisar o funcionamento do mecanismo federal de proteção; priorizar a busca de jornalistas desaparecidos no México; garantir a reparação integral às vítimas e a não repetição de fatos que ferem as famílias e a sociedade; desenvolver políticas de investigação, prestação de contas e proteção para que as zonas onde os meios de comunicação estão desaparecendo não se tornem regiões ou estados silenciados, como já ocorre em várias partes do país. 

Segundo a Anistia Internacional e o CPJ, oito jornalistas foram assassinados enquanto estavam inscritos no Mecanismo de Proteção para Pessoas Defensoras de Direitos Humanos e Jornalistas do México nos últimos sete anos, um número que destaca a urgente necessidade de fortalecer e reformar a instituição.

O mecanismo federal foi criado em 2012 com a missão de proteger pessoas defensoras dos direitos humanos e jornalistas no país em risco extremo de ameaças e ataques devido ao seu trabalho. Em um relatório publicado em março, “Ninguém garante minha segurança: A urgente necessidade de fortalecer as políticas federais do México para a proteção de jornalistas”, a Anistia Internacional e o CPJ avaliam que, se o mecanismo forneceu segurança a alguns jornalistas, houve falhas para a proteção de muitos outros. 

Segundo Hootsen, do CPJ, o mecanismo precisa de mais financiamento e melhor treinamento para os seus funcionários. Também é necessário descentralizá-lo e estabelecer escritórios regionais para lidar com ameaças de forma mais eficaz fora da capital, ele disse.

"O mecanismo é altamente centralizado e focado na Cidade do México. Portanto, não tem escritórios regionais. Assim, muitas vezes depende do contato com grupos da sociedade civil para obter os contatos e conhecimentos adequados para lidar com ameaças contra repórteres", disse Hootsen.

Mesmo que se identifique um repórter que está em situação de risco, muitas vezes há problemas de comunicação entre diferentes instâncias de modo a conseguir proteger o profissional, ele acrescentou. Também há dificuldades na forma como as medidas de proteção são aplicadas, e a coordenação com os governos estaduais tem falhas. Há ainda temas que exigem atenção específica, como o deslocamento de jornalistas. 

Reformar o mecanismo de uma instituição centralizada que funciona apenas no nível federal para algo que tenha alcance nacional será complicado, disse Hootsen. 

“Isso requer mudar a Constituição e garantir que os governos estaduais concordem em criar suas próprias instituições no nível local e vinculá-las às instituições federais", afirmou ele. "Isso leva anos para mudar. Houve algumas discussões sobre uma reforma nesse sentido nos últimos dois a três anos, mas nunca realmente ganharam velocidade ou momentum".

O Morena reuniu maioria qualificada no Congresso Federal e também em vários estados que controlam, de modo que poderia mudar a Constituição se o quisesse. Não há, no entanto, sinais nesse sentido no âmbito da liberdade de imprensa. Sem citar o jornalismo ou o mecanismo de proteção, líderes do partido já disseram que querem começar a votar assim que puderem, em setembro, em 18 emendas constitucionais.

Um projeto de lei parado no Congresso desde 2018 propõe revisões no mecanismo. Balbina Flores, da RSF, disse que “deve ser construída uma lei de baixo para cima, a partir dos jornalistas". Mesmo se a lei mudar, todavia, nada garante que as novas disposições serão cumpridas.

"O problema no México nem sempre é a falta de leis, mas sim o seu cumprimento. É necessário fazer adequações para garantir que as leis sejam cumpridas efetivamente", disse Flores.

É necessário fortalecer o mecanismo, mas ele precisa ser complementar à investigação, à reparação de danos e a muitas outras funções do Estado que estão distribuídas entre diversas instituições, disse Leopoldo Maldonado, da Artigo 19.

 “Há cada vez mais dependência do setor de defensores de direitos humanos e de jornalistas para recorrer a esse mecanismo para resolver seus problemas de segurança porque as instituições policiais e de procuradoria de Justiça não o fazem”, disse Maldonado.

“Muito se fala da necessidade do mecanismo, mas esta instância deve ser temporária e transitória. A segurança da imprensa deve ser garantida eventualmente pelas próprias instituições de uma democracia normal, em 10, 15, 20 anos”, ele acrescentou.

Impunidade no cerne

No coração do problema da violência contra jornalistas, estão os temas da impunidade, da incapacidade de investigação e da infiltração e do conluio de agentes do sistema de Justiça com o crime organizado, dizem especialistas. 

O mecanismo de proteção só pode responder a ameaças, mas não pode investigar ameaças e não pode punir a violência contra repórteres. Portanto, é um paliativo.

Para proteger os seus jornalistas, o México precisará de mudanças significativas em seu Judiciário e demais instituições de imposição da lei.

“Se as agressões são investigadas de maneira rápida e contundente, um agressor entende a mensagem. O melhor dissuasor é que se veja que a pessoa que acabou de atacar pagou”, disse Javier Garza.

O grande gargalo são as procuradorias e os órgãos policiais locais, que fazem com que a grande maioria dos casos parem na etapa de investigação, sem ir a julgamento, disse Maldonado. Segundo ele, o “Protocolo de delitos contra a liberdade de expressão”, de 2018, pode oferecer um norte sobre como os órgãos de aplicação da lei podem se coordenar. 

Para que de fato o façam, todavia, são necessárias reformas consideráveis, porque muitos órgãos de aplicação da lei estão corrompidos. Atrás da violência contra jornalistas, está o narcotráfico, a corrupção, crimes ambientais, crimes financeiros, e sua infiltração no Estado. 

“Toda a estrutura de administração da justiça no México tem de ser alterada. É necessária a adoção deste protocolo de investigação de crimes contra jornalistas, mas isso requer capacidade de análise de contexto, análise criminal, bases de dados reforçadas e interoperáveis; Ou seja, toda uma infraestrutura que não existe hoje”, disse Maldonado. 

A collage of newspaper covers from the day after the 2024 presidential election in Mexico, with headlines announcing Claudia Sheinbaum's victory

Colagem de capas de jornais do México após o dia da eleição presidencial de 2024, na qual Claudia Sheinbaum foi a vencedora (Art by WendyAvilesR/CC Zero)

“Acima de tudo, é preciso limpar os Ministérios Públicos, que hoje estão penetrados por interesses políticos e criminosos, e isso vai levar tempo”.

Se Sheinbaum quiser ser a presidente histórica que pretende ser, reduzir a taxa de impunidade no México será o seu maior desafio. Em vistas desse problema, que, segundo os estudiosos, exige mudanças legislativas e operacionais, um mandato presidencial parece pouco. No entanto, a primeira presidente mulher do México pode dar um primeiro passo.

"Para promover as reformas exigidas, é preciso erradicar implacavelmente a corrupção. É preciso se livrar dos atores ruins. É preciso que garantir que todos que trabalham dentro das procuradorias e da polícia sejam impecáveis. Isso é uma tarefa enorme. Seis anos não são suficientes. Mas você pode começar. Você pode começar a lidar com isso, e essa é a tarefa dela – começar", disse Hootsen.

A representante no México da RSF, que descreve como “titânico” o trabalho de articulação necessário para que os três principais candidatos assumissem o compromisso com a organização, concorda. Um primeiro passo foi dado, mas o trabalho de fato está à frente.

"A verdade é que a assinatura destes compromissos abre uma porta, uma esperança, uma luz de que as coisas podem mudar. Temos certeza de que as coisas têm que mudar agora. O México não pode passar mais um mandato de seis anos contando assassinatos, mortes e desaparecimentos. Eles merecem que o trabalho jornalístico seja respeitado. Acima de tudo, a sociedade merece”, disse Balbina Flores.

A LJR tentou falar com o Gabinete de transição de Claudia Sheinbaum, escrevendo para o único endereço de email disponível em seu site oficial, mas as mensagens foram devolvidas sem chegar ao destinatário.

Regras para republicação

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