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Alma Preta lança manual de redação para quem quer pôr jornalismo antirracista em prática

Após mais de três anos de trabalho, a Alma Preta, agência brasileira de jornalismo especializada na temática racial, lançou na última quarta-feira (10 de agosto) a primeira edição de seu manual de redação. A publicação sintetiza a concepção de jornalismo do veículo, com informações abrangentes que vão desde critérios de noticiabilidade, até métodos para abordar assuntos a partir de ângulos antirracistas, até questões puramente estilísticas como recomendações de tamanho de parágrafos, até verbetes com termos a serem empregados ou evitados durante coberturas.

Intitulado “Manual de Redação: O jornalismo antirracista a partir da experiência da Alma Preta”, o livro, que por enquanto existe em versão física e deverá ganhar uma versão digital no futuro, resulta de um trabalho coletivo entre seis estudantes, dois professores universitários e um dos cofundadores da Alma Preta. A elaboração da obra começou nos primeiros dias da pandemia, em 2020, e incluiu encontros virtuais semanais entre os pesquisadores, o estudo de documentos históricos e mais de 40 entrevistas com jornalistas que são referências na imprensa negra brasileira.

No debate durante o lançamento, Pedro Borges, diretor editorial e cofundador da Alma Preta, afirmou que a maior satisfação que o manual lhe traz é o fato de incluir uma visão ampla do jornalismo, que inclua desde uma retrospectiva da imprensa negra no Brasil, delineando a tradição na qual a Alma Negra se insere, até aspectos técnicos sobre o que deve ser considerado relevante para publicação.

“Esse não é um manual de redação com dicas para você não ser racista escrevendo matérias. É óbvio que, se você entrar de cabeça neste manual, há uma série de colocações e sinalizações que fazemos de palavras que a Alma Preta não utiliza, e uma explicação de por que a gente não as utiliza. Mas isso é muito pouco para olhar para o nosso manual”, disse Borges. “Ele é um manual que conseguiu casar, para além da dimensão política e ética, a questão técnica, entendendo a técnica também como política e como ética”. 

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Da esquerda para a direita:  Marcelo Vinicius de Oliveira Santos, Victor Oliveira Moura, Fernanda Rosário, Natália Maria Faria Santos, Ana Flávia Magalhães Pinto e Pedro Borges, seis dos oito autores do manual (Foto: Youtube Sceenshot)

Um exemplo citado foi o da segurança pública: em um país onde, notoriamente, agentes policiais com frequência violam direitos fundamentais em suas abordagens, onde o encarceramento em massa afeta desproporcionalmente a população negra, e onde, em 2021, a cada 10 pessoas mortas pela polícia, oito eram negras, quais cuidados um jornalistas deve tomar ao abordar o tema da violência, de modo a não repetir e perpetuar injustiças? 

“A maior seção do manual traz estratégias para não reproduzir a violência dentro de vários temas que o jornalismo pode abordar. Não só quando se fala sobre a discriminação, preconceito e o racismo em si, mas de todos os temas que abrangem a vida da população negra, como por exemplo, a saúde, a cultura, o meio ambiente”, afirmou Fernanda Rosário, uma das autoras do manual, que começou na iniciativa quando ainda era estudante da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e hoje é jornalista profissional.

Outra das autoras a participar do projeto enquanto estudante, Natália Maria Faria Santos observou que o manual traz reflexões éticas aplicadas à prática. 

“A gente conversa muito na universidade sobre imparcialidade, neutralidade e objetividade. Mas como a Alma Preta vê esses temas éticos dentro do jornalismo?”, perguntou Faria Santos no debate. “Então, abrimos espaço e fazemos um convite no manual para refletir um pouco sobre esses temas. Como fazer reportagens sobre o meio ambiente de modo relacionado a povos negros e indígenas? Como falar sobre tradições de matriz africana? Como falar com crianças sobre a luta, sobre o movimento, sobre tudo que a gente vivencia?”

No início do manual, há uma compilação de publicações da imprensa negra brasileira nos séculos XIX e XX, deixando clara tanto a pluralidade das publicações feitas por jornalistas negros no país, quanto a longevidade e vigor da tradição na qual a Alma Preta se inscreve. No próximo dia 14 de setembro, completam-se 190 anos que circulou a primeira das cinco edições de “O Homem de Côr”, considerado o primeiro jornal da imprensa negra no Brasil.

Nesta seção do livro, nota-se a influência da coautora do manual e historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, professora da Universidade de Brasília (UNB) e especialista na História da imprensa negra no Brasil. No debate, Magalhães Pinto contou que a sua primeira graduação foi em Jornalismo; limitações do mercado profissional, no entanto, a levaram a mudar de ofício, sem nunca se afastar completamente da imprensa.

A pesquisadora exaltou a “ousadia” da Alma Preta, por produzir um “jornalismo preto e livre”. Segundo ela, tal ousadia “é constitutiva da própria imprensa preta”, que “surge ainda no período imperial [1822-1889] como expressão das vozes de pessoas negras livres que tinham seus talentos e virtudes cerceados por força do preconceito de cor”.

Os demais autores do manual, além dos quatro supracitados, são o professor de Jornalismo da Unesp Juarez Tadeu de Paula Xavier, e os estudantes Giovanne Ramos, Jéssica Cristina Rosa, Marcelo Vinicius de Oliveira Santos e Victor Oliveira Moura.

O manual se soma a outras produções e iniciativas atuais que buscam simultaneamente combater o racismo no jornalismo e capacitar profissionais para que atuem de modo antirracista. Em 2022, o Coletivo de jornalistas negros Lena Santos – em homenagem a uma das primeiras mulheres negras a ocupar espaço num telejornal brasileiro – também lançou um manual, intitulado "Herdeiros e herdeiras de Luiz Gama - Guia por jornalismos antirracista".

O problema do racismo não atinge a imprensa brasileira só em seu conteúdo, mas também na escolha de fontes e na própria composição das redações. Segundo uma pesquisa publicada em maio por estudiosos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), apesar de a maioria da população brasileira ser negra, pessoas negras assinaram apenas 9,5% dos textos publicados nas edições impressas dos três principais jornais do país de 2016 a 2020.

Fundada em 2015, a Alma Preta integra uma série de veículos em atuação hoje para mudar esse cenário. Tal como acontece com outros manuais de estilo e redação, o veículo espera  atualizar a obra e vir a publicar novas edições futuramente. Para além de servir no dia a dia da redação, a sua equipe deseja também que a publicação circule também entre estudantes, jornalistas e mesmo o público em geral.

“É óbvio que a gente quer muito que o material caia na mão dos estudantes negros, dos jornalistas negros. Mas esse é um material que pode servir como norte para a produção do jornalismo na mão de qualquer pessoa”, afirmou Pedro Borges, o diretor editorial da Alma Preta. “Em especial, na mão das pessoas que estão comprometidas a construir um jornalismo que fuja daqueles princípios, que estão colocados na imprensa, de que o jornalismo deve ser só um espelho da realidade. Que estão comprometidas com o jornalismo como uma ferramenta de transformação social”.

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