O governo do estado mexicano de Jalisco levantou um alerta entre as organizações de defesa da liberdade de expressão nos últimos dias devido a recentes ataques e perseguições a jornalistas e meios de comunicação no estado.
Somente no mês de dezembro, a organização Artigo 19 divulgou três alertas para casos de violência contra jornalistas e meios de comunicação no estado, dois deles diretamente relacionados ao governador Enrique Alfaro.
Em 8 de dezembro, o jornalista Rocío López Fonseca, do Canal 44 da Universidade de Guadalajara, foi interrompido pelo governador Alfaro enquanto tentava entrevistar o secretário local de saúde sobre a falta de abastecimento nas instituições de saúde. Alfaro interveio e ordenou que fossem interrompidas as entrevistas daqueles que, segundo ele, vinham para “estourar” (boicotar) eventos públicos.
De acordo com o Artigo 19, o repórter havia tentado anteriormente questionar o governador sobre a falta de suprimentos médicos, o que ele se recusou a responder. Em nota, a organização descreveu as declarações do presidente como tentativas de estigmatizar e criminalizar o trabalho jornalístico.
No dia 27 do mesmo mês, o governador anunciou que havia entrado com ação por danos morais e pedido medidas cautelares contra o jornalista Ricardo Ravelo Galo, que dias antes havia publicado reportagens sobre investigação do crime organizado em Jalisco.
Na investigação, Ravelo descreve a suposta proteção pelo governo Alfaro de um grupo criminoso e mostra a suposta participação de pessoas próximas ao governador em uma organização criminosa.
Um dia depois, o Artigo 19 se manifestou contra as ameaças do governador de iniciar uma ação legal contra Ravelo e disse que isso prejudica a liberdade de expressão e visa limitar as críticas às autoridades.
“Sim, é um problema que o governador de Jalisco tenha recorrido a esses tipos de ações e intimidações, até ameaças, e utilizando as instituições. Acreditamos que seja um sinal de alerta que ele queira censurar a imprensa, mesmo usando as próprias instituições", disse Edgardo Calderón, coordenador de defesa do Artigo 19, à LatAm Journalism Review.
Em julho de 2018, antes de tomar posse como governador, Alfaro conseguiu que a autoridade eleitoral do estado de Jalisco ordenasse ao veículo Aristegui Noticias que suspendesse a veiculação de um artigo da jornalista Anabel Hernández, no qual se mencionava que o então governador eleito estava sob investigação nos Estados Unidos por vínculos com o narcotráfico.
A medida cautelar foi rejeitada cinco meses depois, porém o artigo já havia parado de circular.
"Pior ainda é o uso de instituições judiciais e/ou administrativas para causar essa censura, até mesmo abusando de coisas como 'medidas cautelares' para tentar eliminar artigos de notícias imediatamente e sem resolver os processos legais de fundo", disse o Artigo 19 em seu posicionamento de 28 de dezembro.
O presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, ofereceu proteção a Ravelo e pediu ao subsecretário do Interior que o contatasse. O jornalista disse posteriormente, em entrevista ao jornalista Julio Astillero, que havia apresentado uma denúncia contra as ações de Alfaro perante a Comissão Nacional de Direitos Humanos do México (CNDH) e que já estava sob o Mecanismo de Proteção de Defensores de Direitos Humanos e Jornalistas da Secretaria do Interior.
No entanto, Ravelo disse não descarta deixar o país diante das ameaças de Alfaro. Por meio de suas redes sociais, o jornalista responsabilizou o governador pelo que poderia lhe acontecer e disse que tinha provas das fontes de seu trabalho jornalístico para responder ao suposto processo, do qual não foi informado.
“Os tribunais cíveis estavam de férias. Não se sabe se existe tal demanda, porque os tribunais só estão disponíveis para casos urgentes”, disse Calderón à LJR. Afirmou que Artigo 19 está em comunicação constante com Ravelo e López Fonseca. “Por enquanto, o relator não foi notificado de qualquer ação judicial, reclamação ou reclamação administrativa, até o momento não há registro de nenhuma ação judicial”.
Na tarde do dia 28 de dezembro, indivíduos armados tentaram entrar nas instalações do Sistema Universitário de Rádio, Televisão e Cinematografia da Universidade de Guadalajara, onde estão localizadas as antenas transmissoras de diversas redes de rádio e televisão, inclusive do Canal 44. Dois guardas de segurança foram mortos. Os ataques aconteceram um dia depois de o canal entrevistar Ravelo e divulgar amplamente as ações do governador contra ele.
A organização Repórteres Sem Fronteiras e Artigo 19 condenaram os fatos em um pronunciamento conjunto e criticaram a declaração na qual o Procurador-Geral do Estado de Jalisco presumiu que os ataques foram dirigidos aos seguranças e não aos meios de comunicação, sem ter iniciado uma investigação.
"É preocupante [...] que o Ministério Público emita essa posição em menos de 24 horas sem considerar o meio de comunicação como uma linha de investigação, já que de fato afasta o trabalho informativo da mídia", disseram as entidades em seu alerta. “É imprescindível que o ataque ao Canal 44 seja investigado tendo como eixo principal seu trabalho jornalístico”.
O Artigo 19 esclareceu que eles continuam a documentar e analisar se os ataques às instalações do meio de comunicação estão ligados às declarações do governador Alfaro ou à cobertura do caso Ravelo.
A Organização das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ONU-DH) condenou os ataques e pediu às autoridades que esclareçam o caso. Por sua vez, o CNDH solicitou medidas cautelares às autoridades federais e de Jalisco para salvaguardar a segurança do pessoal do Canal 44.
Em 2021, pelo menos 24 ataques a jornalistas por autoridades governamentais e pessoas físicas foram registrados em Jalisco, de acordo com o recém-criado Observatório de Liberdade de Expressão e Violência contra Jornalistas da Universidade de Guadalajara.
Uma tendência preocupante
Ricardo Ravelo tem experiência em documentar as ligações das autoridades mexicanas com o crime organizado. Em 2021 publicou o livro "Los Narcopoliticos", no qual expõe os laços criminosos de governadores e figuras políticas. Sua investigação sobre o governador de Jalisco não foi incluída em seu livro mais recente porque soube do caso após a publicação da edição, segundo ele em entrevista ao portal RegeneraciónMX.
Mas Ravelo não é o primeiro comunicador a receber ameaças ou assédio judicial das autoridades mexicanas após a publicação de livros de investigação jornalística. Em 2005, Manuel Bribiesca Sahagún, filho mais velho da então primeira-dama do México, processou a jornalista argentina Olga Wornat por danos morais por mencionar em seu livro "Crónicas Malditas" o suposto enriquecimento ilícito dos filhos de Sahagún.
Em 2018, o ex-governador do Estado do México Eruviel Ávila processou o jornalista Humberto Padgett por danos morais por um texto publicado no livro "Los Suspirantes 2018", no qual menciona suposta má conduta sexual de Ávila com homens menores de idade.
Um dos casos mais emblemáticos no México é o da jornalista Lydia Cacho, que em 2005 foi detida e torturada por policiais do estado de Puebla, após ser acusada pelo então governador Mario Marín de difamação e calúnia. As denúncias surgiram a partir da publicação do livro "Los Demonios del Edén", no qual Cacho denunciava a existência de uma rede de exploração sexual infantil na qual estavam envolvidos empresários e políticos mexicanos.
“Definitivamente vemos uma tendência aí. [...] A reação do governador [de Jalisco] deixa muito a desejar. Lá se vê a intolerância”, disse Edgardo Calderón.“É parecido com a questão, por exemplo, de Lidia Cacho ou de Anabel Hernández, que também foi processada pelo mesmo governador. Sim, é uma tendência e é uma reação que reflete intolerância e censura em relação a essas questões.”