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Decisão sobre RCTV é garantia de que a liberdade de expressão estará protegida na região, afirma Catalina Botero

Para a ex-Relatora Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) Catalina Botero, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que condenou a Venezuela pela violação do direito à liberdade de expressão no caso do canal RCTV, é uma garantia de que este direito estará protegido nas Américas.

“Este triunfo não é pouco”, afirma Botero, que em maio de 2014 levou o caso à Corte na qualidade de Relatora. “Se a Corte respeita a ‘coisa julgada’ e seus próprios precedentes​ e não retrocede nas garantias até agora estabelecidas, a proteção da liberdade de expressão na região estará garantida”.

O caso apresentado na Cortepela CIDH se refere à retirada do canal Radio Caracas Televisión do ar (RCTV) e à apreensão de seus bens depois do Governo da Venezuela não renovar sua concessão em maio de 2007.

RCTV, que tinha a concessão do canal 2 desde 1953, era até então o canal de maior audiência no país, de acordo com a sentença da Corte. Para a CIDH, a decisão do Estado de não renovar a concessão teve como fundamento a linha editorial do canal, que se mantinha crítica ao governo do então presidente Hugo Chávez.

Imagen de una corte al fondo se ven los jueces y en primer plano los litigantes y público

Audiencia ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos del Caso Granier y otros (Radio Caracas Televisión) Vs. Venezuela. La audiencia tuvo lugar el 29 y 30 de mayo de 2014. (Foto: Flickr Corte IDH)

A Corte considerou que esta foi a razão para não renovar a concessão e por isso condenou o Estado. Em sua decisão obriga, dentre outras disposições, a restabelecer o sinal de RCTV.

O Governo da Venezuela não se pronunciou a respeito. Embora em setembro de 2012, o país tenha denunciado a Convenção Americana sobre Direitos Humanos - ou seja, deixado de reconhecer a competência da Corte IDH - está obrigado a cumprir com esta decisão pois os fatos ocorreram e foram apresentados ao Sistema Interamericano antes da entrada em vigor de tal denúncia (setembro de 2013).

Não obstante, a possibilidade de que não a acate está presente. Para Botero, Venezuela “não tem problema em desconhecer suas obrigações internacionais”, contudo, está convencida de que esta é uma decisão que eventualmente os Estados se veem obrigados a cumprir.

O Centro Knight para o Jornalismo nas Américas conversou com Botero sobre este julgamento, os argumentos que se apresentaram na Corte e seu significado para a defesa da liberdade de expressão na região.

CK: As decisões das Cortes podem gerar más interpretações, como você resumiria essa decisão?

Catalina Botero: O argumento central é que os Governos têm a faculdade de regular o espectro radioelétrico, mas devem fazê-lo tendo em conta os padrões internacionais em matéria de liberdade de expressão. Não podem ​usar estas faculdades para​ castigar ou premiar um veículo por suas inclinações políticas ou sua linha editorial.

CK: Vamos falar um pouco dos argumentos apresentados pela Venezuela neste caso. Um deles foi que se estava defendendo os direitos de uma “pessoa jurídica”, ou seja, do canal RCTV. Como a CIDH e a Corte enxergam esse tema?

CB: O Sistema Interamericano de direitos humanos existe para proteger direitos fundamentais que pertencem aos seres humanos. Contudo, em muitos casos as pessoas se associan para exercer esses direitos. Por exemplo, as pessoas constituem partidos para realizar seus direitos políticos, sindicatos para defender seus direitos trabalhistas ou meios de comunicação para exercer o direito à liberdade de expressão. Se um governo fecha arbitrariamente um sindicato, um partido ou um meio, está violando o direito das pessoas que usaram esses veículos (ou pessoas jurídicas) para exercer seus direitos humanos e, nesses casos, não há qualquer obstáculo para que possam acessar o sistema regional de proteção de direitos humanos. O que se protege é o direito à liberdade de expressão das pessoas que integram o meio de comunicação afetado por uma decisão arbitrária e não simplesmente os direitos da pessoa jurídica.

CK: Outro dos argumentos do Estado foi que RCTV apoiou o golpe de Estado de 2002 e que por esta razão tinha direito a tomar ações contra este delito, não teriam de fato direito para fazê-lo?

CB: Se uma pessoa, por um meio de comunicação ou qualquer outro meio, comete um delito, deve ser denunciada perante um juiz e vencida em um julgamento  justo com todas as garantias do devido processo, incluindo um tribunal imparcial. Nada disso ocorreu neste caso. Nem sequer se incomodaram de fazer os julgamentos simulados que são a regra geral contra os opositores do governo na Venezuela. Sem julgamento e, sobretudo, sem julgamento justo, um governo não está autorizado a afirmar que uma pessoa cometeu um crime e a castigá-la por ele. Nenhum governo. Para isso existem os juízes.

​CK: Mas o governo manteve este argumento?

CB: Quando os representantes do governo entenderam que este argumento era juridicamente inviável, o abandonaram. Se você vê a audiência, claramente o representante do Estado afirma que a linha editorial de RCTV e sua posição política não teve relação com a decisão de não renovar a frequência. Lamentavelmente para eles, no processo havia provas suficientes para demonstrar que, pelo contrário, esta havia sido a única razão.

CK: O Estado também fez menção à autonomia do governo para outorgar concessões.

CB: Esse era o segundo argumento que trouxeram​, que os Estados têm liberdade absoluta para decidir a quem entregar ou não as concessões. Isso é falso. Não podem utilizar critérios ​discriminatórios. Efetivamente em muitos casos, os Estados têm margens de discricionariedade, mas em nenhum caso podem ser arbitrários. Utilizar como critério para dar ou renovar uma concessão a linha editorial do meio é um critério discriminatório e, em consequência, arbitrário. Isso foi o que disse a Corte.

CK: Venezuela também falou da necessidade de democratizar o espectro radioelétrico e por isso a decisão de não renovar a concessão.

CB: Esse argumento tem dois problemas. O primeiro é que não demonstra como se democratiza ao tirar um meio crítico e incluir um de propaganda​ governamental. Especialmente grave quando a maioria dos meios estão ​completamente alinhados​ com a verdade oficial. A essas alturas, na Venezuela já ​eram predominantes os meios ​que difundiam disciplinadamente o pensamento oficial.

Mas vamos supor, para fins de debate, ​que ​em realidade era necessário um novo canal governamental para democratizar as comunicações. ​Adicionalmente deveriam demonstrar que, para ​cumprir essa finalidade,​ necessitan ​justamente ​dessa frequência​ (ol canal 2​). Teriam que demonstrar que o espectro estava ocupado e que seria necessário usar essa precisa frequência. O governo não respondeu por que, dentre todas as opções, era justamente a frequência da RCTV a que deveria ser dada a um canal governamental. Por que não outro dos canais cuja concessão vencia no mesmo dia. As razões técnicas nunca chegaram. O Governo não trouxe uma só prova para suportar sua afirmação.

Tres personas sentadas frente a una mesa con micrófono en una corte judicial

Catalina Botero (esquina derecha) y otros representantes de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos durante la audiencia sobre el Caso Granier y otros (Radio Caracas Televisión) Vs. Venezuela. La audiencia tuvo lugar el 29 y 30 de mayo de 2014. (Foto: Flickr Corte IDH)

CK: Como uma das pessoas da CIDH que esteve em todo o processo do caso, qual é a sua opinião sobre a decisão da Corte?

CB: É uma decisão perfeitamente coerente com o estabelecido no Artigo 13-3​ da Convenção Americana, que dispõe que os Estados não podem utilizar mecanismos indiretos para castigar os meios de comunicação que são críticos e premiar meios de comunicação favoráveis. Não havia outra maneira de decidir esse caso.

CK: Como essa decisão afeta a doutrina em matéria de liberdade de expressão?

CB: Se a Corte respeita a ‘coisa julgada’ e seus próprios precedentes​ e não retrocede nas garantias até agora estabelecidas, a proteção da liberdade de expressão na região estará garantida. Quando digo liberdade de expressão me refiro não apenas a meios e jornalistas, mas a todas as pessoas que critiquem o poder e que ​tenham direito de estar protegidas frente a possíveis represálias.

​Em janeiro a Corte terá três novos juízes. Esperamos que a maioria deles mantenha esta linha.

CK: Qual será a posição da Venezuela diante deste resultado? Você acha que ela vai acatá-lo?

CB: Não sei o que pode passar na Venezuela. Teria que cumprir essa decisão, mas está claro que não tem problema em desconhecer suas obrigações internacionais. Contudo, deixe-me mencionar um antecedente​. O governo de Alberto Fujimori​ utilizou arbitrariamente suas faculdades para obrigar uma pessoa a se desvincular de um canal do qual era acionista majoritário. A Corte entendeu que se tratou de uma violação indireta ao direito à liberdade de expressão e ordenou o restabelecimento do direito. O governo de Fujimori decidiu que não cumpriria as decisões do sistema interamericano, usando argumentos idênticos aos argumentos do Governo venezuelano. Não obstante, tão pronto foi restabelecida a democracia e um novo governo de transição, Peru deu cumprimento às sentenças da Corte, uma delas esta que mencionei.​ A sentença contra o Peru como esta contra a Venezuela, são títulos jurídicos que, cedo ou tarde, os Estados estão obrigados a cumprir​.

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