A região Nordeste do Brasil é a segunda mais populosa do país, tem o terceiro maior PIB e o menor PIB per capita do país. O jornalismo da região sofre duplamente com a falta de recursos e a reduzida visibilidade nacional. Apesar das limitações econômicas, iniciativas jornalísticas indepedentes se multiplicam nos nove estados do Nordeste e são capazes de produzir impacto mesmo com recursos restritos.
Segundo a mais recente edição do Atlas da Notícia, 62,4% dos municípios do Nordeste ainda são desertos de notícias -- é o segundo maior percentual do Brasil. São considerados desertos de notícias cidades onde não há nenhum veículo jornalístico sequer. Para piorar, em 2021 a crise tirou das ruas três jornais tradicionais de circulação diária na região: o Jornal do Commercio, o Diário do Nordeste, em Fortaleza(CE) e O Estado do Maranhão.
“A sustentabilidade financeira é uma grande barreira para o desenvolvimento do jornalismo independente no Brasil como um tudo e no Nordeste em particular, já que muitas das oportundiades de financiamento se concentram na região Sudeste, mais rica,” disse à LatAm Journalism Review (LJR) a jornalista Mariama Correia, idealizadora da newsletter Cajueira e pesquisadora do Atlas da Notícia no Nordeste. “A descentralização desses recursos e de oportunidades de formação é importante para que comunicadores e jornalistas da região possam desenvolver novas formas de financiar suas iniciativas.”
Diante disso, iniciativas digitais locais ganham ainda mais importância embora sobrevivam com enormes sacrifícios de suas equipes. Neste artigo, a LJR mostra cinco casos de novos veículos que surgiram nos últimos anos e produzem jornalismo de alto nível, embora lidem diariamente com o desafio de sobrevivência financeira.
Há quatro anos, a Agência Saiba Mais cobre o dia a dia do Rio Grande do Norte e sua capital, Natal. O estado tem 82% dos seus municípios classificados como desertos de notícias, segundo a mais recente edição do Atlas da Notícia. Com um orçamento mensal de parcos BRL 17.500 (USD 3.500) provenientes principalmente de doações de leitores, o veículo conta com seis jornalistas, dos quais apenas um em tempo integral.
O fundador da Saiba Mais é o experiente jornalista Rafael Duarte, natural de Brasília e com mais de 20 anos de atuação em jornais potiguares. À LJR, ele criou a agência por dois motivos: a falta de perspectiva profissional num mercado restrito e a concetração de propriedade dos veículos tradicionais do estado.
“Quando eu cheguei [de Brasília], eu me assustei: todos os canais de rádio e televisão, por exemplo, eram loteada por pelos políticos aqui com o mandato. O principal jornal, a Tribuna do Norte, e a afiliada da TV Globo é da família Alves [do ex-ministro e deputado federal Henrique Eduardo Alves]; a afiliada da TV Record é de José Agripino Maia [ex-governador e ex-senador], e por aí vai,” disse Duarte.
A Saiba Mais se inspira na bem sucedida Agência Pública de Jornalismo Investigativo, embora Duarte admita não ter condições de fazer o mesmo tipo de jornalismo de profundidade por falta de recursos. Mesmo assim, é capaz de produzir furos com repercussão, como a notícia de que o prefeito de Natal reajustou o próprio salário para ser o segundo mais bem pago prefeito entre as capitais do Brasil.
“A gente ficou umas duas semanas só dando a matéria [sobre o reajuste]. Ninguém mais [da imprensa falou no assunto], todo mundo ficou calado. É esse tipo de cobertura que dá um orgulho danado, porque os colegas dos outros veículos vêm parabenizar a gente, dizer que não deram porque não puderam,” disse Duarte. “Minha grande inspiração é a Pública, só que a gente não tem orçamento, não tem um financiamento fixo. A gente precisa muito da audiência para gerar receita. Então a gente faz o hard news. Eu acho que a cidade precisa disso, né?”
Há quatro anos, sete estudantes de jornalismo de Pernambuco propuseram uma pauta para o edital da Agência Pública e nem acreditaram quando ganharam BRL 7.000 (USD 1,200) para produzirem uma reportagem em vídeo sobre um tema difícil: violência policial. A reportagem reconstruiu dois casos em que policiais militares balearam manifestantes em protestos no Nordeste.
“[Fundamos a Retruco] com um desejo em comum: comunicar de forma efetiva, acessível, moderna e livre de amarras, mas claro, a partir de um olhar do Nordeste! Sabe? Queríamos ir além do jornalismo tradicional e descentralizar o fazer comunicação, que é bastante centrado no Sudeste do país,” disse à LJR Juliana Aguiar, uma das fundadoras da Retruco. “[A seleção no edital da Pública] nos deu a certeza que estávamos indo no caminho certo.”
Em 2021, a Retruco foi finalista na categoria multimídia do prestigioso Prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo e Direitos Humanos com o projeto Dependências, sobre a rede de interesses econômicos, políticos e religiosos no entorno da oferta de vagas de acolhimento e internações de dependentes de drogas em comunidades terapêuticas e clínicas de reabilitação no Nordeste.
“Concorremos ao lado de trabalhos do Fantástico e da Folha de S. Paulo,” disse Aguiar. A reportagem especial foi fruto de uma bolsa da Fundação Gabo no valor de BRL 14.000 (USD 2745,76).
Apesar do reconhecimento da qualidade jornalística, a Retruco ainda não tem fonte fixa de receita. Por isso, nenhum dez integrantes da equipe se dedica integralmente à agência.
“O nosso projeto ainda não é sustentável e essa é a nossa principal dificuldade atualmente. O que nos mantém são as bolsas de reportagem que conseguimos aprovar por editais. Os valores nos ajudam a contribuir com os custos de produção/logística, remunerar os colaboradores e fazer reportagens mais robustas,” disse Aguiar.
Quando a Agência Tatu foi ao ar pela primeira vez em 25 de abril de 2017, os três fundadores, todos ainda estudantes de jornalismo, sabiam que se tratava da primeira iniciativa de jornalismo de dados criada no estado de Alagoas. O que eles não sabiam é que era a primeira também de todo o Nordeste do Brasil.
“A nossa intenção era obter, analisar e produzir matérias com dados focando em Alagoas, explorando personagens, especialistas e fontes locais. O que nos motivou foi, principalmente, o potencial do Jornalismo de Dados e vendo que era uma área inexplorada em Alagoas. Também nos incomodava a divulgação rasa de dados, principalmente os públicos, já que os veículos locais davam, geralmente, as informações passadas pelas assessorias,” disse à LJR Graziela França, fundadora e diretora de conteúdo da Tatu.
Cinco anos depois, a Tatu tem uma equipe de oito pessoas: cinco jornalistas, um designer gráfico e dois estagiários. A agência desfruta também de um raro reconhecimento nacional para veículos do Nordeste, conquistado através de prêmios nacionais e internacionais, e de editais de financiamento. Hoje 100% do faturamento vem de parcerias com empresas privadas, instituições públicas e ONGs, fornecendo desde projetos de checagem de fatos, produção de matérias com dados e até reportagens especiais.
“A nossa produção própria, disponível gratuitamente em nosso site, não nos traz lucro diretamente, mas funciona como mecanismo de impacto por oferecer conteúdo de qualidade à sociedade, além de ser fundamental para criar uma grande vitrine de apresentação dos nossos projetos e de todas nossas competências como startup de mídia,” disse França.
Entre as principais reportagens, está “O Amargo da Cana”, que mostra o elevado índice de acidentes de trabalho e sequelas sofridas pelos trabalhadores de cana de açúcar, um segmento importante da economia de Alagoas. Já o Monitor da COVIDdivulgava informações atualizadas diariamente sobre a doença no estado -- foi descontinuado em março com o arrefecimento da pandemia.
“A sustentabilidade financeira é um dos principais pontos, mas também encontramos dificuldades em conseguir atender a todas as demandas de gestão, produção e expansão, já que somos três sócios jornalistas e tivemos que desenvolver habilidades voltadas ao empreendedorismo, programação, designer, etc,” disse França. “Atualmente, estamos em um processo de aceleração que trata justamente da expansão da Tatu para outros estados do Nordeste. Estamos trabalhando diversas ideias para alcançarmos mais pessoas em Alagoas e outros estados da região, que passarão a contar com uma cobertura de dados mais especializada e aprofundada.”
A LJR conversou com a jornalista Tatyana Valério, fundadora e única jornalista do Paraíba Feminina, no dia em que ela publicou a última reportagem nos três anos de existência do site de jornalismo feminista baseado no estado da Paraíba. Por falta de dinheiro para manter a iniciativa, Valério decidiu encerrar as operações, embora admita retormar o trabalho caso consiga novas opções de financiamento.
Valério lançou o Paraíba Feminina em 2019 para dar visibilidade aos temas feministas no estado. Naquele momento, o presidente Jair Bolsonaro havia acabado de tomar posse com um discurso de oposição à agenda feminista. Depois de dois anos sem remuneração, tocou o site como pode com recursos próprios até que conseguiu duas publicidades que rendiam BRL 3.700 (USD 722) por mês. Os acordos venceram em abril e não foram renovados.
“Tem um quadro aqui na minha frente com um monte de matéria para eu fazer, só que eu preciso me dedicar ao [trabalho] que vai pagar as minhas contas, então eu vou deixando as pautas aqui em stand-by,” disse Valério, que trabalha como assessora de imprensa na Assembleia Legislativa da Paraíba.
Em três anos, Valério se orgulha do resultado das reportagens que publicou. Numa delas, ela denunciou casos violência sexual contra adolescentes por uma celebridade local. Noutra, mostrou situações de abuso e assédio contra trabalhadoras de uma empresa. Em mais uma, conseguiu que a ex-mulher de um detento recebesse proteção policial após ameaças do ex-marido. Como resultado, colheu diversas ameaças, duas das quais ela considera “mais sérias”.
“Minha mãe me pergunta se vale a pena sofrer essas ameaças. Eu não sei. Talvez eu não consiga viver disso, que era o meu sonho, mas eu estou fazendo alguma coisa. Eu estou deixando algum legado quando os meus filhos tiverem adultos, eles vão lembrar? Vão dizer, ‘minha mãe fez isso, minha mãe fez aquilo, minha mãe ajudou as pessoas’,” disse Valério. “Eu fiquei com medo na época que eu recebi as ameaças. Eu fiquei com medo, de verdade.
São Luís, capital do estado do Maranhão, é a cidade com a maior quantidade de veículos jornalísticos registrados do Nordeste: 127, segundo o Atlas da Notícia. A Agência Tambor, criada em 2018, é uma dessas iniciativas. Criada a partir do Jornal Vias de Fato, publicação impressa mensal que circulou de 2009 a 2018, a Tambor se descreve como um veículo de “comunicação comunitária, livre, alternativa e popular.”
Como boa parte dos veículos desta lista, a Tambor tem como “maior desafio o financeiro. É existir, mantendo um projeto editorial comprometido com as pautas para o qual fomos criados: defesa dos direitos humanos, da classe trabalho, da preservação do meio ambiente,” disse à LJR a jornalista Rejane Galeno, que preside a Sociedade Maranhense de Mídia Alternativa e Educação Popular Mutuca, responsável pela operação da Tambor.
São cinco pessoas na equipe: três jornalistas e dois estudantes de comunicação. Além das reportagens para o site, a Tambor produz ainda um noticiário diário ao vivo no YouTube e um podcast.
“Já recebemos prêmios na área de direitos humanos, tivemos nosso trabalho reconhecido por diferentes categorias e organizações. Mas o maior orgulho é existir num ambiente tão adverso. E existir garantindo a total é aboluta liberdade de expressão dos nossos entrevistados,” disse Galeno.