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Jornalista cubana usa criatividade para garimpar informações e manter base de dados para outros meios

Qualquer jornalista que alguma vez na vida fez uma reportagem usando a Lei de Acesso a Informação do seu país tem várias queixas, com certeza, sobre os protocolos e as dificuldades impostas pelo Estado na divulgação de informações públicas.

Saiba, no entanto, que poderia ser pior. Em Cuba, nem mesmo as estatísticas mais básicas, como índices macroeconômicos, estão disponíveis ou são confiáveis. E pouca qualidade e limitações da internet impedem pesquisas mais profundas. Mesmo assim, o jornalismo de dados prospera na ilha cujo governo censura informações ao seu bel-prazer.

Barbara Maseda criou o Proyecto Inventario para servir de base de dados para jornalistas cubanos independentes (Foto: divulgação)

Barbara Maseda criou o Proyecto Inventario para servir de base de dados para jornalistas cubanos independentes (Foto: divulgação)

A jornalista cubana Barbara Maseda mantém há um ano no ar o Proyecto Inventario, cuja missão é publicar todos e quaisquer dados disponíveis sobre Cuba. Ela se propõe a servir como uma base de dados para consulta e uso de outros jornalistas independentes que escrevem sobre a ilha.

“Poderia ter criado um novo meio, mas o projeto está desenhado não como um meio que cubra notícias. Não fazemos reportagens acabadas. O projeto está desenhado como uma unidade de dados, mas não de um veículo específico. [...] A ideia é ser um serviço para quem faz jornalismo”, disse Maseda ao Centro Knight, falando dos Estados Unidos, onde reside atualmente.

Segundo Maseda, os veículos independentes não têm acesso a nenhuma fonte do governo, que simplesmente os ignoram. Nem mesmo empresas contratadas pelo governo têm autorização para fornecer informações, o que prejudica mesmo apurações básicas de reportagens simples. Além de disponibilizar as bases de dados que consegue, o Proyecto Inventario também tem como missão desenvolver a cultura do uso de dados no jornalismo independente cubano, que é uma forma de superar o bloqueio às fontes oficiais.

“Como ocorre nos Estados Unidos, no Brasil, na Inglaterra, no México, [onde] já houve muita experiência nos últimos anos na necessidade de se especializar no trabalho com dados, porque os países estão gerando muitos dados e este é um nova habilidade que [o jornalista] precisa interrogar sobre um novo tipo de fonte. [...] Em Cuba, isso não aconteceu espontaneamente. Não experimentamos o processo em que o governo e as instituições se digitalizam e geram um enorme volume de informações que precisamos cobrir [...] Cuba é um lugar onde há muito sigilo de todos os tipos de informações.”, avaliou Maseda.

Até mesmo as informações mais básicas e aparentemente desimportantes para serem configuradas como segredos de Estado são de difícil acesso. Como, por exemplo, a data de nascimento dos parlamentares que compõem a Assembleia Nacional de Cuba. Inventario mantém uma base de dados sobre os 603 parlamentares da atual legislatura (duas cadeiras estão vagas). As idades foram publicadas na imprensa oficial na posse dos parlamentares e integram a base de dados, sendo atualizadas ano a ano.

“Em Cuba não existe lei de acesso a informação. E a nível de publicação de dados, se publicam estatísticas, resumos de dados aos quais não temos acesso. [...] Isso é pouco. Se o governo diz que há 300 acidentes de trânsito em Havana ao ano, não tenho como desagregar esses dados por local, data. Não há detalhes”, afirmou a jornalista.

O site surgiu a partir da experiência da jornalista na Universidade de Stanford como bolsista John S. Knight e, depois, ao ser selecionada para o programa JSK Impact Partnerships. Além disso, o primeiro ano foi bancado ainda por economias pessoais, enquanto Maseda busca outras fontes de investimento para poder ampliar o alcance.

“O projeto é um protótipo, uma amostra do que pode ser. [...] Neste segundo ano de existência, tenho que mudar um pouco minha estratégia. Como não tenho financiamento, tenho que fazer tudo sozinha, faço isso nas mídias sociais, o site, que consome muito tempo e não posso me dedicar [apenas aos dados] ", afirmou.

Atendendo às necessidades de jornalistas cubanos

O Proyecto Inventario é fruto de uma tentativa frustrada de Maseda em trabalhar com dados na ilha. Além da falta de bases públicas, a conexão com a internet era e ainda é um grande empecilho para que jornalistas façam pesquisas e usem ferramentas que estão disponíveis online. Segundo a jornalista, o acesso à internet se dá em redes públicas e compartilhadas. Ela, então, disponibiliza toda a sua base para download.

“O jornalismo independente está muito desconectado da Internet. Conectar-se à Internet é um ato pontual, que é realizado por uma hora, duas horas. Mas não ocorre todos os dias. O projeto foi projetado para este mundo. [...] Tudo é postado para download porque sei que um jornalista cubano não usará uma planilha do Google. A pessoa levará os dados para casa e os analisará em um aplicativo offline”, explicou Maseda.

Como Inventário não se propõe a atuar como meio de comunicação, o site estimula o uso dos dados por outros veículos independentes, com o devido crédito. Isso já ocorreu reportagens sobre a nova constituição cubana, os protestos contra o alto preço da recém-inaugurada internet móvel na ilha, e as viagens de cubanos ao exterior. Em nenhuma delas, os dados são peça central, mas colaboram para o entendimento da informação.

“Me alegra estar criando essa referência. Em um ano, dois ou três anos, alguém poderá usar [nossos dados] e fazer comparações [...] Isso nos ajudará a melhorar, faz parte do processo de profissionalização do jornalismo cubano, de tirar aproveitar de ferramentas que talvez sejam normais em outros lugares.”, disse Maseda.

O jornalista José Raúl Gallego Ramos, do site El Toque, é um dos que vêm utilizando dados levantados por Inventario em suas reportagens. Ele reconhece que, além da escassez de dados oficiais, há também uma dificuldade específica dos jornalistas cubanos em trabalhar com informações estruturados.

José Raúl colabora com El Toque e usa dados de Inventario em suas reportagens (Foto: divulgação)

José Raúl colabora com El Toque e usa dados de Inventario em suas reportagens (Foto: divulgação)

“Nós jornalistas precisamos de dados confiáveis para construir e realizar nosso trabalho e análise. Infelizmente, nosso treinamento apresenta lacunas em questões relacionadas à recuperação de informações em tempos de big data, e a existência de um projeto como Inventario não apenas ajuda a superar algumas lacunas de informação em Cuba, mas nossas próprias lacunas como jornalistas em matéria de recuperação de informação”, disse Gallego Ramos ao Centro Knight.

Ele acredita que na medida em que mais jornalistas cubanos saibam como trabalhar com dados, mais este tipo de ferramenta será incorporada nas reportagens produzidas na ilha, ainda que o Estado mantenha a sua política de segredo. Isso porque será possível buscar e analisar informações sobre o país que sejam produzidas por outras instituições.

“Acima de tudo, é importante aprender não apenas o uso de dados, mas também saber para onde procurar, pois não é muito provável que, a curto prazo, exista uma política explícita de transparência em Cuba, mas [que] todos os dias haja mais informações on-line de instituições cubanas, mas também de instituições estrangeiras relacionadas a instituições cubanas e essas são importantes fontes de informação importante”, disse.

Criatividade para obter dados

O cenário imaginado por Gallego Ramos já é uma realidade em Inventario. Para driblar a escassez e dificuldade de acesso a dados oficiais do governo de Cuba, a Maseda conta em larga escala com fontes secundárias, como pesquisas de instituições estrangeiras, de outros jornalistas internacionais e de governos que possuem leis de transparência.

“O comércio de Cuba com Brasil, por exemplo. Cuba não publica informações comerciais. Se quero saber quanto frango Cuba compra do Brasil por ano e o governo não me vai dizer, uso a fonte brasileira. Nos beneficiamos de dados abertos de outros países para conseguir dados do nosso país. As dificuldades nos empurram a encontrar uma saída. Então, não é que seja brilhante, apenas não temos outros métodos”, explicou a jornalista.

Através de dados oficiais públicos, Maseda conseguiu, por exemplo, saber quantos cubanos viajam anualmente à Rússia. O dado fez parte de uma reportagem que contava que muitos comerciantes de Cuba compram mercadorias em Moscou para revender na ilha.

Mais recentemente, com a chegada da internet móvel na ilha, Maseda tem feito alguns experimentos com informações obtidas do público. Um trabalho recente e que foi amplamente utilizado é sobre interrupções no fornecimento de eletricidade.

Houve uma onda de apagões e o governo prometera que não cortaria a eletricidade de maneira programada para economizar petróleo no verão, porque é cruel. O verão em Cuba é muito quente. Então, as pessoas começam a perceber que ficavam horas sem luz. Houve muitas reclamações isoladas nas redes sociais e, em seguida, organizamos uma campanha para contabilizar apagões no Twitter, onde pedimos às pessoas que se faltasse luz, nos contassem em qual município. [...] Recebemos mais de 400 respostas"”, lembra Maseda, que ressalta que resistiu inicialmente a este tipo de levantamento porque é impossível, através dele, fazer afirmações mais precisas. “É para capitalizar a energia que as pessoas têm que denunciar algo e fazer as contas".

Em alguns casos, as informações são fornecidas pelo próprio governo através de seus canais oficiais.

Em novembro de 2018, quando começaram a retornar os médicos cubanos que atuavam no Brasil através de um convênio com a Organização Pan-Americana de Saúde, a imprensa oficial noticiou com destaque. Na ocasião, o governo cubano decidiu encerrar a parceria depois de declarações do então presidente eleito Jair Bolsonaro, que anunciou que exigiria a revalidação dos diplomas dos profissionais, que até então estavam isentos.

Maseda notou que a cada voo, era informado o número de médicos que retornavam e passou a registrá-los. “Foi um dos levantamentos inesperados que fiz. Foram 32 voos de regresso. Quando ocorre o primeiro voo, que era um orgulho para a revolução, vejo que um informe do jornal do Partido Comunista informa a quantidade de médicos que voltaram. E passaram a fazer isso em todos os voos, até que percebem que nem todos os médicos voltariam”, lembra.

No voo 30, o Partido Comunista deixou de dizer quantos médicos haviam retornado. Maseda, então, completou os dados com a média dos presentes nos 29 voos anteriores. E concluiu que um quinto dos profissionais cubanos não retornaram.

Nunca aspiramos à exaustividade. Quase nunca temos a felicidade de ter todos os dados detalhados e completos, mas sentimos que chegamos bem perto, e isso é um bom início”, comemora.

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