*Este texto foi atualizado
Na manhã de 14 de setembro, as filhas da jornalista Kalua Salazar brincavam no quintal quando viram cerca de 20 policiais armados chegarem em uma caminhonete, descerem do veículo e ocuparem a frente da casa. As meninas correram para dentro, assustadas, e perguntaram a Kalua: "Mamãe, eles vão te levar presa?".
A jornalista nicaraguense, de 26 anos, não foi detida, mas a cena se repetiu por vários dias, em uma rotina de intimidação, segundo relatou Salazar à LatAm Journalism Review. "Tenho três filhas, uma de 10 anos, outra 4 e uma de 2. [Quando chegam os policiais] elas morrem de medo e se metem dentro de casa. É uma situação bastante forte para elas. A do meio sempre acorda de noite com medo. E a minha mãe teve um pico de pressão e eu tive que levá-la ao hospital", conta.
Salazar é chefe de redação e repórter da rádio La Costeñísima, em Bluefields, na região autônoma da Costa Caribe Sul, na Nicarágua. A equipe da emissora, formada por dez jovens jornalistas, se esforça para fazer seu trabalho diante de cortes de energia, perseguições, intimidações policiais e ameaças de morte. Por fazer um jornalismo crítico, com denúncias de corrupção e violações dos direitos humanos no país, La Costeñísima tem sofrido ataques em diversas frentes. A emissora é um exemplo de como a imprensa independente tenta sobreviver no país diante da perseguição do regime autoritário do presidente Daniel Ortega.
A investida mais recente contra a rádio foi uma ação judicial, em que Salazar foi condenada por calúnia. A jornalista foi processada por uma reportagem que denunciava um suposto caso de corrupção na prefeitura de El Rama, cidade a cerca de uma hora de Bluefields. A sentença, que foi anunciada em 29 de setembro, é uma multa de 7.684,58 córdobas (cerca de R$ 1.250, US$ 220), equivalente a um mês e meio de salário de Salazar.
A condenação vem em um momento em que os jornalistas lutam para manter a rádio de pé, após a perda do seu diretor e fundador, Sergio León Corea, que morreu de COVID-19 em junho. Ao mesmo tempo, o veículo sofre os efeitos da recessão econômica, agora agravada pela pandemia, mas que já se arrastava desde abril de 2018, quando o país foi sacudido por uma crise política.
Naquele ano, manifestações contra o governo de Ortega foram duramente reprimidas pelas forças policiais, deixando pelo menos 300 mortos. Em um relatório, a ONU identificou execuções extrajudiciais, desaparacimentos forçados, detenções arbitrárias e tortura por parte de agentes estatais e paramilitares. Desde então, segundo a organização, mais de 100 mil pessoas já pediram asilo político, incluindo dezenas de jornalistas.
Após abril de 2018, o regime nicaraguense e apoiadores do partido governista, a Frente Sandinista de Libertação Nacional, se voltaram contra a imprensa, com a prisão de jornalistas, retenção de papel-jornal, ocupação de redações, como a do Confidencial e do 100% Notícias, e o embargo de bens do Nicavisión Canal 12. Segundo relatório da organização Artigo 19, de dezembro de 2019, a Nicarágua é um dos países que mais perderam em liberdade de expressão nos últimos anos em todo o mundo.
Ao comentar sobre os riscos da profissão, Salazar se lembra do colega, o jornalista Ángel Gahona, que foi assassinado em Bluefields, enquanto cobria protestos em 2018. "Aqui, quando começam a te ameaçar de morte, a pessoa precisa se preocupar", disse ela, que recebe constantes mensagens nas redes sociais. Nos perfis da rádio, são frequentes as publicações: "Tem que matar todos eles", "tem que queimá-los vivos".
A presença da polícia na porta das casas dos jornalistas ou na frente da rádio, além do processo judicial, tem um custo emocional para Salazar. Às vezes, ela precisa tomar remédios para dormir, e um simples jantar fora de casa com a família se tornou impossível.
"Não saímos, de jeito nenhum. Não tenho uma vida social normal de uma pessoa de 26 anos. Porque se você sai e está em um lugar de lazer, eles fazem fotos da sua família, e eu não quero que façam isso com as minhas filhas", afirma a jornalista.
Por segurança, Salazar não faz nenhuma atividade além do necessário: vai da sua casa para o trabalho, do trabalho para a universidade, e retorna. Ela é aluna na faculdade de administração, porque não havia curso de jornalismo na região. "Saio da universidade tarde da noite e me dá muito medo", disse.
O processo judicial também foi desgastante, afirma. Antes de sair para a audiência, ela disse ao marido e à mãe que cuidassem das suas filhas, caso fosse presa. Segundo Salazar, ainda que não haja pena de detenção para o delito de calúnia, não há confiança de que as autoridades vão cumprir a lei. "Legal ou ilegalmente eles podem fazer isso", afirmou ela à LJR, dias antes do julgamento, que durou cinco horas e foi a portas fechadas.
Depois de sair, Salazar contou, por telefone, que havia uma multidão na porta do complexo judicial, gritando insultos contra ela e pedindo a sua prisão. "Os policiais estavam fazendo fotos e vídeos de mim. E podíamos notar que tinham vindo muitos fanáticos orteguistas de El Rama, com as suas camisas do governo. Até alugaram um ônibus particular, para trazer as pessoas, com alimentação, com tudo", afirmou.
Por outro lado, ela se mostrou comovida pela presença de dezenas pessoas, que foram ao local para prestar solidariedade. Salazar disse que muitos ouvintes que estavam ali prometeram ajudar a arrecadar fundos para a multa. E que sente muita dor de saber que a injustiça contra a rádio também está envolvendo a população, já muito empobrecida.
"Sabemos que muitas pessoas aqui não estão trabalhando, e eu não queria tirar esse dinheiro que essa pessoa pode ter para pagar a comida dos seus filhos… Isso é o que está me fazendo mal emocionalmente. Isso [o processo] é tão injusto, que a população quer contribuir, mas eu sei como está a pobreza aqui, eu trabalho de mãos dadas com essa gente".
A jornalista conta ainda que foi chantageada para revelar as suas fontes, o que, segundo ela, a livraria do processo. Caso não informasse o nome da fonte, "eles iriam até as últimas consequências". "Eu disse a eles: Eu dei a minha palavra quando fiz essa entrevista de manter o anonimato. Vou morrer com as botas postas [cumprindo meu dever]".
Kalua Salazar começou a trabalhar na rádio em 2013, ajudando o diretor, Sergio León, em reportagens especiais sobre pobreza extrema, violações aos direitos humanos e violência contra mulheres. Com tantos ataques, ela diz que nunca pensou em deixar a profissão, apesar das recomendações da mãe. "Eu digo a ela que há duas coisas na vida que uma pessoa não pode permitir: que os ditadores no poder manipulem a sua vida e que o medo te paralise, porque, se isso acontece, você já não é uma pessoa com uso da razão", diz, com a voz firme.
Depois do julgamento, Salazar foi direto para a rua fazer uma reportagem sobre violência policial. Ela disse que muitas pessoas dependem dela e que, por isso, não podia se "deixar cair". "O pior que eu posso fazer é ir para casa chorar e me trancar lá, porque é isso que eles querem. Assim como toda rebelde, faço o contrário", escreveu ela, finalizando a mensagem no WhatsApp com um emoji de carinha feliz.
Pessoas temem ser denunciadas por ouvirem a rádio
Os ataques à La Costeñísima são variados e se voltam contra diferentes alvos, tanto que muitos dos seus jornalistas já conseguiram medidas cautelares na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por causa do risco de vida que correm.
Salazar conta que muitas pessoas têm medo de ouvir a La Costeñísima em suas próprias casas e usam fones de ouvido para evitar problemas. "Não podem escutar a rádio porque os vizinhos podem avisar ao comitê sandinista do bairro. Eles ficham essa pessoa como opositor e tornam a sua vida impossível", explica ela.
Recentemente, o meio de comunicação também tem enfrentado cortes de energia, que costumam ocorrer no horário do noticiário, cerca de três vezes por semana, contou à LJR Paula Smith, 32, administradora geral de La Costeñísima.
Ela descreve que, além da presença da polícia, que fica na frente da rádio em uma frequência semanal, há sempre duas pessoas em uma moto, "de segunda a segunda". "A gente reconhece pelos sapatos e já sabemos que são policiais [em roupas de] civis". Por segurança, a rádio passou a fechar mais cedo, às 19h: os jornalistas saem em grupos e são levados para casa de carro.
Smith diz que, desde 2018, a situação econômica da rádio se deteriorou. A emissora, que hoje tem um site e um canal de televisão, sobrevive de anúncios, mas a crise econômica e política reduziu drasticamente a publicidade. Com isso, La Costeñísima passou a atrasar os salários dos seus jornalistas em dois ou três meses.
"Não é algo que dependa da equipe de direção da rádio, a Nicarágua está passando por uma recessão", diz Salazar. Ela reforça que, neste contexto, a multa imposta pela Justiça tem um impacto muito grande. Smith lamenta que, com os atrasos, muitos jornalistas tenham deixado a rádio, que, de acordo com ela, é líder de audiência na região. "Éramos 15, antes de 2018, e só ficamos dez". A emissora também se manteve graças ao apoio emergencial de algumas organizações filantrópicas, como a Fundación Violeta Barrios de Chamorro.
Kimberly León, 23, que assumiu a direção da rádio após a morte do pai, disse à LJR que a emissora ia bem antes de 2018: "Esse ano foi uma mudança radical". Ela acrescenta que a repressão do governo contribuiu para asfixiar as finanças, porque os comerciantes eram pressionados a anunciar em outras rádios.
"Não é fácil, porque todas as rádios são partidárias, e competimos com elas. [...] Algumas pessoas diziam isso claramente, que alguém do governo mandava que eles cortassem a publicidade, porque não podiam estar com a gente e tinham que estar sempre com o partido", explica.
A diretora reconhece a paciência e compreensão dos funcionários com os atrasos salariais. E afirma que a equipe trabalha junta há muitos anos. "Já nos consideramos família. Os trabalhadores têm paciência com a gente, nos esperam, mas nós nos preocupamos porque sabemos que alguns deles são o único sustento do seu lar, por isso sempre estamos buscando recursos por todos os lados", afirma.
Rádio na casa da avó, com pé de manga e o cachorro Toffi
O ambiente familiar da rádio não é apenas uma metáfora da união da equipe. A La Costeñísima hoje está instalada nos fundos da casa da avó de Kimberly. Seu pai, o fundador, construiu um pequeno edifício azul no pátio da mãe para acolher a rádio. Antes, o meio de comunicação ocupava uma casa, no mesmo terreno, voltada para a rua. Mas, por segurança e após pichações na fachada contra o veículo, Sergio decidiu transferir a sede para os fundos.
Assim, para chegar à La Costeñísima, os jornalistas precisam passar pela casa da senhora León e cumprimentá-la: "Bom dia, Miss Janeth, como vai?". Só depois cruzam o pátio que, apesar de simples, abriga um generoso pé de manga e Toffi, o cachorro da senhora León e espécie de mascote da rádio.
"É um edifício pequenino, estamos trabalhando como se estivéssemos de mãos dadas todos [de tão pequeno]. É um ambiente amistoso, alegre. Temos tempo para rir, chorar, conversar e trabalhar", conta Kimberly.
La Costeñísima foi fundada pelo seu pai em 2001, após o convite de um amigo e sócio. Mas foi sempre Sergio que se encarregou da rádio, e o trabalho jornalístico do pai marcou a infância de Kimberly. Sergio era seguido por pessoas estranhas na rua e sofreu intimidações e processos – em 2019, ele e sua família conseguiram medidas cautelares na CIDH.
Kimberly afirma que os ataques pioraram com a crise de 2018 no país, mas ela se lembra de episódios de violência muito anteriores. "Meu pai gostava muito de fazer reportagens sobre o narcotráfico, e desde então nós éramos perseguidos e nos vigiavam".
Uma vez, aos 11 anos, Kimberly dormia na cama dos pais quando pessoas invadiram a casa e forçaram a porta do quarto. Seu pai, que tinha uma arma, atirou para cima, e os invasores fugiram. "E quando saímos do quarto para ver se eram ladrões, [...] eles não tinham roubado absolutamente nada. O objetivo ou era matar todos nós ou matá-lo", recorda. Depois disso, Sergio contratou um vigia, que durante anos protegeu a casa da família.
Kimberly começou a trabalhar na rádio em 2014 e, em 2018, também passou a ser alvo das intimidações. Em 2019, Sergio avaliou que era muito perigoso para ela continuar na Nicarágua e propôs que ela fosse para os Estados Unidos. Kimberly insistiu para o pai ir junto, mas ele se recusava a abandonar a rádio. "Meu pai dizia que ia ficar aqui não importava o que acontecesse. Ele tinha medo que fizessem algo contra a sua família".
Kimberly voltou dos EUA após quatro meses e ficou cerca de um ano afastada da rádio, até que não aguentou mais. "Não queria ficar em casa sem fazer nada. Gosto muito do que eu faço e não me vejo trabalhando em nenhum outro lugar que não seja na La Costeñísima".
A jornalista não pensa em largar a profissão, ainda que ela tenha um custo pessoal muito alto. Kimberly não sai mais com amigos, porque não quer colocar ninguém em perigo, nem envolvê-los na sua situação. "Uma vez a polícia disse para um amigo meu que o tinha visto comigo e que ele deveria acabar com essa amizade, porque eu só poderia lhe trazer problemas. Então decidi me afastar". Kimberly não se sente segura de conversar com outras pessoas, porque não sabe em quem pode confiar. Sua rotina se resume a ir ao trabalho e à universidade, onde estuda contabilidade pública e finanças.
"Isso nos marcou, porque éramos uns meninos livres e agora não somos mais. E a maioria dos trabalhadores da rádio somos meninos e meninas super jovens. [...] Sabemos que vamos trabalhar, mas não sabemos se vamos voltar aos nossos lares. Trabalhamos com esse medo por dentro", desabafa.
Como medidas de segurança, Kimberly costuma mudar o carro, o meio de transporte, os trajetos e os horários sempre que possível. Também avisa a mãe, com quem mora, sempre que sai de algum lugar. Kimberly reconhece, entretanto, que tudo isso tem um efeito limitado. "Eles sabem qual é o meu carro e, se decidirem me parar, vão conseguir".
Após a morte do pai, os ataques pioraram, e os jornalistas da rádio se sentem mais vulneráveis. Sergio León era "uma instituição", eles garantem, e o fato de ele ser um jornalista conhecido trazia segurança e respaldo para La Costenísima. Sergio era também o mais experiente, uma espécie de bússola moral da equipe, que ficou muito abalada com a perda.
"Meu pai já tinha uma marca, ninguém podia tocar nele, ainda que quisesse. E agora ele não está, e nenhum de nós é Sergio León. Então é mais perigoso", diz Kimberly. Não tem sido fácil para ela assumir o lugar do pai, em um momento de luto, medo e instabilidade. Nesse processo, o apoio da equipe tem sido fundamental, conta ela. "É uma responsabilidade muito grande. Eu tenho 23, ele tinha 50 anos de muito trabalho e estudo. Estou em um processo de adaptação e aprendizado".
Kimberly não quer ver o trabalho do seu pai morrer junto com ele, e isso a ajuda a seguir adiante. "Ele amava essa rádio", diz ela, enfatizando cada sílaba da palavra "amava". "E isso me motiva a seguir lutando. Quero dizer que La Costeñísima vai continuar em pé, vai continuar abrindo seus microfones para toda a população costeira, vai continuar trabalhando até onde podemos, até quando nos permitam, porque sabemos que, com essa situação que estamos vivendo no país, qualquer coisa pode acontecer".
*Este texto foi atualizado para explicar que os bens do Nicavisión Canal 12 foram embargados.