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Monitoramento, transparência e confiança do público são ferramentas contra desinformação em ano eleitoral

Eleitores de seis países da América Latina escolherão novos presidentes neste ano, enquanto pelo menos dois países da região têm eleições locais programadas.

No contexto atual de desinformação, polarização e autoritarismo na América Latina, este ano apresenta múltiplos desafios para a defesa da democracia, disseram jornalistas e defensores da liberdade de imprensa de Argentina, Brasil e México que participaram do Festival Internacional de Jornalismo 2024, realizado em Perugia, Itália, de 17 a 21 de abril.

O monitoramento da desinformação pelas organizações de notícias, os riscos do uso de inteligência artificial e redes sociais em campanhas políticas e o papel atual do fact-checking na região foram temas abordados por palestrantes desses países em diferentes painéis do festival, que contou com pelo menos 10 palestrantes latino-americanos.

Patrícia Campos Mello, jornalista e colunista da Folha de S.Paulo, disse que é muito provável que, em alguns dos países com eleições neste ano, ocorram casos de deslegitimação dos resultados eleitorais impulsionados por campanhas de desinformação.

Periodistas Julie Posetti y Patrícia Campos Mello hablan durante el Festival Internacional de Periodismo de Perugia 2024.

Patrícia Campos Mello (à direita) participou de um painel sobre como os editores estão respondendo à poluição da informação em um ano crucial para a democracia. (Foto: Monica Rizza - Licenciada sob CC BY-ND 4.0 DEED)

Campos Mello citou como exemplo o que aconteceu no Brasil em 8 de janeiro de 2023, quando um grupo de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiu prédios federais em Brasília em protesto contra a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2022. A jornalista lembrou que o ataque foi facilitado pelas redes sociais e plataformas de mensagens instantâneas.

“Percebemos que isso será uma campanha permanente em vários países, quero dizer, [grupos que vão] dizer que as eleições são fraudulentas, como tentativas de golpe de Estado”, disse Campos Mello no painel "Desativando a desinformação: Como editores internacionais líderes respondem à contaminação informativa em um ano crucial para a democracia".

“Isso significa que temos que estar constantemente monitorando e cobrindo operações de desinformação”.

A jornalista compartilhou as três frentes usadas na Folha de S.Paulo para tentar combater a desinformação gerada por essas campanhas. A primeira é monitorá-las e tentar identificar quem as financia. A segunda é acompanhar de perto o lobby das empresas tecnológicas para evitar legislação em torno das plataformas digitais. E, em terceiro lugar, monitorar as regras das redes sociais referentes à disseminação de conteúdo.

Campos Mello destacou a preocupação de que, a seis meses das eleições locais que ocorrerão em mais de 500 cidades do Brasil, em outubro próximo, ainda não haja legislação no país sobre o uso de redes sociais e plataformas de mensagens.

“As empresas de tecnologia estão fazendo lobby agressivamente contra qualquer tipo de regulamentação da tecnologia. No Brasil, tiveram muito sucesso, conseguiram bloquear a legislação no Congresso por vários anos”, disse a jornalista. “Em vez disso, o que temos são apenas juízes ou magistrados do Supremo Tribunal aqui e ali, decidindo censurar isso ou aquilo”.

Como exemplo das consequências dessa falta de legislação, Campos Mello mencionou o caso do confronto público no início de abril entre Elon Musk, proprietário do X (antigo Twitter), e o juiz do Supremo Tribunal Federal do Brasil Alexandre de Moraes, que nos últimos anos ordenou a suspensão de perfis da X acusados de disseminar desinformação eleitoral.

“Temos juízes regulando, o que não é ideal, não é democrático. O ideal é que a legislação seja debatida no Congresso por pessoas eleitas pelos eleitores”, disse ela. “O que estamos vendo é que se, você não tem regulação, não há vácuo, algo vai ocupar esse lugar”.

A Folha de S.Paulo tem uma parceria com a empresa brasileira de pesquisa e consultoria Quaest, que desenvolveu uma plataforma que monitora grupos de WhatsApp e Telegram, sobre a qual Campos Mello falou no painel como uma das estratégias do jornal para combater a desinformação eleitoral. Essa ferramenta permite rastrear os temas discutidos em determinados grupos. Em certo momento, disse ela, a ferramenta permitiu à equipe do jornal identificar estratégias de financiamento do movimento que tentava descredibilizar os resultados das eleições em 2023.

“Apesar de todos estarmos fazendo isso [monitoramento], fomos surpreendidos pelos ataques em Brasília em 2023. Isso significa que não estamos fazendo o suficiente. Precisamos fazer mais e investigar mais profundamente”, disse Campos Mello. “Quando não há regulamentação, cresce nossa obrigação de tentar entender esses movimentos”.

No entanto, a regulação das plataformas tecnológicas pode se tornar uma arma de dois gumes, especialmente em países com instituições fracas, disse Luis Fernando García, advogado e diretor executivo da R3D (Red en Defensa de los Derechos Digitales), do México. Ele participou do painel “Redes sociais, inteligência artificial e eleições: perspectivas do Sul Global sobre o 'Ano da Democracia'”, moderado por Campos Mello.

García disse que os jornalistas devem considerar outros fatores envolvidos no fenômeno da desinformação e ameaças à democracia de cada país, como autoritarismo, militarização e presença do crime organizado.

“A desinformação em si é um fenômeno complexo, não é recente, não é explicada por uma única tecnologia, por um ator estatal, por uma empresa ou conjunto de empresas. Não há soluções fáceis”, disse García. “Com o surgimento de líderes autoritários em muitos lugares do mundo, [a regulamentação do discurso online] dá aos governos a oportunidade de exercer um maior controle sobre as populações e desmantelar a democracia”.

Activista Luis Fernando García habla durante el Festival Internacional de Periodismo de Perugia 2024.

Luis Fernando García disse que a perda de confiança das pessoas na mídia também favorece a desinformação. (Foto: César López Linares)

Como exemplo, García mencionou o projeto “Censura Eleitoral”, realizado pela R3D em colaboração com as organizações Artículo 19 e Access Now, que investigou a tendência crescente das autoridades eleitorais no México de utilizar medidas cautelares para solicitar às plataformas digitais a remoção de conteúdos de usuários, meios de comunicação e jornalistas.

“Já temos evidências de que isso foi abusado [pelas autoridades eleitorais] para suprimir discursos totalmente legais”, disse García. “Há várias propostas de lei impulsionadas pelo Exército, aliás, para legitimar essas operações de influência e para legitimar e criar uma nova agência de cibersegurança, por exemplo, que tenha poderes para censurar o discurso em nome do combate à desinformação, para realizar vigilância e para normalizar toda essa infraestrutura”.

García também falou sobre a investigação “Exército de Bots”, publicada pela R3D este ano, que documentou a existência de um centro militar de operações que monitora usuários de redes sociais que fazem publicações críticas às Forças Armadas mexicanas ou ao governo federal. A pesquisa relatou que neste centro também são criados perfis falsos para obter mais informações sobre usuários, e faz-se uso de um software para operar fazendas de bots para impulsionar narrativas favoráveis ao governo e atacar jornalistas e defensores dos direitos humanos.

"Técnicas de desinformação e manipulação estão realmente disseminadas e normalizadas em todo o espectro político", disse García. "Devemos pensar não apenas em questionar e pensar na regulamentação, por exemplo, da inteligência artificial em abstrato, mas também em uma regulamentação e aplicação que questione o modelo atual de negócios de vigilância desenfreada sobre o qual prospera a desinformação".

A perda de confiança nos meios de comunicação é outro fator que favorece a desinformação, considerou García. O painelista instou os jornalistas a questionar por que algumas pessoas atualmente confiam mais em mensagens anônimas do WhatsApp do que no que é dito pelos meios de notícias ou pelo próprio governo.

Embora, disse ele, a perda de confiança não seja apenas culpa dos meios de comunicação, estes desempenham sim um papel fundamental na reconstrução dessa confiança. Nesse sentido, Campos Mello concordou que os jornalistas não devem se limitar a culpar os governos ou as plataformas tecnológicas pela desinformação, mas também analisar como podem melhorar para combatê-la.

“Os meios de comunicação têm uma responsabilidade na perda de confiança e também uma oportunidade para recuperá-la e pensar como posso fazer com que meu público confie em mim e como posso ser mais transparente sobre minhas finanças e minhas decisões editoriais”, disse García.

Desinformação ambiental em campanhas eleitorais

Florencia Ballarino, jornalista de ciência e editora sênior do Chequeado, veículo argentino especializado em fact-checking, falou no festival sobre como a desinformação também pode distorcer narrativas sobre mudanças climáticas durante campanhas eleitorais.

Durante sua participação no painel “A verdade na era da crise climática: o papel crucial do jornalismo na denúncia da desinformação climática”, a jornalista citou o exemplo do processo eleitoral na Argentina em 2023, durante o qual o Chequeado realizou o projeto “Desmistificando a desinformação sobre as mudanças climáticas na Argentina”, com o apoio do Pulitzer Center. O projeto teve como objetivo identificar as narrativas falsas e enganosas mais prevalentes sobre as mudanças climáticas durante a campanha presidencial e os atores por trás delas.

Periodista Florencia Ballarino habla durante el Festival Internacional de Periodismo de Perugia 2024.

Florencia Ballarino disse que grupos libertários e de direita impulsionaram narrativas negacionistas das mudanças climáticas durante as eleições mais recentes na Argentina. (Foto: Diego Figone - Licenciada sob CC BY-ND 4.0 DEED)

O Chequeado fez um monitoramento diário nas redes sociais em busca de possível desinformação ambiental. Ballarino disse que, após analisar os resultados, sua equipe identificou três principais narrativas de desinformação que circularam durante a campanha presidencial. A primeira era o negacionismo das mudanças climáticas e suas consequências. A segunda referia-se à negação de que as atividades humanas são responsáveis pelo aquecimento global. E a terceira era uma narrativa de disseminação de teorias da conspiração sobre as mudanças climáticas.

“A maior parte da desinformação veio de campanhas organizadas, de grupos que se beneficiam da negação das mudanças climáticas”, disse Ballarino. “Em nosso projeto, descobrimos que grupos libertários e de direita eram as principais fontes de desinformação, impulsionando essa falsa ideia de que preciso amos escolher entre o crescimento econômico e a proteção do meio ambiente”.

Ballarino contou que até mesmo o atual presidente, Javier Milei, foi um dos principais impulsionadores dessas narrativas. Em entrevistas e debates como candidato, Milei negou os efeitos das mudanças climáticas e a responsabilidade humana pelo aquecimento global.

Como parte do projeto, Chequeado publicou uma série de artigos que desmentiram essas narrativas com dados e informações baseadas em evidências científicas. No entanto, Ballarino disse que desmentir informações falsas ou enganosas durante campanhas eleitorais não é a única coisa que os jornalistas devem fazer para combater a desinformação.

“Sabemos que não basta desmentir a desinformação. Nosso objetivo é que o público esteja mais preparado para reconhecer as narrativas falsas e a informação falsa", disse. “É crucial identificar as tendências da desinformação e o ator que a difunde, pois pode ajudar a evitar que a desinformação se torne viral. Além disso, também é importante identificar lacunas de informação, questões sobre as quais não é fácil encontrar dados, e preenchê-las com informações precisas”.

Além de promover a alfabetização midiática entre a população, a jornalista disse que é importante que os jornalistas verifiquem suas fontes e trabalhem com evidências científicas e com o apoio de cientistas.

A importância da transparência

Em uma sociedade altamente polarizada como a do Brasil atualmente, as pessoas querem saber quem está por trás do que é publicado nos meios de comunicação, as intenções dos jornalistas que assinam os artigos e qual é a agenda das organizações de notícias, afirmou Tai Nalon, co-fundadora e diretora executiva da organização brasileira de fact-checking Aos Fatos.

Nalon, que participou do painel “Transparência: Realmente funciona para combater a desinformação?”, disse que os jornalistas devem estar cientes de que essas perguntas existem e encontrar alguma forma de respondê-las para manter a credibilidade da audiência diante da desinformação.

“Esse é o principal valor de ter uma metodologia pública transparente e uma maneira transparente de mostrar às pessoas por que as coisas são falsas ou não tão falsas”, disse Nalon. “E outra coisa para a qual acredito que a transparência pode levar é que as pessoas saibam quem você é”.

Em um país como o Brasil, onde atualmente há mais de 600 processos judiciais contra jornalistas em andamento, segundo a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a transparência também pode ser uma poderosa arma de defesa para o jornalismo.

Nalon disse que a Aos Fatos enfrentou várias ações judiciais nos últimos anos em decorrência de seu trabalho de verificação. Mas as políticas de transparência do veículo, que incluem documentar cada fonte de informação e explicar aos leitores o motivo de recorrer a essas fontes, impediram que tais ações os afetassem, disse a jornalista.

“Fomos capazes de comprovar o que dizemos. Eu sei que é algo básico, mas às vezes não é, porque muitas vezes as pessoas não sabem como o jornalismo funciona", disse Nalon. “É algo que consideramos óbvio, mas quando você fornece a um juiz toda a documentação usada e os processos que decidiu seguir para publicar algo, pode ser realmente valioso”.

No entanto, a política de transparência "total" da Aos Fatos também foi usada contra eles. Nalón disse que seu veículo costumava publicar um relatório detalhado de receitas e despesas anuais, até que os autores de algumas ações judiciais contra o veículo começaram a exigir parte dessas receitas como forma de reparação.

“Ainda divulgamos como conseguimos dinheiro, mas basicamente não publicamos números”, disse Nalon. “Passamos, nos últimos seis anos, por um período muito difícil no Brasil, em que qualquer informação que fornecêssemos poderia ser usada contra nós”.

Nalon disse que a transparência também tem sido um elemento fundamental no desenvolvimento do FátimaGPT, o chatbot da Aos Fatos que em sua versão mais recente incorporou inteligência artificial generativa. A ferramenta funciona com uma extensa base de dados que inclui todos os relatórios e verificações que o veículo realizou em seus nove anos de existência.

Periodista Tai Nalon habla durante el Festival Internacional de Periodismo de Perugia 2024.

Tai Nalon (à esquerda) disse que o trabalho do Aos Fatos para desmentir as declarações do ex-presidente Bolsonaro é um exemplo do impacto que a verificação de fatos está tendo. (Foto: Claudio Faina - Licenciada sob CC BY-ND 4.0 DEED)

“Não poderíamos nos dar ao luxo de fazer isso se não tivéssemos uma metodologia pública, uma declaração pública de nossas fontes, uma política de erros que controla a qualidade das respostas [do chatbot]”, disse.

Em outro painel em que participou, “Fact-checking: vivo ou morto?”, Nalon falou do importante papel que a verificação de dados tem desempenhado em seu país nos últimos anos, especialmente durante a presidência de Bolsonaro. A jornalista lembrou que, no governo passado, veículos de comunicação tradicionais brasileiros, como redes de televisão e jornais, começaram a apontar as mentiras do ex-presidente, assim como faziam os verificadores.

O trabalho do Aos Fatos para desmentir Bolsonaro é um exemplo do impacto que a verificação de dados está tendo no jornalismo, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, disse Nalon. O veículo verificou cada declaração feita pelo ex-presidente durante os quatro anos em que esteve no poder e encontrou mais de 6 mil afirmações falsas ou enganosas.

O projeto foi mencionado na CPI sobre a pandemia realizada pelo Congresso do Brasil, que identificou Bolsonaro como “líder” das fake news no Brasil, fornecendo evidências de que as mentiras eram uma prática recorrente do governo e que o governo de Bolsonaro se beneficiou de um esquema de desinformação.

“Não vejo um impacto mais evidente do que este. De fato, para isso o fact-checking foi criado”, disse Nalon. “Se há um grupo específico de jornalistas que está fazendo a diferença em algumas democracias do mundo, são os verificadores”.

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