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Partir para sobreviver: jornalistas exilados e a crise da liberdade de imprensa na América Latina

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  • 18 outubro, 2022

*Por Santiago Villa. Publicado originalmente por GIJN.

Redações que são fechadas de uma hora para outra, guarda-costas que sabotam o trabalho dos jornalistas que estão sob sua proteção e processos judiciais que intimidam quem denuncia crimes do Estado. A América Latina está enfrentando uma crise de liberdade de imprensa e em alguns casos ela é tão grave que está obrigando jornalistas a fugirem de seus países.

Do México ao Brasil e de El Salvador à Venezuela, os ataques contra jornalistas são constantes. O mais recente Índice Mundial da Liberdade de Imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) mostra que existe “um ambiente cada vez mais tóxico na América Latina”, especialmente para repórteres investigativos focados em fazer com que o poder preste contas.

“Cada vez mais visíveis e virulentos, esses ataques públicos fragilizam a profissão e incentivam processos judiciais abusivos, campanhas de difamação e intimidações - especialmente contra mulheres - e ameaças online contra jornalistas críticos”, relata a RSF.

Desde 2017, dezenas de jornalistas da região foram assassinados ou sequestrados, 150 foram presos arbitrariamente e 11 foram submetidos a outros abusos, segundo dados da rede Voces del Sur (VdS), um projeto de monitoramento da liberdade de imprensa em 14 países, do qual participam as principais organizações de proteção da liberdade de expressão na América Latina.

De acordo com a VdS, 171 jornalistas da região - 75 dos quais são mulheres - tiveram que se exilar em 2020 e 2021 para se salvarem de prisões arbitrárias ou mesmo de atentados contra suas vidas.

Embora alguns se acostumem ao exílio e até encontrem uma forma de melhorar suas reportagens no exterior, esse fenômeno regional não só coloca enormes pressões psicológicas e financeiras sobre os jornalistas, como também enfraquece a democracia e a governança dos países.

Para entender esse êxodo preocupante de jornalistas e como fazem para continuar trabalhando fora de seus países, a Rede Global de Jornalismo Investigativo (GIJN, na sigla em inglês) conversou com jornalistas exilados de Nicarágua, El Salvador, Cuba e Colômbia, que contaram suas experiências diante da perseguição estatal e criminal que os levou ao exílio. Os jornalistas também dão dicas para fazer jornalismo investigativo fora de seus países.

Nicarágua: entre a opressão e a resistência

Os votos na oposição que foram encontrados em um depósito de lixo nas eleições regionais de 2008 na Nicarágua foram um sinal precoce de que o governo de Daniel Ortega, iniciado em 2007, estava tomando um rumo autocrático. A partir de 2009 ele começou a fazer mudanças na constituição para conseguir a reeleição indefinida, mas o clímax da opressão estatal aconteceu durante as manifestações populares de 2018.

“O país, já cansado, explodiu e saiu às ruas para protestar; e a resposta do governo foi assassinar mais de 350 pessoas, como consegui documentar”, diz Wilfredo Miranda Aburto, vencedor do Prêmio Ortega y Gasset de Jornalismo e do Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos posteriormente publicou as mesmas conclusões de Miranda sobre o massacre.

Miranda escreveu para a revista investigativa Confidencial, foi colaborador do jornal espanhol El País e fundador do portal Divergentes. Teve de deixar a Nicarágua duas vezes.

A primeira vez foi em 2018, quando publicou uma reportagem sobre franco-atiradores da polícia que atiraram contra manifestantes no dia 15 de maio, na cidade de Matagalpa. “No fim de 2018, o governo começou uma campanha contra mim, com fotos nas redes sociais, dizendo que eu era um terrorista midiático e que deveria ser denunciado para que a polícia me prendesse. Então eu tive que ir embora”, diz Miranda.

Ele voltou para a Nicarágua no fim de 2020 quando, com a pandemia, a pressão sobre os jornalistas perseguidos diminuiu. Miranda, junto com outros dois jornalistas, criou Divergentes, um meio informativo e investigativo, e colaborou com a imprensa internacional.

No entanto, uma série de leis aprovadas no fim de 2020, como a Lei de Agentes Estrangeiros, a Lei da Cadeia Perpétua e a Lei de Crimes Cibernéticos - com a qual o regime ameaçou Miranda com oito anos de prisão -, anulou a oposição e o trabalho de jornalistas que fiscalizam o Estado. Em julho de 2021, poucos meses antes das eleições gerais, Daniel Ortega prendeu adversários políticos, opositores, ativistas e lançou uma perseguição contra jornalistas.

“Eu e centenas de jornalistas que agora estão no exílio estamos sendo intimados por uma suposta lavagem de dinheiro”, diz Miranda, que afirma que essas acusações falsas são uma estratégia para silenciá-los. Quando compareceu à intimação, os promotores o interrogaram durante quatro horas sobre suas matérias jornalísticas, nos termos da Lei de Crimes Cibernéticos, e não fizeram nenhuma pergunta sobre a suposta lavagem de dinheiro.

“A promotora me disse que eu ia ser condenado a no mínimo oito anos de prisão por mentir. O candidato presidencial Félix Maradiaga também tinha sido intimado a depor e, quando eu saí, fiquei sabendo que ele tinha sido preso. Nesse mesmo dia prenderam outros ativistas, até mesmo o presidente do setor privado [Consejo Superior de la Empresa Privada], e à tarde meu advogado me ligou e disse 'olha, você deveria sair da Nicarágua porque esse papo de crime cibernético está esquisito'. E eu saí da Nicarágua porque me ameaçaram”, diz Miranda, que partiu irregularmente de barco para a Costa Rica, onde hoje é refugiado político. Seus pais também tiveram que deixar o país devido às ameaças de que foram vítimas.

Miranda lidera a equipe de Divergentes do exterior, ao mesmo tempo em que os repórteres ainda correm grande risco na Nicarágua. Ele diz que precisa conhecer os limites e os medos de cada jornalista para, assim, administrar a redação e proteger a integridade deles. As matérias, por exemplo, muitas vezes não são assinadas, várias coberturas não puderam ser realizadas e o custo de ajudar os jornalistas que estão deixando a Nicarágua pesa nas finanças do portal.

“Esse é o nosso grande problema agora. Estamos em um momento em que a redação está saindo do país”, diz Miranda. “Todos esses obstáculos que o regime coloca no caminho são destinados a fazer você jogar a toalha, mas, pelo menos em Divergentes, nós estamos convencidos de que fazer jornalismo em um contexto como o da Nicarágua é não claudicar. É preciso encontrar uma maneira de se esquivar dessa série de ataques sistemáticos do governo”, acrescenta.

El Salvador: o jornalismo na mira

Depois de dois meses de negociações com o meio digital salvadorenho El Faro, um de seus jornalistas no exílio concordou em dar uma entrevista anônima à GIJN. A fonte procura manter sua identidade em segredo porque sua família, que ainda está em El Salvador, pode sofrer as consequências de suas investigações e declarações. Cautelosa ao falar contra o atual regime por causa do perigo que corre, a fonte descreveu à GIJN a urgência de deixar El Salvador quando o sistema judicial se voltou contra os jornalistas investigativos.

Segundo a fonte entrevistada, em El Salvador o principal risco que os jornalistas que investigam o governo Bukele correm é serem processados criminalmente. “Temos processos abertos na Justiça. A razão pela qual vários de nós fomos embora é porque corremos o risco de sermos presos. Temos a Nicarágua como exemplo, só que esse senhor [Bukele] está indo muito mais rápido”, diz.

Em janeiro de 2022, El Faro revelou que especialistas em segurança digital descobriram que os celulares de 22 de seus funcionários tinham sido infectados com o spyware Pegasus. E em março, o Congresso, alinhado ao governo, promulgou um "estado de emergência" nacional, suspendendo uma série de direitos fundamentais em nome do combate contra as poderosas gangues do país. Uma recente “lei da mordaça” pune com até 15 anos de prisão qualquer jornalista que compartilhar informações sobre grupos criminosos, fechando assim a porta à responsabilidade de informar sobre gangues em El Salvador.

Além do assédio judicial, há também ameaças nas redes. Jornalistas de todo o mundo enfrentam ataques, críticas e até insultos por fazerem seu trabalho, mas, segundo a fonte entrevistada e a Sociedade Interamericana de Imprensa, em El Salvador a presença de trolls governamentais nas redes é uma estratégia do governo para intimidar o jornalismo. Os trolls ameaçam atacar fisicamente os jornalistas e conseguem informações privadas que depois publicam nas redes sociais.

A violência física e psicológica do regime afeta a relação com as fontes e o trabalho jornalístico, no entanto, também existem oportunidades para os jornalistas que sabem aproveitá-las: “As fontes ficaram muito assustadas e se afastaram. Foi um desafio porque eu tive que mudar a forma de me comunicar, tive que construir fontes novas. Demorou muito tempo, mas [as fontes] têm mais confiança porque, como eu estou fora [do país], não existe mais aquela imagem de que eu posso estar sendo seguido. Eu tive que mudar minha metodologia de trabalho para fazer investigações”, diz.

Cuba: reportagens desde uma ditadura antiga

Carlos Manuel Álvarez deixou Cuba em 2015. Desde então, ele morou no México e nos Estados Unidos, mas volta com frequência à ilha, onde passou por interrogatórios, espionagem e prisão. Quase não consegue fazer reportagens em Cuba devido à vigilância constante do Estado.

“[Nos interrogatórios] eles podem dizer que você tem contato com os terroristas de Miami, ou que você trabalha para a CIA […]. Eles geram um estado de desestabilização muito forte”, diz.

Álvarez tem escrito sobre Cuba para meios de comunicação internacionais, como The New York Times, The Washington Post e El País da Espanha, e é cofundador do El Estornudo, um dos portais jornalísticos bloqueados pela ditadura, que também assedia seus jornalistas. A revista, publicada online, descreve-se como "uma revista cubana de jornalismo que transita entre a crônica, a imagem e o ensaio". O portal está bloqueado em Cuba, mas o servidor não está na ilha, portanto o conteúdo não pode ser censurado.

“El Estornudo estava completamente do outro lado da linha [do que é permitido pelo governo] desde o começo”, diz Álvarez. “Quase todos os colegas que trabalharam para a revista sofreram, em maior ou menor grau, episódios, não de censura, porque [o governo] não tem acesso direto para dizer o que pode ser publicado e o que não, mas de assédio, de assassinatos de reputação, de difamações", acrescenta.

Um dos desafios do El Estornudo é fazer reportagens sobre Cuba porque os jornalistas que escrevem para a revista caem rapidamente sob a vigilância do Estado. Álvarez diz que, apesar de que inicialmente as pessoas com quem trabalham não estejam monitoradas, e de que El Estornudo procure expô-las o mínimo possível, a rotatividade de pessoal é alta e muitos dos que escrevem eventualmente precisam sair de Cuba. Fora do país, eles podem continuar fazendo o trabalho jornalístico, por exemplo, contatando as fontes online.

Com exceção de algumas publicações estrangeiras e portais jornalísticos virtuais que o governo monitora ou restringe, não existem meios de comunicação privados em Cuba. Qualquer projeto não governamental enfrenta opressão.

"A censura está na ordem do dia de uma forma absoluta", diz Álvarez.

Colômbia: os custos e riscos do exílio

Nem todos os jornalistas que deveriam deixar seu país conseguem se exilar. O exílio é um processo emocional e financeiramente caro que nem sempre é sustentável.

Julián Fernando Martínez, um jornalista investigativo colombiano que passou anos documentando a corrupção e as ligações entre autoridades e traficantes de drogas, teve que fugir do país no começo deste ano depois de saber de um plano para matá-lo e de sobreviver a uma aparente tentativa de assassinato.

Antes de partir, ele tinha uma equipe de proteção, que as autoridades colombianas às vezes dão a repórteres considerados em risco devido ao trabalho investigativo que fazem. Mas Martínez ficou sabendo que seus guarda-costas faziam parte de uma força policial secreta que ele mesmo tinha investigado durante anos. Suas reportagens contribuíram para o desmantelamento do Departamento Administrativo de Segurança (DAS), em 2011.

Martínez saiu da Colômbia no dia 9 de junho de 2022, depois de denunciar que estava sendo espionado pelo seu esquema de segurança, que sabotava seu trabalho e informava ao governo quem eram suas fontes e os lugares aonde ia em suas investigações.

Mas no dia 7 de agosto de 2022 ele voltou. Sem uma organização para apoiá-lo no exílio, seus recursos acabaram. “Sair do país é muito caro. É uma incerteza muito grande”, diz Martínez, jornalista independente que não faz parte da folha de pagamento de nenhuma organização.

Martínez é um dos proprietários do La Nueva Prensa, um meio digital de investigação que é financiado quase inteiramente por doações e pelos jornalistas que participam do projeto. "Um dos aspectos mais difíceis de sair da Colômbia é que, sendo uma pessoa normal em termos financeiros, é bastante complicado", afirma.

Martínez está procurando o apoio de organizações internacionais para poder fazer seu trabalho sem arriscar ainda mais sua vida.

Recomendações para jornalistas que têm que se exilar

A situação de cada exilado é diferente e, embora não haja uma fórmula única para enfrentar essa situação, os jornalistas entrevistados fizeram algumas recomendações que podem ser úteis para aqueles que têm que sair de seus países:

  1. Procurar uma maneira de continuar fazendo jornalismo: o objetivo dos regimes autoritários é que os jornalistas parem de publicar. É preciso encontrar maneiras de nos reinventarmos no exílio sem nos calarmos.
  2. Encontrar apoio em saúde mental: quase todos os jornalistas que consultamos insistiram na importância de buscar um profissional de saúde mental para ajudar a lidar com a experiência do exílio e o assédio que o precedeu.
  3. Entrar em contato com redes de apoio a jornalistas: existem organizações internacionais de jornalismo que apoiam aqueles que têm que se exilar. A GIJN listou aqui algumas das mais importantes.
  4. Localizar o país mais amigável para o exílio: países latino-americanos como a Costa Rica estão mais abertos do que outros a receber jornalistas no exílio.
  5. Se você perceber uma ameaça de prisão, saia do país se puder: é melhor fazer jornalismo à distância do que ser preso. Não fique pensando se seus colegas vão achar que você é menos corajoso por não ficar.
  6. Você não precisa estar no terreno para fazer um trabalho jornalístico: os jornalistas que estão no terreno podem te apoiar. Procure expor o mínimo possível seus aliados jornalísticos e aproveite as ferramentas virtuais para fazer as entrevistas que puder. Use redes colaborativas para continuar escrevendo sobre um lugar onde você não está presente.
  7. Seja cuidadoso com a sua segurança e com quem a fornece: embora seja responsabilidade do Estado garantir a segurança dos jornalistas e protegê-los, na prática guarda-costas e esquemas de segurança podem ser usados ​​para espionar e dificultar o trabalho jornalístico.

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