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Remuneração de organizações jornalísticas por plataformas de tecnologia une ‘big techs’ e divide jornalistas no Brasil

O Brasil é o mais novo front das gigantes de tecnologia contra a tendência de se exigir delas o pagamento por conteúdos jornalísticos que circulam nas plataformas. No último ano, Austrália e França as obrigaram a negociar e pagar organizações de mídia. No Canadá e no Reino Unido, há discussões avançadas no mesmo sentido.

Para evitar ou postergar que o mesmo ocorra no Brasil, as big techs uniram esforços contra projeto de lei 2630/20, batizado de “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”. Informalmente, é chamado de “PL das Fake News” pois se trata da principal medida legislativa contra a desinformação no país e assume importância especial em 2022, ano de eleições para presidente no Brasil — Jair Bolsonaro concorrerá a um novo mandato.

O projeto estabelece regras para publicidade online, como exigir a identificação dos responsáveis por conteúdos impulsionados nos mecanismos de pesquisa, nas redes sociais e nos serviços de mensagens com mais de 2 milhões de usuários no país.

O Senado aprovou o texto em junho de 2020. Na Câmara dos Deputados, onde passou a tramitar em seguida, o projeto ganhou um artigo que prevê a remuneração de organizações jornalísticas como uma das medidas de regulamentação dos meios digitais para conter a disseminação de notícias falsas e de desinformação no Brasil.

Deputado Orlando Silva: 'valorização do jornalismo profissional contra a desinformação'. Crédito: Agência Câmara

CDeputado Orlando Silva: ‘valorização do jornalismo profissional contra a desinformação’. Crédito: Agência Câmara

“A valorização do jornalismo profissional permite a produção de informação confiável e isso é estruturante para combater a desinformação'', disse à LatAm Journalism Review (LJR) o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do projeto de lei na Câmara. “O jornalismo independente só se fortalece com essa proposta, e deixará de ter uma espada sob sua cabeça. É chocante ver ameaças, chantagens e tentativas de cooptação financeira por parte de algumas plataformas digitais com relação ao jornalismo independente.”

Com a aproximação da votação do projeto na Câmara, as big techs lançaram uma série de ações coordenadas para mobilizar a opinião pública contra a legislação, incluindo a remuneração de organizações jornalísticas. “Isso pode acabar favorecendo apenas os grandes e tradicionais veículos de mídia, prejudicando o jornalismo local e independente, e limitando o acesso das pessoas a fontes diversificadas de informação,” diz uma carta aberta assinada por Google, Facebook, Instagram, Twitter e Mercado Livre divulgada no início de março. A campanha conjunta das plataformas inclui ainda anúncios de página inteira do Facebook em jornais e uma outra carta aberta, assinada pelo presidente do Google Brasil, Fabio Coelho.

“O PL obrigaria as plataformas a pagar por conteúdos jornalísticos na plataforma, o que beneficiaria empresas e veículos de comunicação maiores e com mais poder de negociação. As plataformas não seriam capazes de pagar todos os veículos, especialmente as plataformas menores, e teriam que fazer escolhas comerciais,” disse o Twitter em nota enviada à LJR.

“O Google paga pelo conteúdo jornalístico e há muito tempo apoia e valoriza o jornalismo e seus profissionais, mas é importante que se faça um debate mais amplo, profundo e baseado em fatos sobre as melhores maneiras de se alcançar essa meta. Nos últimos 20 anos, o Google tem sido um dos maiores apoiadores financeiros do jornalismo em todo o mundo. (...) Não nos opomos ao objetivo proposto pelo projeto de lei, de combater a desinformação, mas, da forma como o texto está agora, ele não vai alcançar esse objetivo," disse o Google em nota enviada à LJR.

A Meta, empresa dona de Facebook e Instagram, recusou o pedido da LJR para comentar o assunto.

Em que pese a união das plataformas contra a remuneração pelo conteúdo jornalístico, os jornalistas brasileiros estão longe de um consenso. De um lado, entidades de classe que representam profissionais e veículos digitais independentes querem a supressão do artigo que obriga as plataformas a pagarem pelo conteúdo jornalístico.

Um manifesto assinado por Associação de Jornalismo Digital (Ajor), Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) critica o artigo por não estabelecer os critérios de como a remuneração seria feita.

Guilherme Alpendre, da Ajor: ‘critérios não podem excluir economicamente os pequenos e reproduzir a concentração da mídia.’ Crédito: Luis Macedo/Agência Câmara

Guilherme Alpendre, da Ajor: ‘critérios não podem excluir economicamente os pequenos e reproduzir a concentração da mídia.’ Crédito: Luis Macedo/Agência Câmara

“Precisamos pensar em critérios objetivos e transparentes, mas também nas complexidades do jornalismo. É preciso levar em conta outros elementos, como o papel que veículos específicos cumprem na sociedade. Há veículos que produzem jornalismo de muita qualidade e muito impacto, embora tenham poucos funcionários e publiquem poucas reportagens por semana. Os critérios não podem servir para excluir economicamente os pequenos e reproduzir a concentração da mídia,” disse Guilherme Alpendre, vice-presidente da Ajor, à LJR. “Não somos contra a cobrança [das plataformas], mas queremos discutir como isso vai ser feito.”

Uma das principais preocupações é que a legislação, caso aprovada sem estabelecer critérios específicos de remuneração, beneficie apenas os grandes veículos de comunicação. Isso porque as organizações com maior porte teriam mais poder de barganha com as plataformas, ao contrário das organizações pequenas e regionais. Este também é um dos argumentos que as plataformas usam contra o projeto de lei.

Por sua vez, a Associação Nacional de Jornais (ANJ), que representa os jornais tradicionais do país, admite que a proposta de remuneração de conteúdos jornalísticos é vaga. No entanto, a ANJ acredita que a aprovação nos termos atuais pode acelerar a tramitação de outro projeto de lei que verse especificamente sobre o assunto e estabeleça os critérios de remuneração.

“As grandes empresas de tecnologia produzem um efeito colateral da sua atividade uma poluição social, desinformação, discurso de ódio. E quem tem as condições técnicas de fazer a despoluição social é o jornalismo profissional. Isso tem um custo e se não for remunerada tende a enfraquecer ou desaparecer, produzindo desastres na democracia e na estabilidade social,” disse à LJR o presidente da ANJ, Marcelo Rech.

A ANJ faz parte da Coalizão Liberdade com Responsabilidade, que reúne ao todo 42 associações nacionais e estaduais de comunicação, como a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e a Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner). Apesar de ser a favor da aprovação do PL, o grupo admite que os critérios de remuneração ainda precisam ser definidos.

“Conteúdos de veículos de imprensa são insumo primordial para serviços digitais essenciais. Sem jornalismo, inexiste democracia e, no seu vácuo, florescem as fake news. O projeto não esgota o tema, mas abre a necessidade da sua regulamentação após nova e específica discussão. A coalizão entende desde já que devem ser alcançados pela remuneração todos os que produzem de forma regular e profissional conteúdo de imprensa original e que mantenham endereço físico e editor responsável no país,” diz comunicado da coalizão.

Exemplo da Austrália

Os dois lados divergem também sobre o modelo estrangeiro de remuneração citado como o mais similar à proposta brasileira: o da Austrália, que recentemente completou um ano de implementação. A lei do país da Oceania obrigou Meta e Alphabet, donas de Facebook e Google, a pagarem pelo uso de conteúdo noticioso em suas plataformas.

Marcelo Rech, da ANJ: ‘a audiência passa a valer quando ela é convertida em assinaturas’

Marcelo Rech, da ANJ: ‘discurso de ódio e desinformação são efeito colateral das plataformas’. Crédito: Agência Senado

“A Austrália adotou o posicionamento com o qual a gente se alinha, que é promover o equilíbrio das big techs com os veículos de comunicação. Estamos falando não apenas da News Corp [grande conglomerado de mídia do país], mas de centenas de jornais e rádios locais que estavam quase fechando, e agora estão se revitalizando, com um reequilíbrio da informação qualificada”, afirmou Rech, da ANJ. “Esse é o conceito que defendemos: que haja um compromisso das big techs para remunerar quem tem condições técnicas de fazer essa ‘despoluição’.”

Segundo a Columbia Journalism Review (CJR), as negociações em decorrência da legislação australiana já levaram cerca de USD 150 milhões [BRL 720 milhões] aos veículos de comunicação do país. Além disso, permitiu que a emissora pública Australian Broadcasting Corporation (ABC) contratasse mais de 50 jornalistas em locais com baixa cobertura.

A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), por sua vez, vê com preocupação os resultados obtidos após um ano da lei australiana em vigor. A presidente da entidade, Maria José Braga, ressalta que a Fenaj é a favor de que as plataformas remunerem o jornalismo e defende que qualquer legislação nesse sentido leve em consideração os direitos de autor dos profissionais de imprensa.

Maria José Braga, da Fenaj, defende remuneração de jornalistas com base no direito do autor. Crédito: cortesia

Maria José Braga, da Fenaj, defende remuneração de jornalistas com base no direito do autor. Crédito: cortesia

“Acreditamos que o melhor caminho seja o da remuneração do conteúdo jornalístico com base no direito de autor para garantir que o jornalista seja recompensado pela utilização do seu trabalho, mesmo que divida esta remuneração com a empresa'', disse Braga à LJR. “Consideramos que o PL 2630 trata das regras de moderação de conteúdo e de responsabilização das plataformas para a garantia de transparência nos critérios adotados. A inclusão de um único artigo estabelecendo a obrigatoriedade da remuneração foi feita posteriormente, numa articulação das grandes empresas de comunicação.”

A preocupação encontra eco nas queixas de meios australianos de pequeno e médio forte, que ficaram de fora do Fundo de Notícias Australiano do Facebook. Em protesto, mais de 30 publicações independentes deixaram de publicar notícias por 24 horas. O acordo do Facebook com meios australianos também excluiu a Special Broadcasting Service (SBS), uma emissora pública que promove a multiculturalidade do país.

O pesquisador e jornalista Mathias Felipe, do Observatório de Mídias Digitais e Sociedade da Universidade Federal de São Paulo e do site *desinformante, vê o exemplo da Austrália, e também o da França, como parte de uma tendência mundial de exigir das plataformas de tecnologia o pagamento por serviços jornalísticos. Em que pese o lobby contrário das plataformas, ele acredita que a lista de países tende a crescer e lembra que há discussões na União Europeia e até mesmo nos Estados Unidos, “um mercado que sempre protegeu as plataformas."

“Na medida que mais países aprovam leis assim, o que pode acontecer é uma redução dos investimentos voluntários das plataformas no jornalismo, que têm sido uma fonte importante de receita para muitos veículos digitais independentes. Isso é especialmente verdadeiro no Brasil e em outros países da América Latina, onde Google e Facebook apoiam um bom número de veículos nativos digitais. Assim, uma lei bem feita tem o dever de proteger o jornalismo mais vulnerável,” disse Felipe à LJR.

No Congresso

O PL das Fake News ainda não tem data para ser votado na Câmara dos Deputados. Se aprovado também na Câmara, precisará da sanção presidencial para entrar em vigor. Uma nova versão do PL já circula nos bastidores de Brasília após a pressão das big techs e de entidades de jornalismo. Esta versão, ainda não oficial, detalha o que considera como conteúdo jornalístico e enumera critérios de remuneração.

Num aceno para os veículos menores, o novo texto admite a possibilidade de negociação coletiva. Esta versão traz ainda critérios de resolução de conflitos, como volume de conteúdo original produzido, audiência, número de jornalistas empregados formalmente em tempo integral e política de bonificação dos profissionais.

O PL das Fake News não é a única proposta legislativa em tramitação no Congresso brasileiro sobre o pagamento de plataformas por conteúdos jornalísticos. O PL 1354/2021 trata especificamente deste tema. Inspirado pela lei australiana, o PL prevê que plataformas com “poder significativo de mercado” paguem 50% da receita obtida com as notícias divulgadas nas plataformas às organizações jornalísticas. A proposta está em tramitação desde abril de 2021 e ainda não tem previsão para votação em plenário.

“Esta lei é endereçada diretamente aos provedores Google e Facebook e se inspira na nova Lei de Mídia australiana, que deve se tornar um caso mundial contra o império das grandes corporações americanas na rede mundial de computadores,” escreve o autor do PL, o deputado federal Denis Bezerra (PSB-CE). “Esta lei corrige esta injustiça, ao determinar que parte da receita de publicidade do duopólio Facebook e Google, que dominam hoje o mercado da publicidade online, seja dividida com as empresas jornalísticas.”

Foto no alto da página: Edilson Rodrigues/Agência Senado

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AVISO: O Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, que publica a LatAm Journalism Review, tem recebido doações e patrocínios do Google. No passado, também recebeu contribuições do Facebook.

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