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Jornais brasileiros sob pressão por publicarem informe publicitário que promove informação falsa sobre tratamento de COVID-19

Pelo menos oito jornais brasileiros publicaram na terça-feira, dia 23, um informe publicitário em que uma obscura associação de médicos defende a adoção do chamado ‘tratamento precoce’ da COVID-19, cujo benefício não é cientificamente comprovado. A decisão das empresas jornalísticas de abrir espaço, ainda que publicitário, para a veiculação de informações falsas sobre a pandemia gerou críticas.

“Folha de S. Paulo e O Globo erraram feio em aceitar anúncio de tratamento precoce no caderno principal. Não dá para criticar as mídias sociais por difundirem desinformação e fazerem igual num meio com controle editorial. Às vezes os princípios precisam valer mais do que o dinheiro,” escreveu Pablo Ortellado, coordenador do laboratório interdisciplinar Monitor do Debate Político no Meio Digital da Universidade de São Paulo (USP), no Twitter.

Além de Folha e Globo, os dois maiores do Brasil, outros seis jornais estamparam o informe publicitário: Jornal do Commercio, Estado de Minas, Correio Braziliense, Correio, O Povo e Zero Hora. A organização que assina o anúncio é a Associação de Médicos pela Vida, cujo site esteve indisponível ao longo de terça e em parte de quarta-feira. Segundo o Jornal do Commércio, “o texto já foi assinado por 2.113 médicos” brasileiros.

 

Oito jornais brasileiros publicam informe publicitário com informações falsas sobre o tratamento da COVID-19. Arte: Jeff Nascimento (@jnascim)

Oito jornais brasileiros publicam informe publicitário com informações falsas sobre o tratamento da COVID-19. Arte: Jeff Nascimento (@jnascim)

 

A Agência Lupa, especializada em checagem de fatos, publicou um artigo em que enumera informações falsas contidas no anúncio: “O texto usa informações falsas ao citar hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e outras drogas como eficazes em pacientes com o novo coronavírus,” diz o site de checagens. “Segundo os profissionais [médicos que assinam o texto], haveria evidências científicas que comprovam os benefícios do uso desses remédios, mas não há qualquer estudo de metodologia rigorosa que tenha chegado a essa conclusão.”

A agência de checagens também escreveu um editorial em que lembra que publicou 46 verificações sobre a falta de eficácia comprovada de medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina contra a COVID-19.

“Jornais são e continuarão sendo peças vitais na luta contra a desinformação, mas precisam, assim como as plataformas de redes sociais, rechaçar anúncios mentirosos mesmo que isso vá contra seus interesses financeiros. A luta contra notícias falsas não pode ser apenas um slogan publicitário. (...) Já não se deve tolerar notícias falsas. Venha de onde vier,” disse a Lupa no editorial.

A agência de checagem Aos Fatos fez uma análise dos sites onde os estudos citados no informe publicitário foram publicados e enumerou uma série de problemas, como estudos sem resultado e estimativas inconsistentes. “Segundo especialistas que analisaram o conteúdo das páginas a pedido do Aos Fatos, falta ainda maior critério na seleção do material compilado pelos sites,” diz o texto.

A editora-chefe do Portal Drauzio Varella, Mariana Varella, criticou a decisão dos jornais de publicar os anúncios. O site que ela comanda é especializado em jornalismo de saúde e, segundo ela, não aceita propaganda de tratamentos médicos sem evidência científica.

“Perdemos dinheiro: há uma enorme indústria de tratamentos naturais disposta a investir em sites de saúde. … Com todo o respeito, é preciso que veículos que se comprometem a não disseminar desinformação entendam a gravidade da crise sanitária que estamos vivendo,” Varella escreveu no Twitter.

Na newsletter do Observatório da Ética Jornalística (obJETHOS), da Universidade Federal de Santa Catarina, os jornalistas e pesquisadores Rogério Christofoletti e Dairan Paul escreveram uma crítica ácida, em que comparam a publicação do anúncio com informação falsa à um antigo programa da TV Brasileira chamado “Topa Tudo por Dinheiro”, em que os participantes se submetiam a situações inusitadas em troca de um prêmio em dinheiro.

“Na noite de ontem [terça-feira], a Folha publicou uma matéria sobre o próprio anúncio. Disse tudo, menos o motivo que a levou a exibir o informe publicitário… De forma esquizofrênica, o jornal chegou a procurar a ANJ [Associação Nacional dos Jornais] para ser fonte da matéria e nada de ouvir o próprio departamento comercial. Autocrítica? Nem sombra,” diz o texto do obJETHOS.

Em entrevista à LatAm Journalism Review (LJR), Christofoletti afirma que o caso revela problemas nas empresas jornalísticas, como a falta de diálogo aparente entre a redação e o departamento comercial e a falta de critério para publicação de anúncios, priorizando a questão financeira em detrimento do caráter informativo da peça.

“Combater desinformação parece que é só um slogan para alguns desses jornais. Eles não se preocuparam em explicar hoje aos seus leitores porque tomaram essa decisão. Somados, esses problemas tornam mais aguda a crise de credibilidade dos veículos,” disse Christofoletti à LJR.

Além da FolhaGlobo e Jornal do Commercio também fizeram reportagens sobre o polêmico anúncio que publicaram, mas não entraram em detalhes sobre a decisão aceitar o informe publicitário. Ao Congresso em Foco, a Associação Nacional de Jornais (ANJ) disse que não tem uma posição específica sobre o caso, mas afirmou que “defendemos, naturalmente, a liberdade de expressão, que vale também para essa nota".

Já o jornal Zero Hora, o maior do estado do Rio Grande do Sul, enviou uma nota ao site Coletiva.net em que se isenta de responsabilidade pelo conteúdo publicado.

“A respeito da publicação realizada pela associação Médicos pela Vida sobre o tratamento precoce à covid-19, nessa terça-feira (23), em Zero Hora, esclarecemos que ela se enquadra na modalidade apedido, ou seja, publicação comercial paga feita em jornal sob responsabilidade da entidade que assina o Informe Publicitário.”

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