El Faro, site de jornalismo investigativo salvadorenho pioneiro na América Latina, enfrenta acusações de lavagem de dinheiro do presidente Nayib Bukele e, há semanas, vem sendo auditado arbitrariamente pelo Departamento do Tesouro. Em resposta, jornalistas e acadêmicos de todo o mundo saíram em defesa de El Faro e da imprensa independente em El Salvador.
Em 24 de setembro, Bukele fez um anúncio nacional sobre uma alegada investigação aberta contra El Faro por lavagem de dinheiro, além de deslegitimar o trabalho jornalístico de El Faro, Revista Factum e Gato Encerrado.
El Faro não recebeu notificação oficial do Procurador-Geral ou do Departamento do Tesouro sobre uma investigação de lavagem de dinheiro contra ele, disse Jose Luis Sanz, diretor do El Faro, à LatAm Journalism Review.
“O presidente quer destruir nossa credibilidade e está usando todas as ferramentas que o Estado lhe dá”, disse Sanz.
Cerca de 600 jornalistas e intelectuais de 47 países assinaram e enviaram carta à Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em defesa de El Faro.
“Expressamos nossa mais enérgica rejeição à escalada de ataques contra a imprensa independente de El Salvador e ao Estado de Direito exercido pelo presidente daquele país, Nayib Bukele. Esse clima de assédio e estigmatização da mídia que monitora os poderosos se intensificou nas últimas semanas e atingiu níveis sem precedentes", disse o comunicado, dirigido ao relator Edison Lanza.
O júri dos prestigiosos prêmios de jornalismo Maria Moors Cabot da Columbia University emitiu uma declaração condenando veementemente o aumento de ataques, ameaças e intimidações do governo salvadorenho contra El Faro e seu fundador, Carlos Dada. Em 2011, Dada recebeu o Prêmio Cabot de excelência no trabalho jornalístico.
“É alarmante que o presidente Nayib Bukele tenha usado uma discurso na televisão em 24 de setembro para atacar Dada pessoalmente e anunciar que El Faro está sob investigação por 'lavagem de dinheiro e evasão fiscal'; um claro ato de intimidação incompatível com os princípios democráticos. Além de Dada e El Faro, o presidente Bukele e seu governo e seguidores, incluindo trolls agressivos nas redes sociais, têm atacado sistematicamente outros jornalistas e meios de comunicação, incluindo o La Prensa Gráfica, El Diario de Hoy, Revista Factum, Focos e Revista Gato Encerrado", escreveu o júri.
Sobre a auditoria de El Faro, Sanz disse que não é normal e coincide com a preparação e posterior publicação de uma reportagem de El Faro do início de setembro.
O relatório revelou que o atual presidente salvadorenho Nayib Bukele supostamente negociou benefícios penitenciários com a MS-13, a maior organização criminosa do país, em troca de redução dos homicídios e apoio eleitoral para as eleições municipais e legislativas de fevereiro de 2021.
Bukele negou ter negociado com as gangues e questionou a credibilidade de El Faro, chamando-o de "panfleto".
Segundo Sanz, os auditores fiscais do Tesouro pediram à El Faro as declarações fiscais dos anos de 2014, 2016, 2017 e 2018. Além disso, disse, pediram-lhes todas as atas de reuniões do conselho de diretores para 2014 e informações de contato para todos os assinantes.
“Sabemos que o Governo já sabia que íamos publicar a investigação sobre a sua negociação com Mara Salvatrucha e naquele dia que íamos publicar, eles avançaram um novo pedido, e neste novo pedido pedem muito mais informações que incluem nossa troca de relatórios com os doadores, ou seja, relatórios intermediários, relatórios de andamento do projeto, coisas que nada têm a ver com tributação”, disse Sanz.
Consequentemente, El Faro entrou com um pedido de amparo perante a Sala Constitucional do Supremo Tribunal Federal por “auditoria agressiva” do Tesouro. Também solicitaram medidas cautelares para evitar que o ministério solicite informações que não estejam relacionadas às suas declarações fiscais.
O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), junto com seis outras organizações internacionais que defendem o Estado de Direito, rejeitaram as tentativas do governo de criminalizar os jornalistas de El Faro. “Os ataques contra El Faro ocorrem em um contexto em que a liberdade de expressão e o trabalho independente da imprensa foram diminuídos”.
Em sua nota, Cejil lembrou que antes da auditoria contábil que o Ministério da Fazenda realizou contra El Faro, o portal de notícias La Página acusou um dos jornalistas de El Faro de cometer agressão sexual contra um colega. El Faro negou.
Outro jornalista salvadorenho Héctor Silva, cofundador da Revista Factum e colaborador da agência de notícias InsightCrime da Guatemala, que é alvo de Bukele nas redes sociais desde o início de sua gestão, soube no início de setembro por meio do site La Página que supostamente havia uma investigação de lavagem de dinheiro contra ele por parte do procurador-geral.
De acordo com o que Silva disse à LJR, ao telefonar para a Procuradoria-Geral da República, pôde confirmar que não há nenhum processo aberto contra ele. O mecanismo do atual governo e de seu gabinete, disse o jornalista, é fazer circular notícias falsas para atacar a credibilidade de seus oponentes e críticos, para "buscar a condenação civil".
“O poder de propaganda do aparelho de Estado, que é enorme no caso de Bukele, te distrai, te ocupa e te preocupa porque tens que destinar recursos à assistência jurídica para saber o que podes fazer, como tens que te defender para encontrar se de fato há investigações por parte da Procuradoria-Geral da República, se o gabinete está manipulando algo ou etc.", disse Silva.
Em 14 de setembro, dia da independência de El Salvador, Bukele chamou todos os seus oponentes políticos de "adversários" em sua mensagem nacional, como publicado por ElSalvador.com.
De 1º de junho de 2019 a 10 de setembro de 2020, a Associação de Jornalistas de El Salvador (APES) registrou 87 denúncias de jornalistas, principalmente por restrições ao jornalismo, ataques digitais e bloqueios de acesso à informação pública, declarações estigmatizantes e assédio digital, segundo disse à LJR Angélica Cárcamo, presidente da APES.
Em seu último alerta em 26 de setembro, publicado no Twitter, a organização aderiu à comunidade internacional ao exigir que o governo Bukele cesse seus ataques à imprensa, porque estes “representam um boicote ao jornalismo e um retrocesso para a democracia do país”.
Cárcamo também mencionou que foi alvo de Bukele no Twitter depois de criticar seus ataques à imprensa e a alteração do governo ao regulamento da Lei de Acesso à Informação Pública. Segundo Cárcamo, a reforma do regulamento da lei de acesso dá mais poder a o comissário presidente do Instituto de Acesso à Informação Pública (IAIP) .
Os cargos dos comissários do IAIP devem ser escolhidos pelo sindicato dos jornalistas e não pelo Executivo, como agora, disse Cárcamo.
“Estamos em um cenário em que estamos vendo que o Executivo está colocando pessoas que estão mais relacionadas aos seus interesses do que ao perfil de idoneidade e independência que corresponde a um comissário [do Instituto de Acesso à Informação Pública]. É um retrocesso grave porque o instituto, historicamente, tem sido referência como agente corregedor quando um cidadão faz um pedido de informação a uma entidade obrigada, no caso o Executivo, e pede que divulgue essas informações de interesse público", disse Cárcamo.
Por este motivo, a APES entrou com um pedido de amparo perante o Supremo Tribunal de Justiça, solicitando a nulidade do processo de designação de um comissário, disse Cárcamo.
“Estamos em uma verdadeira deterioração da liberdade de expressão em El Salvador, do livre exercício da profissão de jornalista”, disse Silva. No entanto, disse Silva, a deterioração democrática está em toda a região centro-americana, não apenas em El Salvador, e também disse que Bukele segue os passos de Daniel Ortega e de seu regime autoritário na Nicarágua.
“Acho que estamos [como país] em um lugar que nunca estivemos antes, um lugar muito perigoso. Bem, isso está apenas começando, Bukele está [no poder] há nem um ano. Ele não tem nem um ano no currículo e também é um presidente extremamente popular, extremamente popular”, disse Silva.
As pessoas acreditam nele, disse à LJR Julia Gavarrete, jornalista do Gato Encerrado, referindo-se à popularidade de Bukele entre os salvadorenhos. "Tudo o que ele diz é 'verdade' ou está gravado na pedra."
Gavarrete teve seu computador roubado em 2 de julho, enquanto cobria uma conferência na Casa Presidencial.
“Foi muito estranho que quando eu saí por três horas, as únicas três horas que havia saído de casa naquela semana [durante a quarentena], alguém entrou e levou meu equipamento de trabalho. Por isso preferi não minimizar esse incidente, principalmente porque a imprensa está sendo agredida, para torná-lo público, caso fosse necessário que isso se tornasse um precedente para o futuro”, disse Gavarrete.
Este incidente, disse Gavarrete, a fez refletir como jornalista sobre a necessidade de trabalhar e construir redes de apoio, de maior organização jornalística e com fundações internacionais, para acompanhar o que está acontecendo com a imprensa independente em El Salvador.
“Devemos ser mais organizados porque não sabemos o que vem a seguir”, disse ela. “Portanto, precisamos ser capazes de responder aos ataques”.
* LJR tentou, sem sucesso, entrar em contato com o presidente Nayib Bukele, o secretário de imprensa do presidente e o gabinete do procurador-geral.
Esta história foi escrita originalmente em espanhol e traduzida por Júlio Lubianco.