texas-moody

Assédio judicial contra jornalistas feministas: dois casos atuais na América Latina

Assim que as jornalistas colombiana Catalina Ruiz-Navarro e Matilde de los Milagros Londoño publicaram a investigação "Oito denúncias de assédio e abuso sexual contra Ciro Guerra", o assédio judicial começou. Isso foi em junho de 2020. Entre outras ações, o famoso cineasta colombiano apresentou uma tutela para que o artigo fosse retirado do ar, mas posteriormente a Corte Constitucional da Colômbia decidiu contra ele. Em um caso similar, a jornalista peruana Graciela Tiburcio Loayza publicou uma reportagem com cinco denúncias de assédio sexual contra o ex-candidato ao Congresso Víctor Quijada. Até o momento, o político apresentou oito denúncias por difamação e outros delitos contra Tiburcio. As jornalistas afirmam que o assédio judicial é uma ferramenta cada vez mais utilizada na região para silenciar o jornalismo e que tem tido um forte impacto em suas vidas pessoais e profissionais. 

Ciro Guerra é um diretor de cinema vencedor de vários prêmios. Seu filme "O abraço da serpente" foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2016. O cineasta é um dos mais reconhecidos representantes do cinema colombiano no mundo, e uma pessoa muito influente na cena audiovisual. 

Slim woman with short black hair, red earrin

Catalina Ruiz-Navarro, jornalista colombiana, cofundadora da Revista Volcánicas e coautora da reportagem “Ocho denuncias de abuso y acoso sexual contra Ciro Guerra”. (Crédito: Victoria Holguín)

As jornalistas Ruiz-Navarro e Londoño são as fundadoras da Revista Volcánicas, onde foi publicada a investigação que acusa Guerra. Trata-se de um meio digital independente com uma perspectiva feminista, fundado em 2020. Como expresso em seu site, elas se dedicam a "desconstruir o machismo e fazer avançar os direitos das mulheres e das comunidades LGBTI".

A investigação durou cinco meses, durante os quais recolheram oito testemunhos de supostos abusos sexuais e assédio sistemático por parte de Guerra contra mulheres mais jovens. Algumas delas estavam dando seus primeiros passos no mundo audiovisual. Depois, acrescentaram um caso de violência sexual, perfazendo um total de nove casos. Os eventos aconteceram entre 2013 e 2019, e as vítimas pediram para manter suas identidades em sigilo. Nenhuma das denúncias foi levada ao âmbito penal. 

Na publicação, as jornalistas afirmam que realizaram um "processo de verificação, obedecendo aos mais altos padrões jornalísticos". Eles corroboraram os tempos, formas, lugares e circunstâncias dos testemunhos por meio de prints de conversas entre as vítimas e Guerra, entre outros. Também recorreram a testemunhos auxiliares que confirmam o que as vítimas dizem. Finalmente, elas dão espaço ao acusado para dar sua versão dos acontecimentos e publicar suas respostas.     

Como Ciro Guerra tem uma influência predominante na cultura colombiana, as jornalistas afirmam no artigo que estes fatos são de "interesse público". Além disso, é uma série de abusos de poder e "todas as agressões são parte de um problema de saúde pública, como a violência de gênero". 

Uma vez publicada a investigação, Guerra apresentou uma tutela no final de 2020 contra as jornalistas e a Revista Volcánicas por violar seus direitos à honra e ao bom nome, e sua presunção de inocência. Ele pretendia forçá-las a retirar o artigo do ar, mas em fevereiro de 2023 a Corte Constitucional da Colômbia decidiu contra ele. Além disso, o diretor apresentou uma queixa criminal e uma ação civil exigindo um milhão de dólares das jornalistas   

Em sua decisão, o tribunal mais alto da Colômbia define o "escracho" como a denúncia pública da violência de gênero que "permite ampliar as vozes das mulheres vítimas". Enfatiza a possibilidade de manter suas identidades anônimas para não se exporem, e o diferencia do jornalismo feminista. Nega a reivindicação de tutela de Guerra com o argumento de que a reportagem de Volcánicas está de acordo com os "padrões constitucionais do jornalismo".  

"As vítimas de violência sexual devem ter à sua disposição diferentes ferramentas para obter reparação e uma dessas ferramentas pode ser o jornalismo. É totalmente elitista e punitivista pensar que a única maneira de obter justiça é através de processos legais, e particularmente processos penais", disse Ruiz-Navarro à LatAm Journalism Review (LJR).

A jornalista afirma que, segundo a decisão da Corte Constitucional, "a denúncia da violência sexual é um discurso especialmente protegido que tem uma função preventiva em relação à violência de gênero". Uma afirmação que a Corte Constitucional manteve negando a tutela de Guerra e protegendo o jornalismo feminista do assédio judicial. 

"As denúncias por vias sociais têm um efeito muito importante na forma como discutimos estes crimes em nossa sociedade, e como entendemos o que se torna ou não socialmente aceitável", acrescenta Ruiz-Navarro. "Essa mudança social é muito importante, caso contrário as leis não servem para nada. A polícia e todo o sistema judicial é permeado por ideias machistas que legitimam a violência, e não é assim que vamos conseguir justiça". 

Por esta razão, a jornalista é enfática sobre o papel do jornalismo neste aspecto: "O jornalismo tem uma dívida com os direitos das mulheres, é muito importante que estas denúncias estejam lá".   

Quanto à reparação às vítimas de violência sexual, "a maioria decide falar quando se dá conta de que há mais vítimas, que a pessoa está fazendo isso com outras", diz Ruiz-Navarro. "Muitas vítimas não querem que seus agressores vão para a cadeia, não é isso que as fará sentir-se reparadas. Na verdade, elas querem dizer em voz alta o que aconteceu com elas para ter um efeito preventivo, para que isso não aconteça com outras".

 

O que é assédio judicial?

 

O assédio judicial é o "exercício abusivo do direito à administração da justiça", explica a Corte Constitucional da Colômbia em sua decisão a favor da Revista Volcánicas. E acrescenta os elementos que o provam, como "o desequilíbrio de poder entre as partes", ou o fato de Guerra ter recorrido a "vários cenários judiciais e extrajudiciais para solicitar retificação e indenização que são impossíveis de serem pagas pelas demandantes". 

"Se você for processada e não tiver acesso a uma defesa, você tem que retirar o artigo do ar porque, caso contrário, você vai falir sua família", diz Ruiz-Navarro. Para ela, o assédio judicial é um instrumento de perseguição que é cada vez mais utilizado contra jornalistas porque é legítimo e muito eficiente.

young woman holding a video camera in one hand and a tripod in the other hand stand in front of a government building in Peru, at night

Graciela Tiburcio Loayza, jornalista peruana, publicou uma reportagem com denúncias de assédio e abuso sexual contra ol ex-candidato ao Congresso do Peru, Víctor Quijada (Cortesia: Dayanna Delgado)

A jornalista peruana Graciela Tiburcio Loayza tem vivido a mesma situação de perseguição nos últimos dois anos. Em 2021, ela estava trabalhando para o meio independente Wayka, quando recebeu cinco testemunhos em seu email de mulheres entre 20 e 21 anos denunciando o suposto assédio sexual pelo advogado e político Victor Quijada

O suposto assédio ocorreu anos antes, quando elas estavam frequentando a escola e tinham 15 anos de idade. As meninas disseram que Quijada lhes enviou mensagens através de redes sociais e tentou chantageá-las com álcool e dinheiro para encontrá-las em seu escritório, disse Tiburcio à LJR. Nas eleições gerais de 2021, o político concorreu ao Congresso pelo Partido Nacionalista Peruano em Lima, que foi quando as mulheres decidiram ir a público com seus testemunhos. 

"Não parecia apropriado para elas que um cara que assediava adolescentes naquela época estivesse agora concorrendo ao Congresso, especialmente porque elas viram que ele estava tentando mover algumas questões relacionadas aos direitos das mulheres", explica Tiburcio. 

A jornalista apoiou os depoimentos das vítimas com prints de conversas com Quijada através das redes sociais. Ao mesmo tempo, ela acrescentou duas denúncias policiais apresentadas por jovens de 19 e 18 anos em 2020 e 2017, respectivamente. Ambas as denúncias foram arquivadas porque os as denunciantes não deram seguimento ao processo. Os delitos de que Quijada foi acusado foram chantagem e assédio sexual. A identidade das vítimas também foi retida neste caso.  

Tiburcio entrou em contato com o acusado para obter sua versão dos acontecimentos. Quijada não só negou os crimes pelos quais foi acusado, mas também a ameaçou: "Ele me disse para pensar no meu futuro porque uma denúncia enterraria minha carreira. Então ele ligou para a codiretora de Wayka para insistir que ela me controlasse, que nós não nos atravêssemos a publicar".

Na noite de 25 de fevereiro de 2021, dia da publicação da investigação, Quijada apresentou a primeira de oito denúncias contra Tiburcio e a codiretora de Wayka, Luciana Távara. A primeira foi por "difamação agravada", seguida pelos crimes de "violação de privacidade, exercício ilegal do jornalismo, crimes cibernéticos, fraude, uso de dados informáticos impróprios, roubo de identidade, entre outros". 

Segundo a jornalista, existem mais de dez crimes listados em oito denúncias apresentadas por Quijada contra Tiburcio e Távara. "Todos são delitos sem nexo e ele apresenta [as denúncias] em diferentes delegacias de polícia até que uma delas as aceite.” Atualmente, do número total de denúncias, três foram arquivadas, há duas sobre as quais Tiburcio não tem informações, e outras três estão sob "investigação preliminar". 

Além das denúncias policiais, a jornalista recebeu ameaças de morte contra ela e sua família de contas anônimas, e ligações de Quijada nas primeiras horas da manhã a partir de diferentes números de telefones celulares. "Eu não saía de casa, estava assustada, e com as economias que eu tinha, mandei instalar câmeras de segurança na minha casa. Naquela época eu tinha medo por meus pais porque eu vivia com eles, por isso me mudei para outro distrito. Isso me afetou muito", diz Tiburcio. 

Embora a jornalista não receba mais ameaças nas redes sociais, ela diz que "é angustiante não saber o que vai acontecer com os processos de investigação preliminar que temos contra nós". Embora ela não trabalhe mais em Wayka, ela diz que o meio não a acompanhou neste processo: "Sinto-me muito desprotegida pelo meio ao qual dei meu amor, respeito e tempo por tantos anos. Fico magoada com a indiferença que eles demonstram para comigo".

Questionados sobre essa situação, Távara, do Wayka, disse que o meio recorreu a organizações defensoras de direitos humanos, como o Instituto de Defensa Legal. Com o apoio do Instituto, o meio apresentou duas denúncias criminais contra Quijada pelos delitos de assédio genérico e denúncia caluniosa. O Ministério Público abriu investigações sobre os dois delitos.

--

Florencia Pagola é uma jornalista independente do Uruguai que investiga e escreve sobre direitos humanos e liberdade de expressão na América Latina.

Artigos Recentes