Depois de 25 anos, o jornal mais aclamado de El Salvador há um mês não está mais sediado legalmente no país. Acossado judicialmente, com dezenas de seus jornalistas espionados eletronicamente pelo governo, sem qualquer esperança na Justiça para se defender de abusos, o El Faro anunciou que transferiu os seus setores administrativo e legal para a Costa Rica no dia 1º de abril.
Se a estrutura jurídica e burocrática da publicação agora estarão em outro país, isso não significa, no entanto, que o governo crescentemente autoritário de Nayib Bukele tenha conseguido se livrar de seu diligente vigilante. Os jornalistas do veículo multipremiado, especializado em reportagens investigativas sobre corrupção e sobre abuso de poder, continuam no país, e a sua proposta editorial permanece a mesma.
“É um paradoxo. Saímos de El Salvador para poder seguir em El Salvador”, disse Carlos Dada, cofundador e diretor do veículo, à LatAm Journalism Review (LJR). “Mudamos a estrutura do jornal para poder continuar a fazer jornalismo em El Salvador enquanto pudermos. Enquanto não começarem também a criminalizar jornalistas, como já vimos na Guatemala e, claro, na Nicarágua. Isto também vai acontecer em El Salvador”.
A mudança deixa claro o temor vivido por fiscais do poder e defensores do Estado de Direito e dos direitos humanos em El Salvador. No dia 27 de março, completou-se um ano que o país vive sob permanente estado de emergência, imposto com o argumento de combater as suas poderosas gangues de narcotraficantes. Denúncias de abuso de poder por parte do governo abundam, de detenções arbitrárias a campanhas coordenadas de difamação e assédio moral contra opositores e vozes independentes.
Dada, que falou com a LJR por videochamada desde a Holanda, onde estava em viagem após ser vencedor do prêmio World Press Freedom Hero em 2022, não nutre grandes esperanças políticas no futuro próximo. Vê o autoritarismo em seu país cada vez mais poderoso e ainda longe do auge. Ademais, atribui o populismo autoritário não só ao que se passa dentro de El Salvador, mas também a uma conjuntura regional e global.
Frente a este cenário, o jornalista tem uma resposta singela a por que insistir no ofício de informar frente a tantas adversidades.
“O El Faro é um projeto muito coletivo, e para esta pergunta chegamos a várias respostas”, disse Dada à LJR. “Eu gosto muito de uma de Oscar Martínez, o nosso chefe de redação. Ele diz que o que fazemos serve para tornar mais difícil a vida dos corruptos, dos ladrões e dos assassinos”.
Desde antes de assumir o mandato em junho de 2019, Bukele deu sinais de que considerava o jornalismo um incômodo, com mensagens hostis como “não há veículos independentes em El Salvador”. O El Faro, enquanto isso, continuou a fazer o seu trabalho, dando furos bombásticos, como a reportagem publicada em 3 de setembro de 2020 de que o governo negociava com gangues a redução de homicídios em troca de benefícios dentro e fora das prisões.
Esta notícia foi especialmente incômoda para o presidente. Três semanas depois de sua publicação, Bukele usou a rede nacional de rádio e televisão para informar que o El Faro era objeto de uma investigação por suposta “evasão de impostos e lavagem de dinheiro”. A investigação – condenada por atores independentes como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh), que considerou que os jornalistas do El Faro se encontravam “em situação grave e urgente” – exigia do El Faro informações de caráter não tributário, como os dados pessoais de todos os seus assinantes.
“Alguns jornalistas dizem que este governo agride a imprensa; nós somos comprometidos com a liberdade de expressão, mas alguns continuam publicando uma série de mentiras e o que fazemos é desmentir. Isso não é violar a liberdade", disse Bukele na ocasião.
O acossamento estava só começando. Em abril de 2021, com o suposto propósito de evitar gerar “ansiedade e pânico”, o Congresso aprovou uma “lei da mordaça” prevendo até 15 anos para quem "reproduzir mensagens presumivelmente originadas ou originadas por gangues".
Em janeiro de 2022, soube-se que os aparelhos telefônicos de ao menos 22 funcionários do El Faro, de jornalistas a membros do Conselho de Gestão e funcionários administrativos, foram espionados no mínimo entre junho de 2020 e novembro de 2021 com uso do software Pegasus, que a empresa israelense NSO Group vende somente a governos.
Em paralelo a isso, Bukele e seus aliados desmontavam outras instâncias que poderiam assegurar o funcionamento do sistema de pesos e contrapesos. Em abril de 2021, o Congresso, onde o partido de Bukele tem uma supermaioria capaz de promover mudanças constitucionais, destituiu juízes da Corte Suprema de El Salvador, substituídos por aliados.
Em seu conjunto, este cenário levou a equipe do El Faro a decidir que a permanência jurídica em El Salvador era insustentável.
“Não houve uma só causa. Foi o assédio judicial, a espionagem, Acima de tudo, e esse é o principal motivo, percebermos que em El Salvador não há mais acesso à Justiça, e portanto se alguém do governo nos acusar, não temos como nos defender”, disse Dada à LJR. “Porque, mesmo provando que não é verdade, o governo controla o Ministério Público, controla o sistema de juízes, controla o Ministério da Fazenda, controla a polícia. Controla todo o aparato judicial, e portanto já não tínhamos direito a uma defesa justa”.
Anunciada no último dia 13 de abril, a decisão da mudança da estrutura para San José, segundo Dada, começou a ser pensada há um ano e meio, quando a equipe se deu conta de que o governo salvadorenho poderia, se quisesse, “embargar o jornal, congelar as nossas contas, nos tomar o jornal e nos paralisar”. A Costa Rica, que tem a democracia considerada mais sólida da América Central (mas que enfrenta suas próprias tensões autoritárias contra a imprensa), foi considerada a opção mais conveniente.
O processo de mudança não foi livre de dificuldades. Antes uma empresa privada salvadorenha, o El Faro passa a ser administrado por uma organização sem fins lucrativos costarriquenha, chamada Fundación Periódica. Um dos desafios, disse Dada, foi elaborar uma estrutura administrativa em dois países diferentes.
A maior parte dos jornalistas do El Faro segue em El Salvador, e eles continuam a assinar as próprias matérias. Por enquanto, a maior parte das ações legais do governo foi contra a institucionalidade do jornal, mas indivíduos também estão expostos – a Lei da Mordaça supracitada, por exemplo, dá margem para que jornalistas sejam presos.
Por enquanto, a estratégia do jornal tem sido se precaver, e adotar medidas especiais de segurança. “Há jornalistas que têm saído do país durante algum tempo e depois retornam. Enquanto pudermos, seguiremos em El Salvador”, disse Dada. “Não é que o jornalista não esteja em risco, mas, enquanto não darem um passo a mais, que podem dar a qualquer momento, nossa intenção é que a redação siga estando em San Salvador”.
Além do acosso judicial, os jornalistas também estão expostos a uma intensa campanha de desinformação e promoção do rancor. Em novembro do ano passado, uma investigação da Reuters revelou que o governo Bukele financia uma máquina de trolls e bots para descredibilizar e intimidar jornalistas.
Não só são os jornalistas do El Faro que correm riscos. Outros veículos independentes, como as revistas Factum e El Gato Encerrado, seguem a trabalhar no país. Dada diz que a equipe do El Faro, enquanto publicação de maior visibilidade internacional, sente responsabilidade por estes colegas.
“Estamos em constante comunicação com outros meios de comunicação. Há jornalistas de outros meios sobre os quais pesam as mesmas ameaças que há contra nós”, disse Dada, acrescentando que o reconhecimento do El Faro incita a perseguição. “O assédio tem sido mais obsessivo contra nós. Isto é, nos silenciar seria uma grande lição para todos os outros meios que não têm a nossa, digamos, projeção ou nossa reputação”.
Dada não tem palavras generosas para se referir à atual gestão da Organização dos Estados Americanos (OEA), responsável por zelar pela manutenção da democracia na região. Em 2020, durante o auge da pandemia de coronavírus, o secretário-geral da organização, Luís Almagro, classificou críticas a Bukele como “vozes recorrentemente histéricas” e disse que “não devemos inventar ditaduras onde elas não existem”.
Desde então, houve atritos entre as duas partes, como a saída de El Salvador de uma comissão anticorrupção da OEA, e Almagro chegou a dizer que o país poderia ir pelo caminho de “Venezuela, Cuba, Nicarágua, Bolívia“ (incluindo o último país, uma democracia frágil comandanda por um crítico notório seu, em um grupo de ditaduras).
Mesmo com as recentes críticas, Dada entende que Almagro é omisso. “A Organização dos Estados Americanos demonstrou mais uma vez que é um desastre. Durante os seus primeiros anos, Almagro protegeu a Bukele, chamou de exagerados a todos aqueles que o acusavam de autoritário”, disse.
O cofundador do El Faro vê com bons olhos a atuação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, mas gostaria de ver mais atuação por parte do relator especial para a liberdade de expressão, Pedro Vaca Villarreal.
“Para o meu gosto, ele tem sido muito silencioso, muito precavido. Tem preferido guardar silêncio frente a situações escandalosas”, disse Dada, antes de acrescentar que a situação exige uma postura mais combativa. “Não creio que seja uma pessoa de má fé. Simplesmente creio que está atuando como se vivêssemos em momentos ordinários, quando estamos em um momento realmente extraordinário. Precisamos de uma relatoria com muito mais força e com muito mais compromisso com a proteção de valores fundamentais como a liberdade de expressão e de imprensa, que na América Central estão agora sob ataque”.
Há 15 anos, o El Faro afirma ter “vocação centroamericanista e universal”, e a equipe do jornal espera que a mudança seja um passo nessa direção. A carta pública anunciando a transição lembra das situações vividas em outros países da América Central, mostrando que os ataques contra a imprensa são uma tendência.
Na Guatemala, jornalistas enfrentam processos judiciais, e o presidente do ElPeriódico, José Rubén Zamora, está a nove meses preso. Honduras ocupa o último lugar da região no índice de liberdade de imprensa, e em dezembro a presidente Xiomara Castro desmantelou o mecanismo de proteção a jornalistas, além de também decretar estado de exceção.
A Nicarágua, por sua vez, já tornou-se uma ditadura incontestável, e o regime de Daniel Ortega fechou todos os meios de comunicação críticos e prendeu, deportou e tornou apátridas jornalistas.
Bukele tem uma diferença em relação aos líderes dos outros países: a população o apoia entusiasticamente. A sua autoproclamada “guerra contra as quadrilhas”, que incluiu a inauguração de um mega centro de detenção, faz sua taxa de popularidade flutuar em torno de 90%.
Isto gera um desafio adicional para Dada e seus colegas salvadorenhos: para que insistir em informar, se a maior parte das pessoas prefere não ouvir as verdades incômodas que você traz?
A este respeito, Dada diz que “para nós é muito complicado. Talvez devêssemos começar por dizer que nunca entramos em uma disputa de popularidade com nenhum presidente, porque perderíamos sempre. Os presidentes chegam a esses cargos por eleição popular, porque a maioria das pessoas vota neles. Nosso papel sempre será sermos impopulares”.
Em seguida, o jornalista diz que, frente a tantas adversidades, “isso certamente leva você a se perguntar que sentido faz pagar o preço de fazer jornalismo, que é cada vez mais alto. Quando as nossas comunidades aparentemente não se interessam pelo que noticiamos, isso nos obriga a nos fazer perguntas fundamentais sobre a profissão”.
Dada então diz a explicação de seu editor-chefe, Oscar Martínez, “tornar mais difícil a vida dos corruptos, dos ladrões e dos assassinos”. Mas não só. O jornalismo do El Faro, acrescenta, também terá um papel no futuro, no dia em Bukele já tiver se ido, quando alguém quiser entender como o país, que viveu uma sangrenta guerra civil entre 1980 e 1992, até se democratizar, caiu nas garras do autoritarismo.
“A História deixa lições. E uma delas é que todo período termina, e quando esse período terminar e quisermos olhar para trás para entender o que aconteceu, provavelmente nossos materiais serão importantes para encontrar respostas para isso”, afirmou Dada. “Creio que estamos deixando testemunhos da perda da nossa democracia, da perda de nosso Estado de Direito e da consolidação de um regime, que agora é autoritário e se encaminha para ser uma ditadura”.