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A mídia é responsável pelas opiniões dos seus entrevistados? Decifrando a decisão do STF

Quando um meio de comunicação publica uma entrevista que contém uma informação falsa, a responsabilidade jurídica sobre aquela informação recai sobre a pessoa entrevistada ou sobre o veículo?

Em uma decisão do último dia 29 de novembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que um meio de comunicação pode ser responsabilizado civilmente – isto é, ao pagamento de indenização – se publicar uma entrevista na qual o entrevistado “atribua falsamente a outra pessoa a prática de um crime”.

A decisão provocou preocupação de vários em representantes de meios de comunicação, associações de jornalistas e especialistas de liberdade de imprensa, que temem que a sentença, que estabelece uma tese válida para outros casos, possa intensificar o assédio judicial contra jornalistas no país e inibir a liberdade de expressão. Entidades que defendem jornalistas disseram que irão à Organização dos Estados Americanos (OEA) contra o veredito.

A LatAm Journalism Review (LJR) conversou com diversos especialistas em liberdade de imprensa e direito constitucional no Brasil, para entender quais são as consequências da decisão do tribunal.

Entre os motivos para preocupação levantados, os analistas se referem à ambiguidade da decisão, uma contexto de uso recorrente dos tribunais contra profissionais de imprensa e possíveis usos do texto para perseguir a imprensa, sobretudo veículos menores que não contam com departamentos jurídicos.

Por outro lado, alguns especialistas ressaltam que a decisão surge em um contexto de vácuo legislativo sobre o tema, e que o estabelecimento do marco não é negativo.

Abaixo, alguns dos principais pontos envolvendo a sentença e suas consequências potenciais.

A decisão

No caso em questão, o STF julgou um caso relacionado ao jornal Diário de Pernambuco. No texto publicado em maio de 1995, o ex-delegado de polícia Wandencok Wanderley afirmou que Ricardo Zarattini participou do atentado a bomba no Aeroporto dos Guararapes, de Recife, em 1966.

Wanderley foi um notório anticomunista acusado de ser torturador que depois de delegado virou político e faleceu em 2002. Já Zarattini foi um ex-deputado federal pelo PT paulista morto em 2017. 

O alvo do atentado era o marechal Costa e Silva, então ministro do Exér­cito e candidato à sucessão presidencial. Duas pessoas morreram e 14 ficaram feridas. A ditadura militar chegou a indiciar Zarattini dois anos após o atentado, mas a investigação foi considerada falha. Desde a década de 1970, há informações contundentes, incluindo investigações das próprias Forças Armadas, de que Zarattini não tinha envolvimento no caso. No livro “Combate nas Trevas”, de 1987, o historiador Jacob Gorender também descarta a participação de Zarattini. 

Na entrevista no Diário de Pernambuco, Wanderley afirmou que “o responsável pelo atentado foi mesmo o ativista Zarattini, irmão do ator Carlos Zara. O processo apontou claramente sua participação no ato terrorista”.

Zarattini processou o jornal, e o caso só terminou de ser apreciado agora pelo STF, que considerou que, no momento da publicação, já havia “indícios concretos” para o Diário de Pernambuco saber que a informação era falsa, e que o jornal não atentou para isso. 

Na sua decisão, o Supremo afirma que,”como regra geral, se um jornal divulga entrevista em que uma pessoa, sem ter provas, diz que outra praticou um crime, eventual indenização devida ao ofendido deve ser paga por quem fez a acusação falsa, não pelo veículo de comunicação”. 

A sentença diz que “em situações muito excepcionais, porém, a empresa jornalística pode ser condenada a pagar a indenização, desde que comprovada a má-fé (dolo efetivo) ou culpa grave do jornal na divulgação da entrevista”. 

Segundo o STF, para que isso ocorra, é preciso duas condições. A parte acusada de crime precisa comprovar que o jornal “(1) já sabia das fortes evidências de que a acusação era falsa e (2) não adotou os cuidados para divulgar aos seus leitores que a acusação do entrevistado era, no mínimo, duvidosa”.

A decisão teve nove votos a favor e dois contra. Ela constitui uma tese de repercussão geral, isto é, que deve ser observada por todos os tribunais do país.

Ambiguidade do texto

Uma das críticas que especialistas têm feito ao texto, como expresso numa matéria publicada pelo site Consultor Jurídico, é que ele seria ambíguo e genérico.

Entre os juristas e ativistas da liberdade de expressão consultados pela LJR, a maioria endossa essa afirmação. 

O jornalista Artur Romeu, diretor do escritório para a América Latina da Repórteres Sem Fronteiras (RSF), diz que, pela decisão, não fica claro quando os veículos podem ou não ser responsabilizados.

“Os critérios que definiriam e balizariam essa possibilidade de responsabilização dos veículos de imprensa, por falas de seus entrevistados, são muito ambíguos ou vagos. O risco mora aí”, afirmou Romeu à LJR

Na decisão, lembra o jornalista, o STF afirma que um veículo pode ser responsabilizado quando houver “indícios concretos” da falsidade da fala do entrevistado, ou se ficar claro que veículo de imprensa deixou de cuidar da veracidade do que está sendo dito por terceiro. 

“Mas o dever de cuidado da verificação da veracidade, ou o que é um indício concreto, não estão suficientemente definidos. A ambiguidade ou caráter vago geram risco”, acrescentou.

A professora de Direito Constitucional da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara Soraya Regina Gasparetto concorda com essa avaliação. 

“Eu não sei o que é um indício concreto. Pode ser uma condenação? Uma notícia crime? Não fica claro”, afirmou Gasparetto à LJR. “Como será preciso [um jornalista] investigar, tal como a polícia investiga? Ou só uma notícia dizendo o contrário basta?”

Gasparetto também chama a atenção para outro aspecto ambíguo da sentença. Segundo a sentença, somente em caso de dolo deve haver punição. Para a estudiosa, não fica claro, no entanto, o que constitui ou não dolo neste caso.

“A decisão não é clara. Ela não tem os requisitos que uma lei poderia ter, estabelecendo, por exemplo, o que é conduta típica e conduta atípica, pena ou aumento de pena. Ela não tem os requisitos de uma legislação”.

Especialista em temas de liberdade de expressão, o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) e professor de Direito da Unesa André Andrade afirmou à LJR  que o termo “indícios concretos de falsidade da imputação” é uma expressão para lá de dúbia. Quem diz o que é um ‘indício concreto de falsidade da imputação’? isso vai dar panos para manga”.

Também especialista em temas de liberdade de expressão, o professor de Direito da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Carlo José Napolitano chama a atenção para o termo “publicação”. A esse respeito, ele se pergunta se a decisão é válida também para entrevistas ao vivo em meios como o rádio ou a televisão – isto é, se um veículo será responsabilizado por uma opinião emitida ao vivo.

“O problema é você interpretar a ‘publicação’ como ‘veiculação’. A decisão do Supremo não está clara. E aí está o problema, porque poderia ser aplicada essa ideia de responsabilização também para os outros veículos, como televisão e rádio. E aí a possibilidade de checar uma informação por parte do entrevistado em uma entrevista ao vivo não pode ser aplicada para a maioria dos veículos”.

A esse respeito, o desembargador Andrade discorda do colega, e entende que a decisão não tem tanto alcance assim.

“A tese não trata disso. Isso é uma especulação razoável de ser feita, mas não se pode de forma legítima invocar a tese para tentar aplicá-la a uma entrevista ao vivo. O caso julgado foi uma publicação de uma entrevista publicada num jornal impresso, e seria pouco razoável exigir isso de uma entrevista ao vivo. Uma entrevista ao vivo seria uma situação nova que, a meu ver, está em um vazio [jurídico]”, disse Andrade. 

Falta de legislação específica

Desde 2009, quando outra decisão do Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a Lei de Imprensa de 1967, promulgada durante a ditadura, o Brasil não tem uma legislação específica sobre o tema, que especifique quais comportamentos são ou não aceitáveis. 

A nova decisão se encaixa, portanto, neste contexto de vazio legislativo. 

“A lei de liberdade de imprensa poderia não ser boa, poderia ser mesmo péssima, mas nela havia vários artigos onde se estabelecia o que era lícito e o que era ilícito, e o que poderia ser punido e o que não poderia ser punido”, afirmou a professora Gasparetto. “Desde então, estamos numa situação de vácuo legislativo, porque os legisladores ainda não cumpriram com a sua obrigação de estabelecer essa lei”.

Devido a essa ausência de leis sobre o tema, o desembargador Andrade considera a decisão uma novidade bem-vinda.

“Nós até então tínhamos um vazio jurídico no que diz respeito à responsabilidade civil dos órgãos de imprensa das empresas jornalísticas. E agora temos algumas pistas, nós temos alguma ideia de qual é a posição, pelo menos temporariamente, do Supremo Tribunal Federal em relação ao tema”, afirmou Andrade.  

“O que se observava na jurisprudência é que juízes julgavam casos envolvendo órgãos de imprensa e empresas jornalísticas sem nenhum critério. Nós temos agora pelo menos um critério, e vejo esse ponto como algo positivo”, acrescentou.

Já o professor Napolitano, da Unesp, afirma que a legislação brasileira atual já é suficiente para lidar com casos como o que foi julgado.

“Na legislação, temos elementos sim para punir eventualmente o mau jornalismo que não checou a informação. Há o texto constitucional, a legislação civil, a legislação processual e a própria lei do direito de resposta, que é de 2015”, afirmou.

Napolitano afirma que fazer do julgamento deste caso uma tese que seja válida para outros casos é algo que pode ter repercussões práticas. 

“Não acho que seja um problema condenar nesse caso específico, porque aparentemente houve um erro grosseiro e a responsabilização do jornal talvez fosse aceitável”, afirmou Napolitano. “Mas usar esse caso para fazer uma tese de repercussão geral é outra história. É um problema usar um caso concreto, um caso específico, para todos os casos que possam vir a existir”.

Repercussões incertas e assédio judicial

O STF divulgou que os parâmetros da decisão “serão aplicados a pelo menos 119 casos semelhantes que aguardavam a definição do Supremo”, sem no entanto divulgar quais casos são esses.

Napolitano observa que essa nova jurisprudência pode ter um efeito inibidor para muitos jornalistas do país, sobretudo os de veículos menores e menos estruturados.

“A gente pega rádios no interior do Brasil. São milhares. Na maioria delas, o dono da rádio também é locutor, ou editor, ou motorista. São trabalhos em família. Não tem nenhuma chance de fazer checagem”, disse Napolitano. “Então a inibição da informação da entrevista do debate é uma repercussão prática terrível baseada em um caso específico”.

Romeu, da RSF, afirma que a decisão acontece em um contexto de ampliação de desinformação, mas também em um contexto de uso da litigância de má fé como recurso para aqueles que querem silenciar a imprensa. 

“O problema é que a decisão, ao tentar contribuir com uma ideia de um jornalismo exercido com responsabilidade em meio a um contexto de desinformação, acaba pisando em falso e abrindo uma porta para a gente ver uma ampliação do número de processos judiciais abusivos ou situações de assédio judicial a partir de uma lógica de má fé”, afirmou.

Como a LJR cobre há anos, os casos de assédio judicial proliferam cada vez mais no Brasil, embora não haja uma contagem que identifique qual é a quantidade destes casos. Tradicionalmente, quando estes casos chegam ao STF, ele costuma julgar a favor dos jornalistas.

Até lá, no entanto, causam enorme dor de cabeça a jornalistas, sobretudo os mais vulneráveis. O temor de Romeu e muitos outros é que a nova jurisprudência, em desacordo com a maior parte do histórico do STF, reforce essa perseguição.

“Nos últimos anos, temos visto jornalistas e meios de comunicação sendo processados abusivamente por políticos e empresários, em uma tentativa de silenciar o jornalismo legítimo. Não é dizer que jornalistas não podem ser alvo de processos. Eles podem e devem ser responsabilizados. Mas o que vemos é isso sendo utilizado de forma recorrente, uma tentativa de uso abusivo do Judiciário para atacar quem faz jornalismo sério e cuidadoso”, disse Romeu.

“Em um contexto em que isso acontece de forma sistêmica, a decisão acaba sendo uma ferramenta a mais para que veículos, principalmente pequenos e médios, sofram esse tipo de processo”.

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