Dois relatórios de organizações de defesa da liberdade de imprensa concluem que o ano de 2020 foi o mais perigoso para o jornalismo profissional na história recente do Brasil.
A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) contabilizou 428 casos de violência contra jornalistas, mais que o dobro dos 208 casos registrados em 2019. Já a ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF) identificou 580 ataques a profissionais de imprensa e veículos de comunicação em 2020.
Apesar das metodologias diferentes, nos dois levantamentos, o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos, ministros e a própria Secretaria de Comunicação da Presidência aparecem como as principais fontes dos ataques.
No relatório da Fenaj, Bolsonaro foi responsável sozinho por 175 casos (40,89% do total): 145 ataques genéricos contra veículos de comunicação e jornalistas, 26 agressões verbais, uma ameaça direta a jornalista, um ataque a uma emissora de TV e dois ataques à própria Fenaj.
Já o número de casos de agressão física cresceram 113%. Foram 32 casos, 17 a mais do que as 15 ocorrências registradas em 2019. Em quase metade os autores das agressões são pessoas comuns.
"Nós claramente identificamos o bolsonarismo como o responsável pela explosão da violência física contra jornalistas. São populares em situações corriqueiras do cotidiano que passam a agredir jornalistas e impedir o exercício da profissão,” disse Maria José Braga, presidente da Fenaj, à LatAm Journalism Review (LJR).
Um dos casos mais graves foi o ataque a quatro jornalistas por apoiadores de Bolsonaro durante manifestação em frente ao Palácio do Planalto. Eles foram agredidos em pleno Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. O fotógrafo Dida Sampaio foi derrubado e atingido com socos e chutes. Colegas que vieram em seu auxílio também foram agredidos.
Na avaliação da Fenaj, a atitude hostil contra o trabalho de jornalistas é o primeiro passo para a violência física. O órgão contabilizou um total de 110 casos de agressões verbais, virtuais, ameaças e intimidações em 2020.
Entre as vítimas está o jornalista e professor universitário Felipe Boff. Durante cerimônia de formatura de uma turma de jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, parte da plateia xingou, vaiou e ameaçou Boff, interrompendo o seu discurso que mencionava os ataques de Bolsonaro à imprensa. O jornalista precisou ser escoltado na saída da cerimônia para evitar que as ameaças de agressão se concretizassem.
“A reação agressiva de parte do público só confirmou quão urgente e necessária era (e é) a denúncia das agressões contra jornalistas no Brasil, ainda mais graves quando cometidas pelo presidente da República,” disse Boff à LJR. “Imaginava que entre a plateia haveria alguns eleitores dele que poderiam se sentir desconfortáveis com o que ouviriam – afinal, parte do discurso foi o relato de fatos, de dados e de citações literais dos ataques do presidente à imprensa –, mas jamais que tentariam impedir o discurso de um paraninfo, com gritos e xingamentos, como aconteceu”.
“O Estado brasileiro antes era omisso, não tomando providências. Agora o Estado brasileiro é o principal agressor. É uma situação muito complicada. Sabemos que estamos correndo risco ao ir para a rua fazer o nosso trabalho,” disse Braga.
‘Sistema Bolsonaro’ contra jornalistas
Já a RSF mapeou o que eles classificaram como “sistema Bolsonaro”, que inclui, além do presidente, os seus três filhos que têm mandatos no Legislativo, ministros de Estado e até mesmo a Secretaria de Comunicação da Presidência da República.
“A hostilidade demonstrada por Jair Bolsonaro não é novidade. Ela reflete como o presidente, sua família e seus apoiadores refinaram, ao longo do ano passado, um sistema focado em desacreditar a imprensa e silenciar jornalistas críticos e independentes, considerados inimigos do Estado,” diz o relatório da RSF.
A RSF contabilizou 103 ataques do presidente contra a imprensa e profissionais de comunicação. Ele contou com o suporte dos seus três filhos: o deputado federal Eduardo Bolsonaro (208), o senador Flavio Bolsonaro (69) e o vereador Carlos Bolsonaro (89).
No seu levantamento, a RSF ainda destaca a perseguição a jornalistas mulheres, 31 ataques direcionados a profissionais dos sexo feminino, muitos de cunho sexista. A repórter Patricia Campos Mello, vencedora em 2020 do Prêmio Maria Moors Cabot, é uma das vítimas. Ela decidiu processar o presidente e outras autoridades por insinuações de cunho sexual. Em janeiro de 2021, o deputado Eduardo Bolsonaro foi condenado a indenizá-la.
“Até o momento, nada indica que o ‘sistema Bolsonaro’ vá interromper sua lógica de ataques e sua operação orquestrada para desacreditar a mídia. O desafio para a imprensa brasileira é imenso,” diz o comunicado da RSF. “O caminho para enfrentá-lo aponta na direção da coragem e da resiliência, para seguir levando informações confiáveis ao público e, assim, recuperar a confiança no jornalismo de qualidade.”