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Atores estatais foram os principais agentes de violência contra mulheres jornalistas no Brasil em 2021, aponta Abraji

Um monitoramento realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) registrou 119 casos de violência de gênero contra jornalistas em 2021 no Brasil. Destes, 58 tiveram a participação de autoridades estatais – o presidente da República, Jair Bolsonaro, participou de oito destes ataques.

Estes dados são parte do relatório “Violência de gênero contra jornalistas”, publicado no dia 8 de março e disponível em portuguêsespanhol inglês, com os resultados consolidados de um monitoramento realizado ao longo do ano passado. A Abraji coletou os casos a partir de um formulário disponível no site do projeto, alertas do Google e denúncias de organizações parceiras.

O relatório evidencia a especial vulnerabilidade de jornalistas dedicadas à editoria de política, já que 60% dos ataques foram motivados pela cobertura deste tema. Outro indício é o fato de que atores estatais participaram de 52% dos ataques em que os agressores foram identificados.

“É possível identificar uma associação clara entre narrativas misóginas e tendências autoritárias: a maioria das agressões desencadeadas por uma cobertura jornalística específica estão ligadas a pautas políticas e a tentativas de impedir que o jornalismo investigue e fiscalize o poder estatal”, afirma o relatório.

Pesquisadoras e jornalistas durante debate sobre o relatório (Captura de tela)

 

Os autores de mais agressões foram o presidente, Jair Bolsonaro, e o deputado federal governista Carlos Jordy, presentes em oito ataques cada um; Carlos Bolsonaro, filho do presidente e vereador da cidade do Rio de Janeiro, e Tercio Arnaud Tomaz, assessor da Presidência, presentes em sete ataques; e Eduardo Bolsonaro, filho do presidente e deputado federal, presente em cinco ataques.

Em 69% dos 42 ataques em que houve mais de um agressor, um ator estatal iniciou a agressão às jornalistas, no que foi acompanhado por vários atores não estatais, que se uniram a ele para atacá-las. Segundo o relatório, esses episódios mostram “a articulação entre tais autoridades públicas e grupos de agressores na internet” e sugerem “a existência de redes organizadas ou semi-organizadas de agressores, cujo objetivo é reverberar e amplificar a agressão online, criando um ambiente hostil para as jornalistas”.

Discursos estigmatizantes

Mulheres jornalistas foram alvo em 91% dos episódios de violência de gênero contra comunicadores registrados pela Abraji. Em 7% (oito casos) as vítimas foram homens e as agressões tiveram caráter homofóbico. Os 2% restantes foram ataques contra veículos de comunicação que noticiam pautas relacionadas a gênero e feminismo, como foi o caso do Portal Catarinas, que em março de 2021 ficou fora do ar após uma série de ataques massivos.

Do total de 119 agressões, 75% foram discursos estigmatizantes, que consistem em ataques verbais ou com recurso a imagens, vídeos, áudios tornados públicos com o objetivo de difamar e desacreditar a vítima. Outros 11% foram ameaças, intimidação e ciberameaças; 5% agressões físicas; 2,5% restrições na internet; 2,5% processos civis e penais e 2,5% restrições ao acesso à informação.

A maior parte de ataques registrados mirou a reputação e a moral das jornalistas, incluindo narrativas sobre supostos casos extraconjugais e sexualidade, além de agressões verbais usando expressões misóginas, com a intenção de humilhar as profissionais. Termos como “vagabunda”, “puta”, “feia”, “mentirosa”, “fofoqueira”, “louca” foram usados mais de uma vez nas agressões, assim como provocações de viés ideológico como “comunista”, “jornazista” e “esquerdista”. Estas últimas foram as palavras que mais apareceram nos ataques, o que seria “produto e indicativo de um cenário político inflamado”, segundo o relatório.

O meio digital foi o espaço em que se originaram 68% dos ataques, enquanto 29% não tiveram relação com ambientes online e 3% não se originaram na internet, mas tiveram repercussão online.

O monitoramento apontou também que 24,4% das vítimas trabalhavam para o Grupo Globo, 11% para a CNN Brasil, 10,2% para o jornal Folha de S.Paulo e 5,5%, para o portal UOL, enquanto 3,9% eram jornalistas freelancers. “Esses dados são uma importante sinalização para que essas empresas jornalísticas invistam em estrutura para lidar com os ataques”, afirma o documento.

Apoio das organizações jornalísticas

A Abraji realizou dois webinars de lançamento do relatório, nos dias 8 e 9 de março, com a participação de pesquisadoras do tema e também de jornalistas que já foram alvo de ataques de gênero motivados por seu trabalho.

Uma delas é Mariliz Pereira Jorge, jornalista e colunista da Folha de S. Paulo, que ressaltou sua preocupação de que a violência online contra as profissionais se transforme em violência física, especialmente em vista das eleições presidenciais que serão realizadas no Brasil em outubro.

“Violência sempre existiu, mas acho que a gente nem falava sobre ‘ataques’. A gente falava ‘ah, eu fui xingada, alguém escreveu alguma coisa sobre mim’, mas a coisa como ataque, de nós jornalistas nos sentirmos atacadas, é algo que ficou mais evidente a partir de 2018”, disse ela.

Jorge contou que naquele ano ela sofreu um ataque pela primeira vez. “Foi muito difícil. Fiquei três dias praticamente sem entrar em redes sociais, sem falar com as pessoas. Fiquei muito assustada e senti um impacto mental muito grande. Só piorou de lá pra cá. Eu não me surpreendo mais com a virulência dos ataques, mas é uma coisa com a qual a gente não se acostuma”, afirmou.

Ela disse que em março de 2021 sofreu “um dos piores ataques” pelos quais já passou, e que na ocasião pôde contar com “todo o suporte” da Folha, jornal em que trabalha. A empresa lhe forneceu amparo jurídico e orientações sobre segurança, inclusive sugerindo que ela passasse um tempo fora de casa e oferecendo apoio financeiro para que isso pudesse acontecer. Segundo ela, o suporte da organização jornalística em que a profissional trabalha é “fundamental”.

“Eu me senti muito menos vulnerável naquele momento por causa daquele suporte. E eu sei que não são todas as jornalistas que contam com isso”, disse Jorge.

Esta é uma das principais recomendações presentes no relatório, que afirma que “as organizações jornalísticas devem proteger seus e suas profissionais, criando canais seguros de denúncia e proporcionando assistência jurídica, além de investir na construção de uma cultura organizacional em que a violência seja levada a sério”.

Além disso, o documento afirma que é necessário que as organizações jornalísticas “ofereçam treinamento em segurança digital, invistam em formação de equipes e adotem ferramentas tecnológicas de monitoramento e proteção” a seus profissionais.

Outra importante medida, segundo o relatório, é a ação das plataformas digitais. Elas devem investir mais “na moderação de conteúdos, investindo, sobretudo, em funcionários com treinamento em igualdade de gênero e direitos humanos”; revisar continuamente “suas políticas, algoritmos e processos de moderação para lidar com a natureza em constante evolução da violência online”; e “definir políticas e procedimentos mais eficazes para detectar e penalizar os infratores reincidentes e impedir que os mesmos agressores assumam novas identidades online após serem suspensos”.

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