A menos de um mês das eleições gerais de 17 de agosto na Bolívia, jornalistas no país trabalham sob tensão elevada. A liberdade de imprensa boliviana está sob risco em meio a um cenário político complexo, que inclui uma divisão inédita do partido no poder, o Movimento ao Socialismo (MAS), de esquerda. A facção a mais causar problemas é a do ex-presidente Evo Morales, cujos apoiadores promovem manifestações e bloqueios nem sempre pacíficos, intimidam e atacam jornalistas e sinalizam com a ameaça de caos.
O MAS dividiu-se em três vertentes principais. O presidente Luis Arce apoia o seu ex-ministro de Governo Eduardo del Castillo. O presidente do Senado, Andrónico Rodríguez, um dirigente cocalero por muito tempo considerado herdeiro político de Morales, lançou candidatura própria. Morales, enquanto isso, tentou concorrer em busca de um quinto mandato. Após ser impedido de concorrer pelo Tribunal Constitucional por já ter atingido o limite de mandatos, seus apoiadores lançaram no início de junho uma série de bloqueios de estradas no Centro da Bolívia, em manifestações que deixaram seis mortos e uma quantidade incerta de feridos.
Jornalistas estiveram entre as vítimas não fatais. No dia 10 de junho, manifestantes que bloqueavam a estrada que liga a cidade de Oruro ao departamento de Cochabamba interceptaram, tomaram os telefones celulares e ameaçaram queimar jornalistas do portal digital El Fulgor e da rede privada de televisão ATB, segundo noticiou a Associação Nacional de Imprensa da Bolívia, entidade que representa os maiores jornais do país. De acordo com a organização, houve 32 ataques físicos ou verbais a jornalistas nos primeiros seis meses de 2025.
Os números contabilizados pela Associação Nacional de Jornalistas, entidade que representa os profissionais de imprensa, são muito mais altos. Segundo ela, houve 95 ataques a jornalistas até 15 de junho em 2025, sendo 51 durante bloqueios liderados por apoiadores de Morales.
“São ações premeditadas, que estão planejadas e que têm o objetivo de calar os meios de comunicação, infundir medo e provocar também nos jornalistas uma reação lógica de autocensura”, afirmou Zulema Alanes, a presidente da Associação Nacional de Jornalistas à LatAm Journalism Review (LJR).
Após semanas de protestos intensos, os apoiadores de Morales suspenderam os protestos em meados de junho. A trégua, contudo, pode ser passageira. Uma das principais aliadas de Morales, a dirigente política Ruth Nina afirmou em um ato público no dia 12 de julho que o Tribunal Supremo Eleitoral do país “contaria mortos” durante o processo eleitoral. A Justiça ordenou a sua detenção por incitação à desordem.
Episódios de violência contra jornalistas não são novidade na Bolivia. Um caso especialmente grave aconteceu em Mairana, no departamento de Santa Cruz, durante bloqueios de estrada por apoiadores de Morales em outubro de 2024. Jornalistas da Rede Uno foram sequestrados junto com policiais."Tiraram a câmera e todo o equipamento de trabalho deles, os borrifaram com gasolina retirada de coquetéis molotov e os ameaçaram dizendo que iam atear fogo", relatou Alanes. Apenas a intervenção de outros dirigentes impediu que a ameaça se concretizasse, acrescentou.
Gabriel Romano, presidente da Associação de Correspondentes da Imprensa Internacional, disse haver uma cultura de radicalização do discurso, que acaba por promover a violência. “O radicalismo é bem visto. Quanto mais radical você é, assume-se que você é mais valente e mais fiel aos princípios políticos",, afirmou à LJR.
A impunidade e falta de resposta institucional a agressões agravam o cenário. “Não há um canal institucional e formal que nos escute", disse Romano.
.O caso mais emblemático de impunidade ocorreu em Las Londras, Santa Cruz, em outubro de 2021. Jornalistas que cobriam invasões de terra foram sequestrados por oito horas, ameaçados com armas de grosso calibre e forçados a assinar, diante de um tabelião, um compromisso de não retornar à região. "Estamos prestes a completar quatro anos e ainda não houve justiça", afirmou Alanes.
Raúl Peñaranda, diretor do veículo Brújula Digital e analista político veterano, disse que a violência contra jornalistas na Bolívia atingiu um patamar tão alarmante que afetou práticas profissionais rotineiras.
"Agora os jornalistas bolivianos, para qualquer evento, precisam levar um capacete, algo que não víamos antes, porque é possível que alguém jogue uma pedra ou acerte com um pedaço de pau”, disse Peñaranda à LJR.,
Peñaranda identifica uma mudança significativa na origem da violência ao longo dos últimos anos. Desde a posse de Luis Arce, em novembro de 2020, havia “grupos de choque” oficialistas criando um clima de intimidação sistemática, afirmou. Mais recente, todavia, os ataques mais sérios vêm do lado dos defensores de Morales.
Segundo Alanes, a hostilidade tem origem histórica nos quatro governos de Morales, que governou de 2006 a 2019. No período, campanhas sistemáticas e crescentes de desprestígio contra a imprensa foram organizadas. Em 2016, o governo boliviano produziu o documentário de 80 minutos "El cártel de la mentira". Feito por ordem do então ministro da Presidência da Bolívia, Juan Ramón Quintana, a obra contém ataques contra a imprensa independente boliviana.
A estratégia de intimidação intensificou-se após 2016, quando Morales perdeu um referendo sobre a possibilidade de reeleição indefinida no país. “Ele atribuiu essa derrota à ação dos meios de comunicação”, disse Alanes. Foi então, afirmou ela, que surgiram no país os "guerreiros digitais" – funcionários do Estado organizados para atacar opositores e jornalistas nas redes sociais.
Além da violência física e verbal, a imprensa boliviana enfrenta pressões econômicas estruturais. Peñaranda descreve um “sistema perverso de prêmios e castigo com a concessão de dinheiro do Estado aos meios de comunicação” através da distribuição seletiva de publicidade oficial.O que esperar das eleições
As perspectivas para as eleições são preocupantes. Por ora, os apoiadores do evismo fazem uma campanha pelo voto nulo com o nome de Evo escrito na cédula, uma alternativa considerada democrática e não violenta. O quadro, no entanto, é volátil. "Em 2019, a violência se ativou depois das eleições, e não antes", disse Romano.
Diante da ausência de garantias institucionais, a proteção dos jornalistas bolivianos repousa quase na mobilização da categoria. As associações de jornalistas enviaram relatórios detalhados às relatorias especiais da ONU e da CIDH, documentando a escalada de violência e a impunidade sistemática.
"Essa forma que as organizações de jornalistas têm de defender seus colegas é algo positivo", disse Peñaranda. "Algumas pessoas dizem: 'Ah, mas é só algo lírico, é um comunicado'. Mas isso funciona, porque também é uma forma de proteção".
Enquanto a incerteza prossegue, Alanes faz um alerta claro aos colegas: que trabalhem com equipamentos de segurança e à distância necessária para evitar se pôr em perigo.
“A violência pode se acirrar”, afirmou. “Da parte das nossas associações, o que recomendamos é um trabalho responsável, com prudência e a convicção de que nenhuma cobertura vale uma vida”.