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Como a liberdade de imprensa no México foi corroída durante a presidência de López Obrador

“Não tivemos nenhum assassinato de jornalistas além do que as circunstâncias causaram.”

Essa frase foi dita pelo presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador a menos de um mês de deixar o cargo, durante um discurso celebrando as conquistas de seu governo.

Mas os números das organizações de defesa do jornalismo mostram um quadro totalmente diferente. Durante o mandato de seis anos que termina em 1º de outubro, a liberdade de imprensa e a segurança dos jornalistas enfrentaram vários desafios, inclusive o assassinato de dezenas de profissionais da imprensa.

Apesar das promessas de campanha de respeitar a liberdade de expressão, o governo de López Obrador foi marcado por um aumento alarmante de ataques a jornalistas, bem como por uma estratégia controversa de relações com os meios de comunicação.

Violência letal em número recorde

No mesmo dia em que López Obrador tomou posse como presidente do México, 1º de dezembro de 2018, o jornalista Jesús Alejandro Márquez Jiménez, editor e fundador do meio de comunicação Orión Informativo, no estado de Nayarit, foi encontrado morto.

Quase seis anos depois, Alejandro Martínez Noguez, que foi morto em 4 de agosto no estado de Guanajuato, pode ser o último jornalista a ser assassinado na atual administração. Martínez Noguez, que dirigia um canal de notícias no Facebook que cobria crimes na cidade de Celaya, tinha proteção policial atribuída a ele devido a agressões anteriores.

Mexican journalists protest in Acapulco after a colleague was killed.

Jornalistas no estado de Guerrero protestam pelo assassinato de colegas em 2023. (Foto: La Prensa Gráfica, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons)

O número de jornalistas mortos durante o mandato de López Obrador totaliza 47, de acordo com a Artigo 19. O número é o mesmo que o de seu antecessor, o ex-presidente Enrique Peña Nieto.

A grande maioria dos jornalistas assassinados nesse período de seis anos tem em comum o fato de pertencer a pequenos meios de comunicação locais, muitos deles iniciativas pessoais em redes sociais, em regiões remotas dominadas pelo crime organizado. O ano mais letal foi 2022, com 13 assassinatos, enquanto os estados mais violentos do país foram Sonora, com 7 casos, e Veracruz, com 5.

A impunidade continuou a prevalecer. De acordo com o Índice Global de Impunidade 2023 do CPJ, o México ocupa o sétimo lugar entre os países com o maior número de assassinatos de jornalistas não solucionados.

A seguir, os jornalistas assassinados durante o governo de López Obrador, de acordo com a contagem da Artigo 19. Os números diferem dos de outras organizações devido à diferença de critérios para considerar o trabalho jornalístico como motivação para o assassinato.

2018

1º de dezembro: Alejandro Márquez Jiménez, em Nayarit (meio digital).

2019

20 de janeiro: Rafael Murúa Manriquez, em Baja California Sur (rádio comunitária)

20 de fevereiro: Samir Flores Soberanes, em Morelos (rádio comunitária)

15 de março: Santiago Barroso, em Sonora (rádio tradicional e meio digital).

2 de maio: Telésforo Santiago Enriquez, em Oaxaca (rádio comunitária).

16 de maio: Francisco Romero, em Quintana Roo (meio digital).

11 de junho: Norma Sarabia, em Tabasco (meio digital).

30 de julho: Rogelio Barragán, em Morelos (meio on-line)

2 de agosto: Jorge Celestino Ruiz Vázquez, em Veracruz (meio impresso).

2 de agosto. Edgar Alberto Nava López, em Guerrero (mídia digital)

24 de agosto: Nevith Condés Jaramillo, no Estado do México (meio digital)

2020

30 de março: María Elena Ferral, em Veracruz (meio impresso)

16 de maio de 2020: Jorge Miguel Armenta Ramos, em Sonora (meio impresso)

2 de agosto: Pablo Morrugares Parraguirre, em Guerrero (meio digital)

21 de agosto: Juan Nelcio Espinoza, em Coahuila (meio digital)

9 de setembro: Julio Valdivia, em Veracruz (meio impresso).

1º de novembro: Victor Manuel Jiménez Campos, em Guanajuato (meio digital).

9 de novembro: Israel Vázquez Rangel, em Guanajuato (meio digital).

9 de dezembro: Jaime Daniel Castaño Zacarías, em Zacatecas (meio digital)

2021

3 de maio: Benjamín Morales Hernández, em Sonora (meio digital)

17 de junho: Gustavo Sánchez Cabrera, em Oaxaca (meio digital)

22 de junho: Saúl Tijerina Rentería, em Coahuila (meio digital).

22 de julho: Ricardo López Domínguez, em Sonora (meio digital)

19 de agosto: Jacinto Romero Flores, em Veracruz (rádio tradicional).

28 de outubro: Fredy López Arévalo, em Chiapas (meio impresso).

31 de outubro: Alfredo Cardoso Echeverría, em Guerrero (meio digital).

2022

10 de janeiro: José Luis Arenas Gamboa, em Veracruz (meio digital)

17 de janeiro: Margarito Martinez, em Baja California (independente)

23 de janeiro: Lourdes Maldonado López, em Baja California (meio digital).

31 de janeiro: Roberto Toledo, em Michoacán (meio digital).

10 de fevereiro: Heber López Vázquez, em Oaxaca (meio digital).

24 de fevereiro: Jorge Luis Camero Zazueta, em Sonora (meio digital).

4 de março: Juan Carlos Muñiz, em Zacatecas (meio digital).

15 de março: Armando Linares López, em Michoacán (meio digital).

5 de maio: Luis Enrique Ramírez Ramos, em Sinaloa (meios impresso e digital).

29 de junho: Antonio de la Cruz, em Tamaulipas (meio impresso)
11 de agosto: Allan González, em Chihuahua (rádio tradicional)
16 de agosto: Juan Arjón López, em Sonora (meio digital)
22 de agosto: Fredid Román Román, em Guerrero (meio impresso)

2023
23 de maio: Marco Aurelio Ramírez Hernández, em Puebla (independente)
7 de julho: Luis Martín Sánchez Íñiguez, em Nayarit (meio impresso)
15 de julho: Nelson Matus Peña, em Guerrero (meio digital)
25 de setembro: Jesús Gutiérrez Vergara, em Sonora (meio digital)
16 de novembro: Ismael Villagómez Tapia, em Chihuahua (meio impresso)

2024
26 de abril: Roberto Carlos Figueroa, em Morelos (meio digital)
28 de junho: Víctor Alfonso Culebro Morales, em Chiapas (meio digital e rádio tradicional)
4 de agosto: Alejandro Alfredo Martínez Noguez, em Guanajuato (meio digital)

Jornalistas desaparecidos, outra questão pendente

México também lidera as listas de membros da imprensa cujo paradeiro é desconhecido. Em abril deste ano, Repórteres Sem Fronteiras (RSF) registrou 31 jornalistas desaparecidos no México desde 1989. Isso representa quase um terço do total de jornalistas desaparecidos no mundo todo.

Durante o sexênio de López Obrador, pelo menos 10 profissionais de imprensa foram relatados como desaparecidos, segundo o levantamento da RSF. Desses, cinco permanecem desaparecidos: Jorge Molontzin Centlal, Pablo Felipe Romero Chávez, Roberto Carlos Flores Mendoza, Juan Carlos Hinojosa Viveros e Alan García Aguilar.

Graphic of data about missing journalists in Mexico.

Segundo a Artigo 19, pelo menos 4 jornalistas seguem desaparecidos ao final do governo atual. (Gráfico: Artigo 19, CC BY 2.5 MX, via Wikimedia Commons)

Molontzin Centlal, originário de Chiapas, desapareceu em 10 de março de 2021. Ele residia no estado de Sonora, onde trabalhava como repórter na revista Confidencial, na cidade de Caborca.

Também em Sonora, Romero Chávez desapareceu em 25 de março de 2021. Após uma pausa de três anos no jornalismo, ele havia retornado como repórter de notícias policiais em uma estação de rádio na cidade costeira de Guaymas e no jornal El Vigía.

Flores Mendoza foi reportado como desaparecido em 20 de setembro de 2022, no município de Comitán de Domínguez, em Chiapas, depois de ser interceptado por indivíduos enquanto dirigia seu carro. Flores Mendoza administrava a página do Facebook Chiapas Denuncia Ya, na qual, dias antes de seu desaparecimento, havia publicado informações sobre uma suposta disputa interna em um grupo criminoso, de acordo com reportagens da imprensa.

O desaparecimento mais recente é o de Hinojosa Viveros, fotógrafo e editor do veículo digital La de 8 News, em Veracruz. Ele foi visto pela última vez em 6 de julho de 2023 no município de Nanchital, onde residia.

A Artigo 19 também inclui em sua lista Alan García Aguilar, que foi sequestrado por um grupo criminoso em 25 de dezembro de 2022, junto com outros dois homens, identificados como Fernando Moreno Villegas e Jesús Pintor Alegre, na região conhecida como Tierra Caliente, no estado de Guerrero.

Em 7 de janeiro de 2023, um vídeo foi publicado na página do Facebook Escenario Calentano, que García Aguilar havia fundado em 2018 e na qual publicava temas relacionados ao crime organizado. No vídeo, García Aguilar e Moreno Villegas aparecem algemados e descalços, afirmando que estavam "pagando as consequências de suas publicações".

Moreno Villegas e Pintor Alegre foram libertados em 11 de janeiro, enquanto o paradeiro de García Aguilar continua desconhecido.

Estigmatização desde a Presidência

Enquanto a violência afetava os membros da imprensa no México, autoridades do governo de López Obrador se tornaram as principais perpetradoras de ataques e assédio contra jornalistas.

As conferências de imprensa matinais de López Obrador, consideradas a pedra angular de sua estratégia de comunicação, foram o principal cenário de ataques à mídia e aos jornalistas, além de uma plataforma para a difusão de desinformação durante o sexênio. A Artigo 19 documentou pelo menos 179 agressões a jornalistas e veículos de comunicação nesses eventos, popularmente conhecidos como "mañaneras".

Organizações de liberdade de imprensa identificaram que López Obrador construiu um discurso estigmatizante contra jornalistas, frequentemente rotulando-os com insultos como "máfia do jornalismo", "hipócritas", "imprensa fantoche", "conservadores" e "corruptos". A Artigo 19 identificou que esse discurso frequentemente criava um efeito cascata em autoridades locais e estaduais, além de influenciar os cidadãos.

O assédio judicial foi outra forma de ataque durante o governo de López Obrador, com 158 processos judiciais contra jornalistas ou veículos de comunicação registrados, de acordo com o relatório. Quase dois terços desses casos foram promovidos por autoridades ou pessoas relacionadas a funcionários públicos.

Carlos Loret de Mola foi um dos jornalistas que foi processado e também foi um dos mais abertamente atacados pelo presidente. Pío López Obrador, irmão do mandatário, processou Loret de Mola e o meio digital Latinus por danos morais e exigiu 400 milhões de pesos mexicanos (20,6 milhões de dólares) como reparação. Isso ocorreu após a publicação de uma série de reportagens que revelaram supostos atos de corrupção.

Em junho deste ano, autoridades fiscais mexicanas abriram investigações sobre as contas bancárias e propriedades de Latinus, de Loret de Mola, de sua esposa e do ator Victor Trujillo, que também criticou o governo de López Obrador em seu programa na plataforma.

Screenshot of journalist Carlos Loret de Mola newscast on the Latinus digital media outlet.

O jornalista Carlos Loret de Mola foi processado pelo irmão do presidente mexicano após revelar vídeos de supostos atos de corrupção. (Captura de tela no YouTube)

“Os constantes ataques impedem que os jornalistas exerçam seu trabalho de forma livre e plena, o que enfraquece gravemente a informação que difundem, prejudica o debate público e, consequentemente, a democracia”, afirma o relatório.

Outra forma de assédio por parte de López Obrador foi a revelação de dados pessoais e patrimoniais de jornalistas e vozes críticas. Loret de Mola também foi um dos afetados, quando em fevereiro de 2022 o presidente mostrou um gráfico com seus supostos rendimentos, sem citar a fonte. Isso ocorreu após Loret de Mola ter divulgado uma reportagem sobre o estilo de vida luxuoso do filho mais velho de López Obrador.

E em fevereiro deste ano, o presidente divulgou durante outra “mañanera” o número de telefone da jornalista do The New York Times Natalie Kitroeff, que relatou que o governo dos Estados Unidos havia investigado acusações de supostos vínculos de López Obrador com cartéis de drogas.

Tanto no caso de Loret de Mola quanto no de Kitroeff, o Instituto Nacional de Transparência, Acesso à Informação e Proteção de Dados Pessoais (INAI) iniciou investigações de ofício contra o presidente. No caso de Loret de Mola, o órgão ordenou à Presidência da República que sancionasse López Obrador por violar os dados pessoais do jornalista. No entanto, a entidade não aplicou nenhuma sanção, de acordo com reportagens da imprensa.

INAI foi incluído entre os órgãos autônomos que López Obrador busca eliminar por meio de uma iniciativa de lei atualmente em discussão no Congresso mexicano, juntamente com um pacote de reformas que o presidente enviou com a intenção de que sejam aprovadas antes de deixar o poder.

Durante a presidência de López Obrador, foram documentadas mais de 3.400 agressões contra a imprensa, segundo o relatório “Direitos pendentes: relatório sexenal sobre liberdade de expressão e informação no México”, da Artigo 19. Os tipos de ataques mais frequentes foram intimidação e assédio, ameaças e o uso ilegítimo do poder público. Quase metade das agressões foram perpetradas por funcionários do governo.

Jornalistas sob espionagem

“Agora vocês podem falar tranquilamente pelo telefone. Não há mais andorinhas nos fios”. Foi o que disse López Obrador em dezembro de 2018, poucos dias após ter tomado posse como presidente, prometendo que seu governo não espionaria jornalistas e ativistas, como havia ocorrido na administração de seu antecessor, Enrique Peña Nieto.

Uma série de investigações do The Citizen Lab, um laboratório especializado em cibersegurança e direitos humanos da Universidade de Toronto, determinou que, durante o sexênio de Peña Nieto, foram registrados casos de espionagem com o spyware Pegasus, desenvolvido pela empresa israelense NSO Group, contra pelo menos 25 vítimas. Entre elas, estavam os jornalistas Carlos Loret de Mola, Carmen Aristegui, Rafael Cabrera, Sebastián Barragán, Daniel Lizárraga, Salvador Camarena, Andrés Villarreal, Ismael Bojórquez e Griselda Triana, esta última esposa do jornalista assassinado em 2017 Javier Valdez.

Apesar do compromisso de López Obrador, os casos de espionagem continuaram durante seu governo. A investigação “Ejército Espía: Fuera de control”, realizada em 2022 pela Artigo 19 e pelas organizações Rede em Defesa dos Direitos Digitais (R3D) e Social TIC, revelou pelo menos três casos de espionagem com Pegasus.

Um desses casos foi contra o jornalista Ricardo Raphael e outro contra um membro da equipe do meio digital Animal Político, cuja identidade permaneceu anônima. De acordo com a investigação, esses casos ocorreram durante o sexênio de López Obrador, entre 2019 e 2022.

O presidente afirmou que durante sua administração não foram celebrados novos contratos para adquirir qualquer software de monitoramento remoto. No entanto, um vazamento de documentos da Secretaria da Defesa Nacional (Sedena) em 2022, atribuída ao grupo de hackers Guacamaya, revelou que o Exército mexicano firmou em 2019 um contrato com uma das distribuidoras de Pegasus.

De acordo com a investigação “Ejército Espía”, a Sedena inicialmente negou que existissem contratos para a aquisição do spyware, mas posteriormente reconheceu a existência de tais contratos, embora tenha decidido manter a informação em sigilo por cinco anos, supostamente por se tratar de questões relacionadas à segurança nacional.

Screenshot of the "Ejército Espía" investigation.

A investigação "Ejército Espía" revelou pelo menos 3 casos de espionagem de jornalistas com o app Pegasus durante o governo de López Obrador. (Captura de tela de ejercitoespia.r3d.mx)

“Eles [o Exército] têm atividades de inteligência que realizam, que não são espionagem, o que é diferente”, disse López Obrador quando questionado sobre as descobertas.

Em outra parte da investigação “Ejército Espía”, em 2023, foi revelado que a espionagem a jornalistas e ativistas foi realizada dentro de uma estrutura secreta nas instalações da Sedena, conhecida como o Centro Militar de Inteligência. Também foi revelado que as atividades de vigilância a Ricardo Raphael e ao jornalista de Animal Político ocorreram com o conhecimento e aval do Secretário da Defesa, Luis Crescencio Sandoval.

A evidência que relaciona o Exército com atos de espionagem preocupou as organizações de defesa da liberdade de expressão, dado o grande poder adquirido pelas Forças Armadas mexicanas. Estas não apenas consolidaram sua dominância em tarefas de segurança pública, mas também em funções de inteligência. Além disso, López Obrador lhes concedeu poderes para controlar as alfândegas e construir obras públicas.

Traduzido por Carolina de Assis
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