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Exposição ‘Chile, 1973’ apresenta primeiros dias da ditadura de Pinochet pelo olhar do fotojornalista Evandro Teixeira

No dia 21 de setembro de 1973, dez dias após o golpe de Estado liderado pelo general Augusto Pinochet contra o governo democrático de Salvador Allende, chegava à capital do Chile um dos mais importantes fotojornalistas em atividade durante a ditadura militar no Brasil. A mando do Jornal do Brasil, onde trabalhava, Evandro Teixeira viajou para Santiago com o objetivo de documentar a instauração de um novo regime ditatorial na América do Sul. Em sua breve estadia, de pouco mais de uma semana, ele registrou fatos notáveis, como o enterro do poeta Pablo Neruda, as condições dos presos no Estádio Nacional e a presença ostensiva de tanques e soldados nas ruas de Santiago. 

Cento e sessenta desses registros fotográficos, em sua grande maioria inéditos, compõem a exposição Evandro Teixeira, Chile, 1973, em cartaz desde o dia 21 de março até 30 de julho na sede do Instituto Moreira Salles de São Paulo, sob curadoria de Sergio Burgi. A exibição acontece meses antes do aniversário de 50 anos do golpe no Chile, e tem relevância renovada em um momento em que o Brasil acaba de ter um governo liderado por um ex-militar de tendências antidemocráticas. A mostra também ressalta a importância do fotojornalismo para a documentação histórica, e evidencia o poder da coragem e da tenacidade de um fotógrafo quando amparadas por um jornal forte e bem estruturado.

Soldado armado em frente a presos políticos no Estádio Nacional do Chile

Soldado armado em frente a presos políticos no Estádio Nacional do Chile 22/09/1973 (Foto: Evandro Teixeira/Acervo IMS)

Um retrato de Evandro Teixeira tirando uma fotografia com a câmera na posição vertical

Retrato do Evandro Teixeira no Rio de Janeiro em 2013 (Foto: André
Arruda/Divulgação)

 

 

Despedida de Neruda

Teixeira embarcou rumo a Santiago junto do repórter Paulo Cesar de Araújo em 12 de setembro, dia seguinte à derrubada e ao suicídio de Allende. A Junta Militar que assumira o poder no Chile, no entanto, fechou a fronteira, e a dupla precisou passar nove dias à espera da reabertura em Mendoza, no lado argentino dos Andes, até poder finalmente poder seguir de ônibus. 

Dois dias depois da chegada na capital chilena, Teixeira soube pela esposa de um diplomata que Neruda,  então o maior poeta do Chile e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura menos de dois anos antes, estava hospitalizado. O fotógrafo foi até a clínica, mas não registrou o escritor, que morreu naquela mesma noite. Na manhã seguinte, já ciente da morte, Teixeira retornou ao hospital, e ficou vagando pelos arredores. 

“De repente, abriu uma porta na lateral do prédio e entrei, com uma câmera no bolso”,  disse Teixeira, de 87 anos, à Latam Journalism Review (LRJ) em seu apartamento no Rio de Janeiro. “Tive sorte. O que mais me ajudou na carreira foi a sorte, além da vontade de fazer o trabalho.  Sempre acreditei que ia conseguir fazer as pautas darem certo, e nunca tive respeito pelos atos de loucura daqueles que mandam”.

Dentro do hospital, Teixeira se deparou com o corpo de Neruda em uma maca, sendo velado por sua viúva, Matilde Urrutia. O fotógrafo disse a ela que já fotografara o poeta cinco anos antes no Brasil, em um encontro com o escritor Jorge Amado. “Ela me disse, ‘sua presença é muito importante aqui’. Mas não era eu que era importante, era essa bicha aqui, que tem um poder impressionante”, conta Teixeira, pegando da mesa de seu escritório uma câmera digital Lumix LX100, equipada com uma objetiva Leica, a marca que sempre usou. 

Corpo do poeta Pablo Neruda na Clínica Santa Maria, velado por sua viúva Matilde Urrutia, Santiago,

Corpo do poeta Pablo Neruda na Clínica
Santa Maria, velado por sua viúva Matilde
Urrutia, Santiago, Chile, 24/09/1973 (Foto: Evandro Teixeira/Acervo IMS)

 

O fotógrafo brasileiro foi o único a registrar o corpo de Neruda no hospital, foto que considera uma das mais importantes de sua carreira. Dona Matilde, como ficou conhecida, não só autorizou que ele documentasse o corpo, como pediu para Teixeira acompanhá-la até a residência do casal, La Chascona, onde ocorreria o velório. “Sabíamos que ele tinha sido assassinado pelo canalha do Pinochet”, disse Teixeira, usando um epíteto empregado todas as vezes que se referiu ao ex-ditador chileno. Testes de laboratório feitos com os restos mortais do poeta divulgados em fevereiro concluíram que Neruda foi envenenado, confirmando as suspeitas de décadas. 

Todas as etapas do velório e enterro do poeta, que contou com grande participação popular, foram fotografadas. As fotos mostram o evento gradualmente enchendo, após um início com poucas pessoas. O velório se tornou o primeiro grande ato contra a nova ditadura. Ciente da adesão popular, Pinochet marcou um pronunciamento no mesmo horário, que Teixeira ignorou para permanecer no funeral. 

Para o curador Burgi, a presença da imprensa internacional no adeus ao poeta evitou uma possível repressão do Exército durante o cortejo pelas ruas. “Mesmo os fascistas têm que prestar contas à opinião pública internacional, e essa é uma lição para não ser esquecida”, afirmou ele à LJR.

Multidão acompanha corpo de Neruda a caminho do cemitério em Santiago do Chile

A caminho do Cemitério Geral de Santiago, a multidão cresce com adesão de populares, simpatizantes e militantes dos partidos da União Popular, coalizão de partidos que elegeu Salvador Allende em 1970, no dia 25/09/1973 (Foto: Evandro Teixeira/Acervo IMS)

 

Dribles na censura

As imagens que Teixeira realizou no Estádio Nacional do Chile, centro de detenção e tortura de milhares de presos políticos, integram outro núcleo da exposição. Na ocasião,  correspondentes internacionais foram levados pelos próprios militares para fotografar o espaço, em uma iniciativa oficial que visava encobrir as violações de direitos humanos que aconteciam ali. Os militares pretendiam exibir apenas uma pequena parcela dos detidos, aqueles sob melhores condições, de modo a negar a ocorrência de abusos.

Teixeira já estivera no estádio antes, durante a Copa do Mundo de 1962. Ao lado de colegas, ele escapou do tour oficial e conseguiu documentar a chegada não planejada de caminhões com uma grande quantidade de novos presos políticos ao estádio. Além disso, conseguiu penetrar no subsolo do local, onde jovens estudantes eram mantidos aglomerados em celas superlotadas.

“Nesse momento, toda a narrativa visual planejada pelos militares se rompeu. Essas fotos produzem uma desconstrução total do relato oficial esperado pelo regime”, disse Burgi. 

Presos políticos encarcerados no subsolo do Estádio Nacional, Santiago, Chile

Presos políticos encarcerados no subsolo do Estádio Nacional, Santiago, Chile (Foto: Evandro Teixeira/Acervo IMS)

 

Duas das fotos foram publicadas pelo Jornal do Brasil no dia 25. Na época, censores do regime brasileiro trabalhavam na redação decidindo o que poderia ou não ser publicado. “Não me espantaria se, durante as conversas entre os editores e os censores, o argumento para driblar a censura fosse que aquela era uma visita oficial ao estádio, organizada pela Junta Militar”, acrescentou o curador.

Teixeira corrobora a tese. “A fotografia sempre conseguia fazer passar pela censura coisas que os próprios repórteres não conseguiam. Os censores tinham mais dificuldade para entender imagens”, afirmou o fotógrafo.

Muitas outras fotos mostram um pesado aparato militar  nas ruas de Santiago, onde então vigorava um toque de recolher. Há ainda imagens do Palácio De La Moneda destruído por bombas lançadas de aviões. Além de contornar a repressão local, Teixeira precisava revelar as imagens rapidamente em um pequeno laboratório improvisado, que instalou no banheiro do seu quarto no hotel, e transmiti-las em seguida para o Rio de Janeiro usando um aparelho de telefoto.

Imprensa forte

Além das fotos no Chile, a exposição conta com 30 fotografias da ditadura brasileira. Estas mostram desde a tomada do poder com uso da força, em 1964, até o crescimento das manifestações populares contra o regime a partir de 1968, em um diálogo entre os dois países. Além de livros e outros objetos, como câmeras e crachás de imprensa, a exibição também apresenta dois filmes que documentam o período, Setembro chileno, de Bruno Moet, e Brasil, relato de uma tortura, de Haskell Wexler e Saul Landa.

A exposição também permite reflexões sobre a importância da imprensa em contextos autoritários. Sob o comando do editor-chefe Alberto Dines, o Jornal do Brasil era a principal voz entre as grandes publicações brasileiras a denunciar as arbitrariedades e violências cometidas pelo regime militar. Segundo Teixeira, o antigo editor, que morreu em 2018, “botava para quebrar. Ele não se intimidava. E tinha grande abertura para conversar com os jornalistas e fotógrafos, era muito aberto”.

É histórica a capa publicada pelo jornal no dia seguinte ao golpe chileno: a censura brasileira autorizara que a queda de Allende fosse noticiada, contanto não houvesse manchetes nem fotos na primeira página. O Jornal do Brasil fez então uma capa sem nenhum título ou imagem, cuja única notícia, impressa em letras grandes, era o golpe chileno. Fora dos padrões visuais do jornal, mas respeitando a ordem da censura, a página chamou mais a atenção do que se seguisse o trivial. 

Capa do Jornal do Brasil de 12 de setembro de 1973, dia seguinte ao golpe de Estado no Chile, sem manchete nem foto para contornar a censura

Capa do Jornal do Brasil de 12 de setembro de 1973, dia seguinte ao golpe de Estado no Chile, sem manchete nem foto para contornar a censura (Imagem: Reprodução Jornal do Brasil)

Além disso, o jornal passara por uma importante reforma gráfica no final dos anos 1950, que, entre outros elementos, deu proeminência à fotografia em sua capa e cadernos. Segundo Teixeira, na década de 1970 havia 35 fotógrafos fixos na casa, número considerado alto para a média atual de uma grande redação brasileira.

“O jornal tinha poder. Podíamos viajar para onde quiséssemos”, afirmou o fotógrafo. “Hoje em dia, provavelmente usariam fotos de agências de notícias. Mas é diferente quando o jornal usa o próprio profissional, que tem o olhar da casa”.

Após décadas de crise, sobretudo nos últimos 12 anos, o Jornal do Brasil encerrou sua edição impressa em 2010, praticamente deixando de produzir conteúdo original. Depois de 47 anos na publicação, Teixeira pediu demissão três dias antes do anúncio oficial do fim do jornal. Em 2018, houve uma tentativa de retorno da edição impressa, mas ela durou pouco mais de um ano. Jornalistas desta última encarnação reivindicam na Justiça o pagamento de salários atrasados.

Teixeira, cuja saúde atualmente está debilitada após duas infecções por Covid-19, mas cujo raciocínio permanece perfeitamente lúcido e afiado, disse que conseguiu parte de seu acervo de quase cinco décadas do jornal, mas não tudo. O que obteve, entregou em 2019 ao Instituto Moreira Salles, que atualmente abriga mais de 30 arquivos de fotógrafos brasileiros, disponibilizando-o para pesquisa e outras instituições que queiram promover exposições. Antes dessa exposição, entre cerca de 300 fotos de Teixeira no Chile, só sete tinham sido publicadas.

Soldados derrubam estudante que corre em protesto no Rio de Janeiro em 1968

Uma das fotos mais famosas de Evandro Teixeira, na qual Soldados derrubam estudante que corre em protesto no Rio de Janeiro em 21 de junho de 1968 (Foto: Evandro Teixeira/Acervo IMS)

 

Além de São Paulo, Burgi pretende levar a exposição para o Chile, para o aniversário de 50 anos do golpe, e no mínimo também para o Rio de Janeiro. O curador entende que a exposição permite novos ângulos de percepção a respeito da situação presente no país, onde, em sua tentativa à reeleição no ano passado, Jair Bolsonaro, defensor público da ditadura militar, teve 58,2 milhões de votos, o equivalente a 49,10% do eleitorado.

“A exposição revela a importância da documentação de momentos quando há atos inadmissíveis, quando se utiliza as Forças Armadas de um país contra a sua a população”, afirmou Burgi.  “Olhar para as ditaduras no Chile e no Brasil ajuda a entender como os processos autoritários são violentos, regressivos e discriminatórios. As fotografias ajudam as gerações mais novas, que cresceram em um ambiente mais arejado, a entenderem o que é ter as suas perspectivas canceladas. Esses rompimentos, com os quais flertamos recentemente, representam retrocessos de décadas”.

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