Se colaboração é algo natural e bastante disseminado entre novos veículos nativos do meio digital, isso não é tão simples para os jornais que nasceram no papel e se desenvolveram dentro de uma cultura de competição e rivalidade.
No entanto, em meio à crise que reduziu leitores, diminuiu anúncios e cortou equipes, três jornais da Região Nordeste do Brasil uniram esforços para manter a amplitude de suas coberturas sem incorrer em novos custos. E, ao mesmo tempo, fortalecer o jornalismo da região no cenário nacional.
Com uma boa dose de boa vontade dos seus editores e jornalistas, a Rede Nordeste completou um ano em maio. A parceria reúne os três maiores jornais das três maiores cidades do Nordeste: O POVO (Fortaleza), Jornal do Commercio (Recife) e Correio (Salvador).
O Centro Knight conversou com os três editores responsáveis pelas publicações, e um ex-editor que participou do lançamento da parceria. Todos são unânimes em afirmar que a opção pela simplicidade é chave para que a rede funcione. Nesse sentido, buscaram o que os unia e deixaram as divergências para serem discutidas num segundo momento.
“Sabíamos que era grande a possibilidade dar certo do ponto de vista editorial em algumas áreas, mas comercial e marketing talvez embarreirassem a iniciativa”, disse ao Centro Knight Arlen Medina Néri, diretor geral de jornalismo do grupo O POVO. “Se envolvêssemos o Jurídico, [a Rede] sairia em 2035. Se envolvêssemos o comercial, haveria uma guerra. Tivemos apoio dos acionistas, [que pediram] ‘criem um bom produto e tragam os problemas pra gente resolver’”.
De acordo com Medina Néri, sabendo onde os seus calos apertam, o grupo optou por começar por conteúdos que dificilmente causariam problemas, como cultura e esporte, para ampliar gradativamente o compartilhamento de outros assuntos do noticiário, como economia e segurança. A política também entrou no pacote, mas ainda é um ponto de atenção.
“A gente sabe que a [cobertura] política pode ter divergência. Deixamos a cobertura eleitoral, partidária, em banho-maria, mas a institucional é pautada normalmente”, disse Medina Néri.
A necessidade de simplicidade é tão grande que até hoje não há um acordo formal, por escrito, entre os três veículos. “[A parceria] é muito de boca. Se começássemos pela formalização, o projeto não sairia”, reconheceu Roberto Gazzi, ex-diretor de jornalismo e mídias sociais do Correio, ao Centro Knight.
O que mais se aproxima de um entendimento formal é um conjunto de sete regras publicadas no grupo fechado do Facebook usado por jornalistas dos três jornais para compartilhar conteúdo entre si. No geral, elas estabelecem o uso apenas de material próprio, liberam modificações e adaptações e sugerem o devido crédito, como manda a boa prática jornalística.
Atualmente, 66 jornalistas das três redações têm acesso ao grupo, no qual compartilham textos, fotos, áudios e vídeos produzidos pelas redações para que sejam disponibilizados para o uso comum. Além disso, qualquer material publicado nos sites ou nas redes sociais dos veículos pode ser usado pelos parceiros, desde que produção exclusiva e não originada por terceiros, como outras agências.
A rede atual é o desenvolvimento de uma prática comum na cobertura dos times de futebol da região. Em campeonatos nacionais ou regionais, o corte dos custos com viagens de repórteres foi compensado pela troca de material com jornal das cidades onde ocorriam os jogos.
Quando Ceará ou Fortaleza jogassem no Recife, O POVO contaria com material do Jornal do Commercio. E vice-versa quando Sport, Náutico ou Santa Cruz estivessem em Fortaleza. O mesmo vale para jogos em Salvador, cobertos pelo Correio, ou de Vitória e Bahia fora de casa.
Essa ideia foi mais bem estruturada durante a Copa do Mundo do Brasil de 2014, quando Fortaleza, Recife e Salvador sediaram partidas. Motivados pela economia de recursos, os três jornais trocaram conteúdo da cobertura do evento, das seleções, dos jogos e dos treinos. Com a semente da colaboração plantada em ações pontuais, em 2018 houve a criação da Rede Nordeste, de forma que a troca de informações fosse mais perene.
Outro fator que contribuiu para este movimento foi a crise das empresas de comunicação, que, ao mesmo tempo em que reduzia a capacidade de cobertura dos jornais locais, afetou as principais agências nacionais de notícias, que reduziram sua presença na região e, consequentemente, a cobertura.
“Por inúmeras razões, as agências passaram por um processo de corte de custos e dão pouca atenção a fatos regionais. Apesar da proximidade geográfica, a gente sabe muito pouco o que está acontecendo com os outros [estados da região]. Temos presença muito mais sólida de noticiário de Rio e São Paulo do que de Fortaleza e Salvador, que nos interessam muito”, explicou ao Centro Knight Laurindo Ferreira, diretor de redação do Jornal do Commercio.
“As [nossas] empresas compram conteúdos caríssimos de agências nacionais, mas ela não têm um conteúdo local. Ele não chega com a especificidade que precisamos. É uma commodity, um conteúdo homogeneizado, para atender a um cliente médio”, avaliou Linda Bezerra, editora-chefe do Correio, ao Centro Knight. “Eu quero um jornalismo com sotaque”.
Em pouco mais de um ano, a Rede Nordeste já provou seu valor em várias coberturas importantes, como nos ataques de criminosos em Fortaleza, nas enchentes do Recife ou na recente reunião dos governadores do Nordeste em Salvador. Em todas essas coberturas, repórteres de O POVO, Jornal do Commercio e Correio compartilharam textos, fotos e vídeos com os parceiros. “Era como se tivéssemos sucursal em Recife e Fortaleza”, disse Gazzi.
Até o momento, a Rede Nordeste tem funcionado mais como uma central de informações, disponível a todos, mas produzidas separadamente por cada veículo. Os jornais, no entanto, caminham para o desenvolvimento de projetos editoriais em conjunto.
Uma primeira iniciativa é a #ConexãoNordeste, um programa ao vivo semanal no Facebook em que jornalistas de O POVO, Jornal do Commercio e Correio analisam e comentam assuntos relevantes para a região.
A próxima etapa é o desenvolvimento de reportagens apuradas simultaneamente nas três cidades. “Começamos a pensar em pautas conjuntas, trabalhar em temas específicos, com publicação simultânea, mas edições a critério das praças. Esse ponto já é consensual, a primeira pauta deve estar saindo em breve”, disse Medina Néri.
“A pauta precisa nascer integrada. É o grande aprendizado. O que se usa até agora é o conteúdo com produção unilateral. Estamos evoluindo para pautar em conjunto. Onde queremos chegar com essa pauta? Isso vai virar um hábito”, explicou Ferreira.
Conforme a integração editorial avança, o envolvimento das áreas comerciais de cada veículo é visto como um passo natural. A questão é sensível, pois requer estabelecer regras mais formais que deixem as empresas confortáveis em compartilhar clientes e suas estruturas de vendas, ao mesmo tempo em que mantém as suas posições nos mercados onde operam.
“A questão de quem fatura, qual é a tabela, era mais complicada. Os comerciais conversaram bem, chegaram a uma fórmula interessante, que todo mundo fica tranquilo... Mas falta mais tempo para um acordo”, disse Gazzi.
Em dezembro do ano passado, ocorreu a primeira reunião entre os comerciais. De acordo com Ferreira, o simples fato de ela ter acontecido já é motivo de comemoração. Seguindo a experiência editorial, a chave é apostar na simplicidade e no que une os três veículos, ele complementou.
“Nem entramos no ramo das dificuldades ainda. Começamos a estabelecer que projetos podem nos unir comercial e editorialmente. As praças têm os seus clientes e preços diferenciados. Eu tenho convicção que isso vai acontecer, mas tem de ser mais discutido, há muitos interesses, mas é mais complicado. Cada uma das praças tem de ceder em algum momento para chegar a um consenso”, disse Ferreira.
Para além do compartilhamento de conteúdo e de eventuais projetos comerciais, a Rede Nordeste tem como objetivo se tornar referência no país quando o assunto for os nove estados da região e, com isso, se cacifar no mercado nacional, de acordo com Medina Néri. Já Gazzi disse que há planos de, no futuro, estruturar uma agência de notícias que possa comercializar os conteúdos para outros veículos.
“No nosso caminho, havia essa ideia de competir com os veículos nacionais, mas muito lá pra frente. Seria a criação de uma espécie de agência, não só para competir, mas para complementar as informações. A cobertura da região é pobre. Quem sabe no futuro [a Rede] vire uma fornecedora de informações sobre o Nordeste”, disse Gazzi.
Por enquanto, os editores têm a clareza de que a parceria fortalece os seus veículos e cria oportunidades em outros mercado, como explicou Medina Néri.
“Se somos vistos como player regional, isso obviamente vai atrair atenção política, econômica, terceiro setor, de quem importa. Nosso objetivo desde o início é esse. Não é apenas trocar informações, é reverberar”.