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Jornalistas da Guatemala falam sobre degradação da liberdade de imprensa: 'campanha de caça, assédio e violência'

A prisão de José Rubén Zamora, jornalista, fundador e presidente do jornal elPeriódico de Guatemala, tem chamado a atenção internacional para a degradação da liberdade de imprensa e do direito à informação no país. Jornalistas ouvidos pela LatAm Journalism Review (LJR) afirmam que a prisão de um dos nomes mais conhecidos do jornalismo guatemalteco é um grave desdobramento da escalada de ataques contra a imprensa crítica ao governo do presidente Alejandro Giammattei.

“A prisão de Zamora foi o pior golpe dado até o momento pelo governo de Giammattei contra a liberdade de expressão, os meios críticos e os jornalistas independentes”, disse Héctor Coloj, coordenador da Associação de Jornalistas da Guatemala (APG, na sigla em espanhol), à LJR.

José Rubén Zamora - Guatemala

José Rubén Zamora, jornalista guatemalteco, fundador e diretor de elPeriódico. (Foto: Cortesia)

A APG realiza há anos um monitoramento de agressões à imprensa, e tem 2020, o primeiro ano de governo de Giammattei, como o período com mais registros de agressões: foram 149, enquanto no ano anterior, 2019, foram registradas 85 agressões. Em 2021 foram 136 registros e em 2022, até o dia 22 de agosto, 86 casos foram registrados, disse Coloj. Entre os registros estão obstrução de acesso a fontes, ameaças, assédio judicial, agressão material e física, assassinato, intimidação, difamação e censura.

“Desde o Estado, se impulsiona uma permanente campanha de perseguição política a jornalistas, assim como a todas as vozes críticas ao regime, como também a participantes de manifestações cidadãs, o que se reflete em processos de criminalização empreendidos pelo Ministério Público (MP) e apoiados pelo Organismo Judicial (OJ)”, afirma o mais recente relatório semestral do observatório da APG, divulgado em julho.

Segundo o documento, “se somam a estas práticas as campanhas de ódio divulgadas em redes sociais, o seguimento a pessoas incômodas às autoridades, a retenção ou negação de informação pública por parte de funcionários [públicos], a proibição à imprensa de ingressar a atos públicos, o desinteresse do MP de processar agressões e crimes contra jornalistas, e nos últimos meses, o incremento de um discurso confrontativo que apela à ‘defesa da soberania nacional’ e pretende implementar no imaginário nacional como ‘inimigos da democracia’ e ‘desestabilizadores’ do governo setores críticos como a imprensa e líderes e representantes dos povos indígenas”.

Para a jornalista Marielos Monzón, colunista do jornal Prensa Libre e uma das articuladoras do coletivo Prensa contra la Censura e da iniciativa #NoNosCallarán, a prisão de Zamora “termina de consolidar o regime autoritário que Alejandro Giammattei e seus sócios do pacto de impunidade têm configurado no últimos anos na Guatemala”.

Marielos Monzón, colunista de Prensa Libre (Foto: Arquivo pessoal)

“E se soma à intimidação, à perseguição e ao assédio que dezenas de jornalistas têm sofrido nos últimos anos. O objetivo desta operação [na casa de Zamora e no jornal elPeriódico] e desta prisão é uma tentativa de silenciar a imprensa. [Dada a] proeminência de José Rubén Zamora e de elPeriódico como meio emblemático do jornalismo investigativo, também há o objetivo de enviar uma mensagem. A mensagem é: se vocês são jornalistas críticos, se vocês fazem seu trabalho, nós vamos silenciá-los”, disse Monzón.

Enrique Naveda, um dos fundadores do meio digital Plaza Pública e atual bolsista John S. Knight na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, considera que “Zamora é uma figura bastante polêmica dentro do jornalismo nacional, mas é também e sobretudo um emblema”, disse ele à LJR.

“O fato de que o capturaram com a fanfarra com que o fizeram e que o estejam processando em um julgamento claramente manipulado é um alerta para todos os outros jornalistas e sobretudo uma demonstração de absoluta falta de proteção contra esse poder quase ditatorial, autoritário, que o presidente Giammattei está exercendo com o apoio do resto dos órgãos do Estado e de uma grande parte do empresariado organizado”, disse Naveda.

LJR entrou em contato com a Secretaria-Geral da Presidência da Guatemala por email, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.

O caso Zamora

No último dia 29 de julho, José Rubén Zamora foi detido em sua casa sob acusações de chantagem, lavagem de dinheiro e tráfico de influência. Em lugar de tocar a campainha, policiais invadiram sua casa entrando em um pátio interno pelo telhado, mesmo tendo um mandado de busca e apreensão, conforme reportou o site salvadorenho El Faro. Enquanto a polícia realizava a operação na casa do jornalista, outros agentes ocuparam a redação de elPeriódico e mantiveram detidos e incomunicáveis durante 16 horas os funcionários do jornal ali presentes.

A primeira audiência do caso foi realizada no dia 9 de agosto, quando o juiz Freddy Orellana aceitou as acusações apresentadas pelo Ministério Público contra Zamora em um caso montado em 72 horas, segundo El Faro. O juiz também negou o pedido da defesa para que o jornalista respondesse ao processo em liberdade ou prisão domiciliar, por considerar que havia risco de fuga – embora o advogado do jornalista tenha enfatizado que Zamora já enfrentou 185 processos na Justiça guatemalteca e nunca tentou fugir, reportou El Faro. A próxima audiência do caso está marcada para o dia 8 de dezembro, e até lá, Zamora deve permanecer na prisão.

O jornalista guatemalteco Enrique Naveda (Foto: Arquivo pessoal)

Organizações como o Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ), a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e a Rede Voces del Sur, que reúne organizações de defesa da democracia e da liberdade de imprensa na América Latina, têm se pronunciado sobre o caso. A Voces del Sur disse se tratar de “detenção arbitrária”; o CPJ classificou o caso como “perseguição judicial” e exigiu a libertação imediata de Zamora; e a SIP observou que as “espectacularidade e desproporcionalidade das operações de captura aparentam que o governo busca intimidar jornalistas e meios que fiscalizam o poder”.

Saiba mais detalhes sobre o caso: 'Esta é a mensagem mais gritante de um governo contra a liberdade de imprensa': vice-diretora do jornal elPeriódico sobre o caso José Rubén Zamora na Guatemala

‘Campanha de caça e assédio’

Zamora é um dos mais conhecidos jornalistas da Guatemala, tendo recebido diversos reconhecimentos internacionais por seu trabalho e também ataques violentos ao longo das décadas em seu país. Entre os prêmios recebidos por Zamora estão o Maria Moors Cabot, da Universidade de Columbia (1995), e o Prêmio Internacional da Liberdade de Imprensa, do CPJ (1995). Em 1996 ele fundou elPeriódico, que segue sendo um dos principais jornais da Guatemala, consistentemente produzindo investigações sobre casos de corrupção na administração pública. Em 2021, elPeriódico recebeu o prêmio Rei de Espanha como meio de comunicação destacado na Ibero-América.

Héctor Coloj, da Associação de Jornalistas da Guatemala (Foto: Arquivo pessoal)

O jornalista também foi alvo de diversos ataques, inclusive uma invasão de sua casa em 2003, quando ele e sua família foram feitos reféns por várias horas, e um sequestro em 2008, quando foi dopado, espancado e abandonado desacordado na beira de uma estrada. Zamora também já enfrentou vários processos penais, inclusive tendo sido processado mais de uma vez com base na Lei de Feminicídio do país por funcionárias estatais que o acusaram de “violência psicológica” após terem sido apontadas como suspeitas em casos de corrupção investigados por elPeriódico.

Coloj considera que a prisão de Zamora é parte de uma “campanha de caça, assédio e violência contra os direitos humanos mantida pelo Estado da Guatemala” que remonta ao governo de Jimmy Morales, que foi presidente entre janeiro de 2016 e janeiro de 2020. Outros jornalistas ouvidos pela LJR também remontaram o começo da escalada de ataques do governo contra a imprensa à administração anterior a Giammattei, enfatizando que o atual presidente, no entanto, intensificou esta tendência.

Segundo Elsa Coronado, repórter em Plaza Pública, “desde que começou o governo de Giammattei, houve uma ruptura”.

“Ofereceram abertura e não cumpriram. O primeiro ano do governo coincidiu com o primeiro ano da COVID-19 e isso serviu para evitar relações com os meios. Diante de críticas e questionamentos, o presidente fechou as portas e acusou publicamente os jornalistas de mentir para a população. Sua estratégia, desde o início de sua administração, tem sido não dar entrevistas a meios e repórteres independentes, mas, ao invés disso, ele se mostra muito disposto a visitar os programas de TV do grupo Albavisión, de Ángel González [proprietário do conglomerado de mídia], onde ele é tratado com condescendência”, disse Coronado à LJR.

Elsa Coronado, repórter no site Plaza Pública (Foto: Arquivo pessoal)

Coloj afirma que a hostilidade do governo nacional em relação à imprensa tem permeado as instituições em nível local. “Também estas mesmas atitudes têm se replicado nos departamentos, nos municípios, com governadores departamentais ou com deputados distritais que buscam de alguma maneira limitar o trabalho dos jornalistas ao não responder perguntas ou ao responder de forma grosseira ou intimidante ante questionamentos que não lhes agradam, convidar apenas meios simpatizantes ou utilizar a publicidade oficial para premiar, castigar ou condicionar os jornalistas”, disse ele.

A jornalista Julie López, que escreve para El Faro, também falou à LJR sobre o aspecto local da hostilidade e da repressão a jornalistas. Ela lembrou que nos últimos anos houve diversos casos de profissionais dedicados à cobertura local sendo presos e criminalizados por fazer seu trabalho, como foi o caso da jornalista indígena Anastasia Mejía, que ficou mais de um mês presa arbitrariamente entre setembro e outubro de 2020 e depois quase um ano em prisão domiciliar.

Para López, o impacto da prisão de Zamora nos jornalistas guatemaltecos varia também por conta desta diferença entre cobertura local, nos municípios e departamentos, e nacional, na capital do país.

“Há um certo número [de jornalistas], especialmente na capital, creio eu, onde há mais gente assustada se dando conta do que pode ser o Ministerio Público”, disse López à LJR. “Mas também há vozes divididas porque obviamente, dado que Zamora é uma persona de muita proeminência, mais conhecido a nível internacional, etc, isso é uma coisa; mas há vários jornalistas no interior que passaram dias ou semanas na prisão, como o caso de Anastasia [Mejía], e nunca houve a mesma comoção”.

A jornalista independente Julie López. (Foto: Arquivo pessoal)

Um dos receios dos jornalistas ouvidos pela LJR é que a Guatemala siga o caminho de outro país centro-americano, a Nicarágua. Desde 2018, dezenas de jornalistas foram detidos na Nicarágua e pelo menos 120 partiram para o exílio, e mais de 20 meios tiveram suas redações fechadas pelo governo de Daniel Ortega.

No entanto, o medo não paralisa os jornalistas guatemaltecos, como ressaltaram os profissionais ouvidos pela LJR. “Contrário ao que buscou Giammattei, seus aliados políticos, seus aliados no setor privado e a chefe do Ministério Público, a prisão de Zamora não provocou uma autocensura generalizada, pelo contrário: veio fortalecer o ambiente de irmandade e unidade em quase todo o grêmio jornalístico. Os meios não ficaram calados sobre isso e saíram investigações” que apontaram conflitos de interesses das pessoas envolvidas nas acusações contra Zamora, destacou Coloj.

Medo e solidariedade

Leia abaixo outras considerações dos jornalistas ouvidos pela LJR sobre a atual situação da liberdade de imprensa e seu impacto sobre os jornalistas na Guatemala:

Relação entre o governo de Alejandro Giammattei e a imprensa

Enrique Naveda: “[O governo Giammattei] tem a mesma relação com a imprensa que tem com o resto dos atores sociais. Ou seja: exige subordinação e aplauso. A quem lhe oferece subordinação e aplauso, seja a imprensa ou qualquer outro tipo de ator, ele oferece recompensas. Para aqueles que não o fazem, para aqueles que discordam, ele os exclui, os pressiona e, por fim, tenta destruí-los. Isso é o que acontece com a imprensa e é o que acontece com outros tipos de organizações. Por exemplo, a maior parte da imprensa crítica ou dissidente, independente, muitas vezes [o governo] não convida para conferências de imprensa, não convida para reuniões, não concede entrevistas e a pressiona por meios legais e em alguns casos, como o de Zamora, chega ao ponto de prendê-los.”

Julie López: “Desde o início foi uma relação tensa e pouco a pouco os espaços foram se fechando. Acredito que este governo foi propenso a fechar espaços de comunicação, por exemplo, logo as conferências [de imprensa] se tornaram espaços onde o funcionário anunciava tal coisa, mas não havia espaço para fazer perguntas. Ou era fácil de observar que somente deixavam jornalistas próximos ao governo fazer perguntas. Ultimamente também têm sido muito propensos a publicar áudios de declarações ou comunicados de imprensa que enviam pelo WhatsApp, porque assim o jornalista não tem oportunidade de responder e se você faz perguntas sobre o que eles enviam, eles nunca respondem".

Marielos Monzón: “O governo de Alejandro Giammattei impôs uma dinâmica de regressão autoritária e tem sido caracterizado por repressão, censura e limitações ao trabalho da imprensa e dos meios e jornalistas independentes. No último ano, várias formas de limitações, agressões e ataques contra a imprensa se multiplicaram e diversificaram, por exemplo, uma presidência que desrespeita os meios de comunicação, um Ministério Público que em sintonia com alguns juízes fabricam casos e não investigam abusos contra jornalistas, e também estamos vendo os gabinetes de informação pública do Executivo, do Congresso e de outras instituições estatais, que são obrigados a prestar contas, optando por se tornar uma barreira de censura ao direito de acesso à informação.”

Impacto da prisão de Zamora e da atual situação sobre os jornalistas no país

Marielos Monzón: “Por um lado, penso que não podemos negar que há medo, que há ansiedade, que pensamos que toda vez que vamos publicar uma reportagem e que estamos investigando um caso, podemos ser vítimas de um atropelo [da Justiça] e vítimas da criminalização a qualquer momento. Isto é inegável e atinge duramente os jornalistas, que sabemos que neste momento estamos em perigo por causa deste poder que foi constituído para censurar e silenciar a imprensa. Por outro lado, acho importante enfatizar que nós, jornalistas independentes, não só nos solidarizamos com nossos colegas criminalizados, mas nos organizamos de tal forma que agora promovemos uma iniciativa chamada ‘No nos callarán’. Com esta iniciativa queremos mostrar ao povo da Guatemala o que está acontecendo com a democracia, queremos dizer que quando um jornalista é silenciado, quando um meio é censurado, não é apenas um ataque ao jornalismo, mas também um ataque à democracia e ao direito dos cidadãos guatemaltecos de ter informações que lhes permitam tomar decisões e conhecer fatos que os afetam.”

Como se sente enquanto jornalista na Guatemala atual

Julie López: “Minha opinião é que neste país, com as coisas como estão, é menos perigoso cobrir o narcotráfico do que cobrir corrupção. E não estou dizendo que os traficantes de drogas não fazem nada com você, porque é claro que eles podem fazer alguma coisa, especialmente no contexto atual de impunidade. Mas acho que, como jornalista, você corre mais risco ao cobrir a corrupção do que ao cobrir traficantes de drogas. E acho que isso dá uma ideia do estado das coisas, porque o exemplo das prisões de 21 de novembro de 2020 [quando dezenas de pessoas foram presas arbitrariamente por suposta participação em manifestações na Cidade da Guatemala] e o que estão fazendo com Zamora mostra que eles podem agarrar qualquer um e distorcer a lei e não se pode fazer nada a respeito disso. Então isso assusta.”

Elsa Coronado: “Sinto uma responsabilidade maior pela situação atual em meu país. Creio que o jornalismo sério é necessário e urgente. Algumas pessoas pensam que, tirando os jornalistas do caminho, serão capazes de agir sem serem incomodadas, mas existem meios de comunicação muito pequenos e corajosos que estão determinados a fiscalizar aqueles que estão no poder. No meio em que trabalho, Plaza Pública, há esforços importantes para fazer jornalismo investigativo e em profundidade. Acreditamos que as pessoas têm o direito de ter acesso a essas informações e esse é nosso foco e nosso esforço. Há outros meios de comunicação que também fazem grandes esforços com o mínimo de pessoal na cidade e nas comunidades. Vejo um grande compromisso neste momento, apesar dos perigos.”

Enrique Naveda: “Estou muito apreensivo com o futuro da imprensa na Guatemala e da democracia guatemalteca. Sou um dos que acreditam que já não se pode chamar de democracia há um bom tempo. Considero que passamos de um regime híbrido, que é como The Economist descreveu há alguns anos, para um regime claramente autoritário, no qual todas as instituições do Estado agora respondem à vontade do presidente Giammattei, e não acho que isso vai mudar com as eleições [que acontecem em junho de 2023].”

Papel da comunidade internacional

Elsa Coronado: “É importante que prestem atenção ao que está acontecendo aqui. Sei que esta situação é global, mas precisamos da solidariedade do mundo para que o que estamos vivenciando não permaneça no anonimato. Atualmente eu acho que precisamos de redes de apoio para emergências e situações de perigo e fortalecer os conhecimentos de autoproteção das e dos jornalistas, especialmente as e os jovens que corajosamente decidem seguir esta profissão.”

Marielos Monzón: “Precisamos que olhem para a Guatemala e a América Central e se deem conta do que poderia acontecer com esta regressão e o retorno a um passado que não queremos. Mas acima de tudo, precisamos que atuem em defesa destes princípios de democracia e liberdade de expressão de tal forma que realmente se saiba que o governo, o Congresso e os Tribunais capturados [pelo governo] vão pagar caro pelo ataque à população e aos direitos e liberdades dos cidadãos. Em outras palavras, não se trata apenas de enviar mensagens de solidariedade, trata-se também de dizer que esta situação é inaceitável e que haverá conseqüências para este governo e para as pessoas que estão agindo contra os direitos e as liberdades.”

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