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Meios indígenas na América Latina intensificam esforços para levar informação sobre COVID-19 para aldeias e salvar vidas

Já tinham se passado mais de quinze dias que o meio de comunicação indígena Rede Wayuri havia recebido uma homenagem internacional, mas muitos dos seus comunicadores ainda não sabiam do reconhecimento. "Tem chovido bastante nos últimos dias, então estamos sem sinal de internet e a radiofonia fica com muito chiado. Quando isso acontece a gente não consegue se falar", explica a radialista e professora Claudia Ferraz, 33, do povo Wanano, que é coordenadora da rede.

Em junho, a ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF) incluiu o grupo em uma lista para reconhecer jornalistas e veículos pela sua cobertura confiável e vital durante a pandemia. 

O episódio mostra como é difícil a comunicação na região do Rio Negro, onde estão localizados os ouvintes e correspondentes da Rede Wayuri, espalhados em 750 comunidades indígenas no estado brasileiro do Amazonas. Criado em 2017, o grupo produz boletins informativos que são transmitidos ao vivo por comunicação de rádio para as aldeias e distribuídos por WhatsApp, redes sociais e outros aplicativos.

A sede fica no município de São Gabriel da Cachoeira, conhecida por ser a cidade mais indígena do Brasil, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela. 

Com a pandemia de coronavírus, a Rede Wayuri e outros meios indígenas na América Latina precisaram usar a criatividade e intensificar suas ações para conseguir levar informação sobre a COVID-19 para aldeias isoladas, com pouco ou nenhum acesso à internet.

Claudia Ferraz com seus colegas da Rede Wayuri, na sede da FOIRN, onde gravam os boletins

Claudia Ferraz com outros comunicadores da Rede Wayuri, na sede da FOIRN, onde gravam seus boletins. Foto: Divulgação/FOIRN

A LatAm Journalism Review falou com a Rede Wayuri e com rádios indígenas comunitárias em El Salvador, Costa Rica e Guatemala para saber como eles estão reportando sobre o coronavírus em seus territórios. Muitas dessas rádios sobrevivem de doações, transmitem em línguas indígenas e são movidas pela dedicação de radialistas voluntários, que entendem a importância de serem a única fonte de informação nas comunidades, principalmente durante uma crise de saúde pública. 

O coronavírus chegou a São Gabriel da Cachoeira, acessível apenas por barco e avião, em abril. Com cerca de 45 mil habitantes, o município não possui leitos de UTI e contava apenas com seis respiradores, um cenário preocupante para os 23 povos indígenas da região – cujo tamanho é comparável à da Inglaterra.

Apesar de um lockdown e toque de recolher, o vírus se espalhou rapidamente e, em 16 de junho, já estava presente em ao menos 70% do território indígena do Rio Negro, de acordo com informações do Instituto Socioambiental (ISA). No início de julho, o município tinha 2.820 casos confirmados e 45 mortes, segundo o jornal A Crítica.

A situação da pandemia entre povos indígenas brasileiros é agravada em função de condições sociais e econômicas precárias, além de uma maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde, aponta o ISA. O Ministério Público Federal (MPF) alertou em abril que o coronavírus representava um "risco de genocídio dos povos indígenas" e recomendou uma série de medidas emergenciais.  

Segundo a ONG americana Cultural Survival, que atua na defesa dos direitos, culturas e línguas indígenas em vários países do mundo, há muita subnotificação de casos nessas comunidades na América Latina e algumas delas estão sob risco de extinção. 

"A população indígena é a mais suscetível ao coronavírus na América Latina. Em muitas áreas, mesmo na floresta profunda, a pandemia está dizimando comunidades indígenas, porque elas são o alvo perfeito para a COVID-19, já que não possuem defesa contra a doença e pela negligência do Estado, que historicamente mantém essas populações vulneráveis", afirmou o Programa de Mídia Comunitária da ONG à LJR, por email.

Carro de som da Rede Wayuri em São Gabriel da Cachoeira

Carro de som da Rede Wayuri circula por São Gabriel da Cachoeira. Foto: Arquivo pessoal/ISA

Diante desse cenário, os comunicadores da Rede Wayuri se mobilizaram para ajudar na prevenção da doença, mesmo antes da chegada do coronavírus ao município.

Em abril, eles alugaram um carro de som, em parceria com o ISA e outras entidades, para circular nas ruas da cidade, com mensagens em português e nas línguas indígenas sobre medidas de proteção. 

"A gente ia com algum profissional de saúde dentro do carro de som e uma pessoa para traduzir para as línguas indígenas. E também usamos áudios gravados", contou Ferraz à LJR. A campanha durou dois meses, até ser interrompida no final de junho.

"Agora está parado, porque todo mundo que ia no carro de som acabou adoentado [mesmo usando máscara]", afirma ela, que diz que todos estão bem, quase recuperados. "A gente pretende continuar isso, porque ainda tem um alto índice de pessoas com a doença aqui".

Os carros de som foram uma medida emergencial adotada pela Rede Wayuri, mas a principal forma de atuação do grupo, de 20 comunicadores, são os boletins informativos. A Rede não é uma estação de rádio, com uma frequência AM ou FM definida. Os boletins são transmitidos ao vivo por equipamentos de comunicação por rádio, em que um fala e o outro responde.

"A gente combina um dia e horário com os líderes das comunidades, eles mobilizam todo mundo. Quando a gente vai entrar para falar, estão todos reunidos para nos ouvir", explica Ferraz. Como em muitas comunidades não há sinal de celular ou internet, a radiofonia funciona também como telefone. "Dividimos o tempo com pessoas que querem mandar recados para algum parente", diz.

"Parente" é como indígenas se referem uns aos outros no Brasil –o termo está mais ligado a relações de afeto e pertencimento do que a laços de sangue, explicou Letícia Leite, à LJR. A jornalista trabalha com assessoria e formação em comunicação para lideranças indígenas no ISA, além de ser a criadora e apresentadora do Copiô, Parente, podcast feito para povos da floresta no Brasil. 

Claudia Ferraz, durante a transmissão do boletim da Rede Wayuri, por comunicação de rádio. Foto: Arquivo Pessoal

Claudia Ferraz, durante a transmissão do boletim da Rede Wayuri, por comunicação de rádio. Foto: Arquivo Pessoal

As comunicações da Rede Wayuri são feitas em português e nas quatro línguas indígenas mais faladas das 23 que existem na região: Tukano, Baniwa, Yanomami e Nheengatu.

Os comunicadores, que funcionam como correspondentes em suas comunidades, são voluntários das etnias Baré, Baniwa, Desana, Tariana, Tukano, Tuyuka, Wanano, Yanomami, Piratapuia e Hupdah.

"Se a gente falasse só em português não ia atingir muito o público, porque são poucos que entendem. E também os nossos comunicadores se sentem muito mais confiantes e tranquilos falando na própria língua", diz Ferraz. 

Durante a pandemia, a Rede Wayuri fez vários boletins especiais, convidando profissionais da saúde da região para tirar dúvidas das comunidades. Também lançaram uma série, Vozes das lideranças do Rio Negro na pandemia de COVID-19, em que líderes indígenas falavam sobre a doença.  Eles pediam que as pessoas ficassem nas comunidades e não fossem a São Gabriel da Cachoeira, onde corriam o risco de contrair o coronavírus e, na volta, transmitir para o resto da aldeia.

"A cidade está perigosa para a transmissão da doença. Parentes, vamos ficar em casa", repetia Ferraz, em muitos dos seus boletins. Ela também orientava que a população não fosse recolher benefícios sociais na área urbana, mas esperasse as autoridades levarem cestas básicas às aldeias. 

A Rede Wayuri é um projeto da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, com apoio financeiro, assessoria e capacitação do ISA. Para Leite, do instituto, o trabalho da Rede tem sido fundamental na crise de saúde pública. 

"O boletim é único produto periódico de informação nessa cidade. Num momento de pandemia, em que a informação de fato salva vidas, o trabalho desses indígenas de produzir informação checada, com técnicas de jornalismo, na voz dessas pessoas e em línguas indígenas, é central para essas regiões que estão isoladas do ponto de vista do acesso ao jornalismo. São essas redes de jornalismo comunitário que estão fazendo a diferença nesse momento", afirma Leite.

Foi por esses motivos que a ONG Repórteres Sem Fronteiras concedeu a homenagem ao grupo em junho. "Isso me deixou muito feliz, porque mostra que a Rede Wayuri está sendo reconhecida. A gente daqui, que conhece a realidade, sabe que não é fácil. É uma região muito grande, e até chegar nas comunidades são muitos desafios e obstáculos, caminhadas, pedras, cachoeiras, é um grande sacrifício levar essas informações até lá", diz. 

Rádios comunitárias: El Salvador, Guatemala e Costa Rica

Em San Ildefonso Ixtahuacán, na Guatemala, o maior desafio do locutor Antonio Perez, que é de etnia Maya-Mam, era convencer seu povo de que a COVID-19 era real. "Para a população indígena, esta doença não existe, é provocada. E teve gente que não queria obedecer as decisões governamentais", disse Perez à LJR.

Perez é um dos diretores da rádio indígena comunitária Nan Pi’x, parte da Asociación Comunitaria de Desarrollo Integral Maya-Mam (ACODIM-M). Ele também coordena os 22 locutores da rádio. "Tudo é voluntário, porque não temos fundos para pagar as pessoas", diz ele, que tem 57 anos e é aposentado do setor jurídico.

Locutores da rádio indígena comunitária Nan Pi’x, da Guatemala, com máscaras para se proteger na pandemia. Foto: Arquivo pessoal

Locutores da rádio Nan Pi’x, da Guatemala, com máscaras para se proteger na pandemia. Foto: Arquivo pessoal

Assim que a pandemia começou, Perez reuniu os voluntários e distribuiu máscaras e álcool gel para que pudessem trabalhar. Também orientou que eles se informassem bem sobre a COVID-19 e passassem as orientações de prevenção ao longo da programação da rádio, que vai das 6 da manhã até as 6 da tarde. 

Perez afirma que recebeu reclamação de ouvintes, que não queriam saber da doença. Um agravante, segundo ele, foi que um canal de TV local insistia em dizer que a COVID-19 não era real.

"O que temos feito é informar [para os ouvintes] que a doença veio para ficar e que a vacina vai demorar. O único que temos que fazer é nos cuidar", diz. 

Para ajudar os ouvintes a compreender a pandemia, Perez fazia referências a histórias da tradição oral Maya-Mam, de antigas epidemias, para passar a mensagem de que é preciso evitar a propagação da doença. A rádio, que transmite pela frequência 97.7. FM e pela internet, também ajudou a divulgar os mercados comunitários, que surgiram nas aldeias durante a pandemia, por iniciativa dos indígenas. 

"Foram criados mercados comunitários nas aldeias, para que as pessoas não tenham que ir ao centro urbano e possam evitar aglomeração", conta. Segundo Perez, os únicos casos de COVID-19 no município foram de moradores que vieram dos Estados Unidos – a Guatemala tinha, até 7 de julho, 23.972 casos confirmados e 981 mortes, de acordo com a Universidade Johns Hopkins.  

A rádio, composta totalmente de indígenas, transmite para 300 mil habitantes em 11 municípios, nos departamentos de Huehuetenango y San Marcos. As comunicações são feitas em espanhol e em Mam. "A rádio foi criada em 2007 e se mantém com anúncios do comércio da zona. Com isso se paga a luz e a manutenção dos equipamentos", explica.

Sede da Rádio La Voz de Talamanca, na Costa Rica

Sede da Rádio La Voz de Talamanca, na Costa Rica. Foto: Divulgação

Já a rádio La Voz de Talamanca, localizada em Amubri de Talamanca, na Costa Rica, usa podcasts diários do Ministério da Saúde e conversas com seus ouvintes para ajudar a difundir medidas de prevenção, como lavar as mãos, usar máscaras e álcool gel. Mas umas das principais recomendações é não sair das comunidades, que ficam nas montanhas. 

"Aqui como estamos na zona rural, vivemos muito distantes uns dos outros. Na cidade é onde está o contágio. Essas informações nós passamos pela rádio para que as pessoas saibam que, ao sair e voltar, podem trazer o vírus e nos contagiar a todos aqui", diz o locutor Jorge Morales, de 60 anos. Na Costa Rica, até 5 de julho, tinham sido confirmados quase 5 mil casos e 19 mortes por COVID-19, segundo o governo. O país teve um aumento nos registros nos últimos dias e precisou voltar atrás na sua reabertura

Morales trabalha como voluntário na rádio há 30 anos. Ele é agricultor e planta banana e cacau, além de alimentos para subsistência. La Voz de Talamanca é tocada por oito voluntários indígenas e transmite pela frequência 88.3 FM, bem como pela internet, para 11 mil habitantes das etnias Bribri e Cabécar.

"Usamos os idiomas Bribri e espanhol na rádio, porque algumas pessoas mais velhas não entendem bem o espanhol. Também temos muitas informações gravadas em Cabécar", afirmou ele, à LJR.

Jorge Morales, 60, agricultor e locutor na Radio Cultural La Voz de Talamanca

Morales, 60,  locutor na Radio Cultural La Voz de Talamanca

A rádio foi criada em 1979, para ajudar a resgatar os valores culturais indígenas, e é sustentada por doações das comunidades. Segundo Morales, a programação é curta, de 6 horas diárias. "É o horário que podemos fazer porque os recursos econômicos não dão para pagar os gastos de luz e telefone para manter a rádio 24 horas", diz. 

A pandemia piorou a situação econômica do meio de comunicação, que também vivia de eventos culturais, agora cancelados. Recentemente, as rádios La Voz de Talamanca e Nan Pi’x receberam o suporte de um fundo emergencial contra COVID-19 da Cultural Survival, parte de um programa de apoio a meios de comunicação comunitários.

Segundo a ONG, os fundos variaram entre 1.000 e 2.000 dólares e permitem dar uma sustentabilidade de curto prazo para essas rádios, ajudando a pagar contas básicas.

Outro veículo a receber o apoio foi a Radio Comunitaria Indígena La Voz de Mi Gente, que fica em Tacuba, El Salvador. A rádio, mantida por doações e composta por 20 jovens indígenas Náhuatl-pipil, voluntários, está em uma condição financeira delicada.

"As ajudas internacionais, como a da Cultural Survival, são muito pontuais, não dão para cobrir os gastos da rádio por um ano. Pagamos 200 dólares mensais de aluguel do estúdio e agora temos uma dívida de mil dólares, porque não temos dinheiro pela pandemia. E também não temos fundos porque o governo neste país exclui as rádios comunitárias das publicidades oficiais", disse Jose Marcelo Galicia Escobar, diretor da rádio, à LJR.

Normalmente, eles transmitem pela frequência 92.1FM e pelas redes sociais para cerca de 32 mil indígenas Náhuatl-pipil – recentemente, por falta de recursos, a difusão via internet foi interrompida. 

Galicia, que também trabalha como jornalista freelancer, disse que a rádio tem feito campanhas para conscientizar a população sobre medidas preventivas. A programação vai das 5 da manhã até as 9 da noite. "Focamos nas regras sanitárias, mas as pessoas aqui estão resistindo muito a usar máscaras", diz Galicia.

Ele também tem feito reportagens sobre os casos de coronavírus na comunidade. "Hoje mesmo fui a um dos cemitérios para fazer uma nota jornalística sobre uma morte de COVID-19, já foram duas pessoas mortas pela doença aqui", afirma. No início de julho, o país decidiu adiar a segunda etapa da reabertura econômica após um aumento de casos, quando contabilizava 7.267 contágios e 202 mortes, segundo a CNN

Galicia, na sede da Radio La Voz de Mi Gente, em El Salvador. Foto: Arquivo Pessoal

Marcelo Galicia, diretor da Radio La Voz de Mi Gente, de El Salvador. Foto: Arquivo Pessoal

De acordo com Galicia, a população indígena de El Salvador foi a mais impactada pela crise econômica no país, após uma quarentena de três meses.

"Na rádio estamos cobrindo estas notícias sobre como o coronavírus está afetando as populações indígenas, que não têm dinheiro nem recursos para poder sobreviver diante da pandemia. Estão mais pobres do que nunca, porque não podem sair de casa e trabalhar", lamenta.

Galicia explica que a programação da rádio é em espanhol, mas há aulas de Náhuatl, para ajudar a recuperar a língua nativa, que já foi muito perseguida.

Ele acredita que o trabalho da La Voz de Mi Gente tem contribuído para conter a disseminação do coronavírus na região. "Tem feito a diferença. É muito difícil, porque não temos nada, nem para pagar a internet, mas fazemos isso para que as pessoas possam saber o que está acontecendo na comunidade. Não há outro meio que faça isso". 

 

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