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Narcotráfico faz jornalistas se autocensurarem em cidades de fronteira entre Brasil e Paraguai

*Para preservar a segurança de jornalistas mencionados nesta matéria, a identidade de alguns deles não será revelada a pedidos devido à sua situação de risco e vulnerabilidade.

Perguntamos ao nosso primeiro entrevistado: “Qual é o maior medo ao fazer jornalismo na fronteira entre Paraguai e Brasil?”. Ele respondeu: “Escrever e dizer coisas demais, sem medir a sua dimensão de acordo com os códigos da região. Isso pode colocar a minha vida em risco'", diz o jornalista multimídia à LJR na cidade de Ponta Porã, no estado de Mato Grosso do Sul, onde trabalha há 25 anos.

A fronteira entre o Brasil e o Paraguai é uma das mais perigosas em termos de narcotráfico na América do Sul. Ela é dominada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), que controla o tráfico de maconha e cocaína na região.

As ameaças ao exercício do jornalismo são comuns em Ponta Porã e Pedro Juan Caballero. Há um alerta diário que obriga os profissionais de comunicação a se autocensurarem. Isto é, nas notícias que publicam, eles evitam incluir nomes ou informações que possam comprometê-los.

"A vida aqui não vale nada", acrescenta o jornalista, que prefere preservar a sua identidade.

As histórias de ameaças estão sempre presentes na vida dos jornalistas da região. Em 2016, quando assassinaram o então chefe do tráfico Jorge Rafaat, a notícia publicada no site de notícias coordenado por este jornalista teve que ser retirada a pedido expresso das gangues criminosas.

"Havíamos publicado a notícia sobre o autor daquele assassinato, sobre as suas ligações com lavagem de dinheiro e a aquisição de armas. Imediatamente me ligaram para tirá-la do ar", conta. E como resultado de outra reportagem, "tocaram a campainha da minha casa pedindo a mesma coisa em relação a uma reportagem sobre o traficante brasileiro (Jarvis) Pavão".

Sketch of a journalist talking by phone with a person who is threatening him.

Um jornalista recebeu ameaças por telefone após publicar matéria sobre o assassinato do traficante Jorge Rafaat em 2016 (Ilustração: Gerada com IA)

Uma rua com vegetação verde escura divide Ponta Porã (Brasil) de Pedro Juan Caballero (Paraguai). São cidades gêmeas. Em ambos os lados dessa linha divisória binacional, tremulam as bandeiras dos países. O estado de Mato Grosso do Sul divide com o Paraguai 438 km de extensão da chamada fronteira seca (por terra).

Exercer o jornalismo nessa região custa vidas e ameaças desde os anos 1990. Organizações internacionais já noticiaram os casos e investigam-nos de fora da região.

"Foi o caso de Leo Veras, assassinado em fevereiro de 2020, e de Humberto Andrés Coronel Godoy, assassinado em 6 de setembro de 2022. Os jornalistas dessa área são vítimas de violência, e os ataques contra eles permanecem impunes", diz o informe da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF).

O medo os atinge durante as coberturas e ao escrever as matérias. Nessa fronteira, pelo menos 10 jornalistas foram mortos na última década.

Especialmente do lado paraguaio, ocorreram 21 assassinatos de jornalistas em 30 anos. O país está classificado em 103º lugar, de um total de 180 países classificados pela RSF, em um índice dos riscos durante o exercício da profissão. A lista começa com uma classificação da melhor à pior situação de liberdade de imprensa. O Brasil ocupa a 92ª posição, e ambos os países são definidos como "problemáticos".

Em 2020, o caso do assassinato a sangue-frio de Leo Veras, jornalista que cobria questões policiais e de narcotráfico, chocou a imprensa local e mobilizou os jornalistas da região. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que acompanha o caso, conversou com a LJR.

"Essa sensação de impunidade continua. Até hoje não há notícias sobre os responsáveis da morte do Leo Veras. A própria justiça do Paraguai absolveu  em 2022 Waldemar Pereira Rivas,  o Cachorrão, do PCC, um dos suspeitos no crime",  disse Angelina Nunes, coordenadora do Programa Tim Lopes de Abraji, à LJR. "Os jornalistas na fronteira estão no fio da navalha".

Entretanto, algum tempo depois, em março de 2023, a absolvição foi revogada e um novo julgamento foi ordenado.

A mídia, tanto televisiva quanto radiofônica e online, relata o que é factual, ou seja, os fatos, mas sem adentrar nos detalhes das investigações para não comprometer nomes do narcotráfico, da política e do contrabando.

"O que acontece na fronteira também se observa no Brasil mais profundo. Quando um jornalista morre ou desaparece, a comunidade local recua por medo. E então, a forma de cobertura jornalística se modifica, e uma série de assuntos importantes deixa de ser acompanhada", acrescenta Nunes, que estava na fronteira entre Pedro Juan Caballero e Ponta Porã quando Veras foi assassinado.

Exercer a liberdade de expressão nesse território torna-se um exercício de autocensura, disse Marciano Candia, correspondente da Acción Multimedios, à LJR: “Muitas vezes, é necessário dar um enfoque à notícia que não é o desejado e ter muito cuidado ao realizar investigações profundas”. 

Candia noticiou em 2022 as ameaças anteriores ao assassinato do radialista Humberto A. Coronel Godoy para o jornal online Última Hora.

As condições de trabalho dos jornalistas na região aumentam sua exposição ao perigo, e o medo faz parte do dia a dia.

“Muitos deles trabalham em casa, onde vivem com suas famílias e de onde escrevem, montam seus estúdios de rádio e transmitem programas online”, disse Sergio Ramalho, jornalista investigativo que colabora com a Abraji no Programa Tim Lopes Contra a Violência contra Jornalistas, à LJR.

Embora existam redes de instituições e apoio a jornalistas em situação de risco, cabe perguntar: o que deve ser feito além de retirar o jornalista da cidade onde ele corre perigo? Será que apenas essa ação resolve a situação? O que cabe às autoridades dos dois países?

“O principal e mais importante a deixar claro é que, em nenhum caso, os jornalistas devem ficar calados. Em qualquer circunstância, eles devem pedir ajuda”, acrescentou a jornalista e pesquisadora Nunes.

Do jornalismo na fronteira à migração para os Estados Unidos

“Ou você trabalha com segurança policial 24 horas por dia ou precisa mudar-se para outro lugar”, conta à LJR um jornalista de televisão da região fronteiriça que preferiu manter seu nome e identidade anônimos.

Man stands facing the camera, smiling, with pockets his pants, while two armed individuals stand next to him carrying machine guns to protect him

O jornalista Cándido Figueredo (centro) vive com guardas armados 24 horas por dia (Foto: Cortesia)

Deixar o país foi a decisão mais segura para o repórter paraguaio Cándido Figueredo, vencedor em 2015 do Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ). 

Em 2020, depois de passar 24 anos e 8 meses sob custódia policial e trabalhando para o jornal ABC Color, Figueredo se mudou de Pedro Juan Caballero para os Estados Unidos, onde está atualmente em processo de solicitação de asilo.

"O que marcou minha saída do Paraguai foi o assassinato de Leo Veras. No dia seguinte à sua morte, a Polícia Federal Brasileira me informou que haviam interceptado uma ligação telefônica e que a próxima vítima seria eu", conta à LJR a partir da Filadélfia, onde vive e trabalha ensinando espanhol na Universidade Thomas Jefferson.

Figueredo viveu nas décadas de 90 e 2000 na fronteira. Foram tempos de crescimento da produção e distribuição de drogas na região. O medo foi tomando conta dos habitantes e cerceando a liberdade de expressão. Na fronteira entre Paraguai e Brasil, o tráfico de drogas se fortaleceu não apenas em Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, mas também em Ciudad del Este, Foz do Iguaçu e Saltos del Guairá.

"As gangues assumiram o controle com base no terror, assassinatos e armas do PCC (de São Paulo) e do Comando Vermelho (do Rio de Janeiro). O medo fez com que as pessoas não quisessem mexer com eles, e muitos se dobraram às máfias em busca de benefícios, como políticos paraguaios", explica Figueredo.

Uma das histórias mais impactantes com envolvimento de Figueredo foi quando um advogado de uma facção criminosa tentou suborná-lo para que ele não escrevesse nem publicasse artigos que os comprometessem.

"O advogado me visitou, eu continuei a conversa e perguntei quanto ele me pagaria para não publicar. 'Três mil dólares', respondeu ele. Obtive uma gravação sonora da conversa com um gravador que eu tinha no bolso, e um texto escrito que o advogado redigiu para eventual publicação de acordo com seu critério e que ele queria que eu publicasse", detalha Figueredo. 

Depois que o advogado saiu, Figueredo escreveu um artigo sobre o episódio do suborno. E os 3 mil dólares foram doados a um hospital infantil para comprar ventiladores. A notícia sobre o suborno foi publicada no ABC Color e chegou ao conhecimento de uma gangue local. A mensagem que ele recebeu foi clara: "Assim que puder, eu vou te matar".

As medidas de proteção que Figueredo adotou quando vivia no Paraguai eram uma estratégia de muito pouca exposição pública.

Sketch of a man handing wads of banknotes to another man.

Figueredo disse que um advogado de um grupo criminoso o subornou para não publicar artigos que comprometessem seus clientes. O jornalista doou o dinheiro para um hospital e escreveu sobre o episódio (Ilustração: Gerado usando IA)

"Nunca ia a bares, restaurantes, casamentos ou festas sociais. Além disso, eu tinha um acordo com meu círculo mais próximo. Meus familiares diziam que eu estava louco e que eles não estavam em contato comigo há muito tempo. Da minha parte, eu dizia que também não estava em contato com eles. Era um acordo familiar para tirar meus parentes da vista e do perigo do tráfico de drogas", relata.

De acordo com fontes de estatísticas policiais, na área das cidades fronteiriças de Pedro Juan Caballero e Ponta Porã, há uma média de 150 assassinatos por ano relacionados ao crime organizado. A cidade de Ponta Porã concentra 10,6% de todos os homicídios registrados no estado de Mato Grosso do Sul. 

Onde o Estado não está presente, esses setores tomam o território e o poder.

"Se as instituições funcionassem, teríamos mais segurança, mas isso não acontece e, por isso, os autores dos assassinatos de colegas jornalistas ainda não foram presos", disse Figueredo.

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