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‘O país foi sequestrado’: Miguel Mendoza, jornalista da Nicarágua, comenta a sua agridoce deportação

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  • 2 março, 2023

Por Dánae Vilchez, publicado originalmente no site do Comitê para Proteção de Jornalistas.

Homem de óculos, vestindo uma parca escura, fica em frente a um prédio de tijolos olhando para a câmera.

O jornalista nicaraguense Miguel Mendoza foi libertado em 9 de fevereiro e levado de avião para os Estados Unidos. (Foto: Twitter de Miguel Mendoza)

Miguel Ángel Mendoza Urbina, jornalista esportivo veterano com mais de 30 anos de experiência, tomou uma decisão que mudou a sua vida no dia 19 de abril de 2018, quando protestos contra o governo eclodiram na Nicarágua. Ele percebeu que não poderia se concentrar apenas nos esportes enquanto seu país atravessa uma crise. Mendoza passou a usar as suas contas no Twitter e no Facebook, com um total de 144 mil seguidores, para compartilhar notícias e tornou-se uma fonte de informação obrigatória.

O trabalho de Mendoza levou à sua prisão em 21 de junho de 2021, como parte de uma campanha de repressão mais ampla contra figuras da oposição e da mídia independente. Acusado de conspiração e de divulgação de notícias falsas, ele foi condenado a nove anos de prisão. Menos de dois anos depois, em 9 de fevereiro de 2023, Mendoza estava entre 222 presos políticos inesperadamente libertados pelas autoridades da Nicarágua e deportados para os Estados Unidos. Todo o grupo, que incluía o editor do La Prensa Juan Lorenzo Holmann Chamorro e cinco outros jornalistas e profissionais de imprensa que pediram para não serem identificados para proteger a segurança de suas famílias, tiveram a cidadania nicaraguense cassada.

Mendoza e Holmann conversaram com Dánae Vílchez, do CPJ, pouco depois de chegarem aos Estados Unidos. Eles abordaram as experiências na prisão e o seu compromisso permanente com a liberdade de imprensa na Nicarágua. Mendoza descreveu a sua libertação como agridoce, visto que seu país continua “sequestrado” mesmo após ele ser libertado.

[Leia a versão original e a entrevista completa com Holmann aqui.]
A entrevista foi editada para maior clareza e por questões de tamanho.

Você poderia falar sobre quais foram suas primeiras impressões depois de chegar aos Estados Unidos? Como você se sente?

Eu me sinto extraordinariamente bem. Passei 598 dias na prisão da Nicarágua conhecida como El Chipote (A Bofetada). Estar aqui, embora não sejamos mais nicaraguenses de acordo com as autoridades do país, é ótimo.

Mas a verdade é que há coisas muito básicas que uma pessoa está acostumada a sentir que foram apagadas. Falo de coisas básicas como por exemplo se ver no espelho, pentear o cabelo e usar sapatos. Usei sapatos [apenas] quatro vezes em quase 600 dias.

Acho que a pior coisa que acontecia conosco lá [na prisão] era o isolamento das nossas famílias. [Depois da minha prisão, passaram-se] 72 dias antes que eu pudesse ver Margine, minha parceira. Entre agosto e novembro de 2022, foram 90 dias sem ver a família. Isso é o mais difícil, porque não sabíamos o que se passava com eles, com as pessoas.

Eu me considero sequestrado. Não digo que sou condenado, prisioneiro ou detido. Fui sequestrado, porque não recebi as [proteções] básicas do Código Penal da Nicarágua.

Quando estava na prisão, você fazia alguma ideia de que algo como essa libertação iria acontecer?

Sim, suspeitamos que algo estava sendo planejado quando de repente passamos a receber mais visitas regulares de parentes. Eles trouxeram minha filha para me ver em 7 de dezembro, após eu exigir vê-la [por] um ano e meio. Então eles nos visitaram [e nos permitiram usar] roupas civis, sapatos e cabelos curtos, e nos deram um banquete — bem, comida, comida especial. As visitas anteriores eram muito rígidas. As mulheres que chegavam, irmãs, mães ou esposas, eram obrigadas a se despir [para revistas] de uma forma revoltante, [mas] de repente, passamos a ter visitas mais relaxadas. Sabíamos desde então que algo estava acontecendo.

Você pode nos dizer o que aconteceu quando eles levaram vocês para o avião?

Quando saímos da prisão naquela noite, nos puseram em um ônibus tapado para que não pudéssemos ver as ruas de Manágua. Assinamos um documento autorizando a nossa viagem aos Estados Unidos, que foi o momento em que [percebemos que íamos para lá]. Perguntei se já haviam informado minha família porque nos levaram sem nada, apenas uma calça, uma camisa e um par de sapatos. As autoridades imediatamente nos disseram que estávamos indo para Washington.

Foi uma celebração. Quando o avião decolou, cantamos o hino nacional da Nicarágua, cantamos algumas canções [da Nicarágua] e as orações dos padres. Foi uma festa, mas também houve lamentos que ficassem quase 40 reféns, entre eles o bravo Bispo Rolando Álvarez, [condenado a 26 anos de prisão em 10 de fevereiro por se recusar a embarcar no voo para os Estados Unidos]. Para mim, foi agridoce, porque sinto que conseguimos a nossa libertação, mas o país foi sequestrado.

O que aconteceu no dia da sua prisão?

Nesse dia teve uma pessoa que me avisou por uma mensagem privada. Ele me disse: estão atrás de você e do Carlos Fernando Chamorro, que é outro jornalista. Eu não acreditei naquela mensagem. Era por volta das 17h do dia 21 de junho [2021]. Não tive oportunidade de fugir, porque foram atrás do Carlos e não o encontraram, e aí foram logo atrás de mim. Fui à casa de um amigo. Cheguei e, depois de cinco minutos, a rua estava cercada por viaturas, motocicletas, paramilitares e um policial.

Um policial me disse: “Miguel, saia.” Eu saí, e eles me algemaram [e] me colocaram em uma viatura. Lembro-me apenas do comentário feito pelo motorista, que foi uma das testemunhas do meu julgamento. Ele disse que eu iria para a prisão assim como Miguel Mora [ex-jornalista e vencedor do Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa do CPJ condenado a 13 anos de prisão] por ser ingrato com o comandante [presidente da Nicarágua, Daniel Ortega]. Obviamente não disse nada a ele, apenas pensei que não tenho nada a agradecer a Daniel Ortega. Eu sou um jornalista. Um jornalista não agradece a ninguém, um jornalista faz o seu trabalho e pronto. Eles me transferiram para a prisão como se eu fosse um traficante de drogas perigoso.

Como um jornalista esportivo se torna um jornalista e comentarista político e é acusado de conspiração?

Eu trabalhava com jornalismo esportivo há 30 anos, mas sempre acrescentei um pouco de “molho político” às minhas reportagens. Quando eclodiram os protestos de 2018, me lembro de abrir a minha página no Facebook. Percebi que os seguidores estavam me dizendo: 'Você está falando sobre esportes enquanto tantas pessoas foram mortas, a maioria delas jovens estudantes universitários.'
Foi aí que me convenci de que era vergonhoso continuar falando de esportes enquanto o país sangrava. Esse foi o meu antes e depois. Comecei a publicar as coisas que estavam acontecendo.

Talvez eu tivesse uma certa vantagem, porque na época eu trabalhava no que era o canal de televisão mais importante da Nicarágua, e acho que as pessoas viram em mim um rosto conhecido em quem confiavam [para] notícias e vídeos. Eu era o diretor de um grupo que tinha muitos correspondentes espalhados pelo país.

A incrível frustração do governo é que jornalistas independentes, apenas com um telefone e com internet – não estou falando do meu caso –, mas todo jornalismo independente, os derrota em termos de audiência.

Por que Ortega quer calá-lo?

Exatamente porque assim são os ditadores. Eles me acusaram de enfraquecer a pátria. Em outras palavras, eles me acusaram de querer dividir o território da Nicarágua em duas ou quatro partes e me acusaram de pertencer a uma quadrilha do crime organizado. Meu advogado perguntou qual era a quadrilha, e me dei conta de que a quadrilha era composta pela congressista [americana] María Elvira Salazar, pelo ex-secretário de Estado [americano] Mike Pompeo e pela [ex-comissária] oficial de direitos humanos da ONU e presidente chilena [Michelle] Bachelet. Eu pertencia a essa quadrilha porque os retuitei.

Quando há uma imprensa forte, como aconteceu na Nicarágua nos últimos anos – um jornalismo independente e beligerante, do qual tenho orgulho de fazer parte – eles têm medo. Eles estão nus, estão expostos e gostariam de esconder coisas.

Quais foram as condições em que você foi mantido, e como elas afetaram sua saúde?
Tenho diabetes. Eu tenho gota. Eu descobri que eu [também] era hipertenso na cadeia.

Fiquei sozinho por 313 dias em celas bem pequenas com apenas um beliche, uma cabine de cimento com um colchão pequeno, como se você estivesse dormindo na calçada. O sol não entra lá. O ar não entra lá. É difícil respirar.

Não havia banheiros. Há apenas um pequeno orifício para fazer as necessidades com uma pequena bacia, e tínhamos que limpá-lo. E isso produz doenças. Era como uma feira de insetos naquela pequena cela. A partir de 30 de abril de 2022, me encaminharam para outra cela, um pouco maior, com companhias. Margine, minha parceira, me disse que eu parecia deteriorado.

As condições da prisão também atingem você. Eu não podia ler nada além das recomendações no rótulo da pasta de dente. Não tínhamos nada para ler. Eles tiraram os rótulos, então não podíamos ler nem o nome da marca da empresa de água engarrafada. Eles tiravam as etiquetas com os nomes que nossa família escrevia, então não podíamos ler nem isso. Eu tinha que calcular que horas eram, porque ninguém usava relógio. Não tínhamos permissão para falar uns com os outros de uma cela para outra. Era inimaginável. No primeiro ano era inimaginável.

(O CPJ enviou um e-mail à vice-presidente da Nicarágua, Rosario Murillo, para comentar as condições das prisões, mas não obteve resposta.)

Você disse que houve muitos interrogatórios. O que te disseram?

Disseram-me que eu publicava notícias ruins, que eu estava deixando o povo nicaraguense infeliz, que havia uma diferença entre boas e más notícias e que eu só deveria noticiar quando eles publicassem notícias boas . O jornalismo não publica notícias ruins e boas, eu disse a eles. Jornalistas publicam notícias. É isso.

Outro comentário era que o jornalismo na Nicarágua era acusado de ser financiado por organizações internacionais. Eles me perguntaram se esses grupos [tinham] me financiado, e eu disse a eles que, se descobrissem que [esses grupos] haviam pago minha conta de telefone [ou de] dados ou internet, as autoridades poderiam me condenar, porque eles [os grupos] não me pagaram. Fiz tudo com meu próprio dinheiro. Perguntaram-me sobre outros colegas [que] conseguiram ir para o exílio.

Que mensagem você deixaria para a comunidade internacional? O que organizações como a nossa devem fazer?
Acho que muita coisa está sendo feita. Acredito que os colegas que estão no exílio e na Costa Rica receberam ajuda, e isso é bom.

Sinto muito orgulho desta profissão. Como disse a um interrogador, não esperava ser ajudado. Eu não esperava ser pago pelo meu trabalho. Algumas organizações estão ajudando muito os jornalistas. Escolhemos uma carreira mal paga e maltratada e ninguém mais fica bilionário em uma profissão dessas.

Há grandes jornalistas na Nicarágua, com uma enorme ética de trabalho. Eles morreram pobres por causa da carreira que escolheram. Mas recebi enorme solidariedade e apoio nestes dias que estou aqui [nos Estados Unidos]. Percebo que muitas pessoas sabiam de mim devido ao que eu estava passando, fazendo-me sentir que valeu a pena.

A minha [contribuição] é apenas um minúsculo, minúsculo grão de areia, em uma imensa montanha da vontade de muita gente. E quando falo de jornalismo, sinto orgulho de ser jornalista, e sinto orgulho do trabalho que foi feito lá na Nicarágua, [trabalho que] ainda está sendo feito agora de fora, porque a ditadura não tem vida fácil com o jornalismo.

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