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O que os dados têm a nos revelar? "Afinal de contas", primeiro blog de dados do Brasil, responde (Entrevista)

Seguindo os passos de jornais como The Guardian (Reino Unido), Los Angeles Times (EUA), La Información (Espanha) e La Nación (Argentina), a Folha de S. Paulo lançou esta semana em seu portal o blog "Afinal de contas", primeiro no Brasil a explorar o universo do jornalismo de dados.

"Números que são notícia e seus contextos são o assunto do novo blog", explica a Folha. A partir da análise de dados originais, a página pretende revelar os detalhes "escondidos" nas reportagens. Sempre que possível, os posts incluirão as planilhas utilizadas.

A iniciativa surgiu de um jornalista apaixonado por planilhas e números e fã declarado de Philip Meyer, um dos precursores da Reportagem Assistida por Computador (RAC). Marcelo Soares, especialista em análise de dados e membro do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, explicou sua mais recente empreitada ao Centro Knight para o Jornalismo nas Américas.

Knight Center: Algum site específico serviu de inspiração para criar o "Afinal de contas"?

Marcelo Soares: Vários sites e outras experiências. Difícil falar em um só.

Mais diretamente o que eu pretendo fazer é um misto de dois trabalhos ingleses: o "Datablog", do Guardian, e o programa "More or Less", da BBC. O Datablog é excelente ao lidar com dados públicos. Ele converte relatórios em planilhas e mostra como qualquer leitor poderia usar ferramentas gratuitas, disponíveis na Web, para analisá-los. Admiro o trabalho do Simon Rogers e sua equipe. Do “More or Less”, quero importar a didática dos números pra ajudar o leitor e os colegas a entenderem as sutilezas de como os números são produzidos. Não sou economista como o Tim Harford, mas acho que atentar a esses contextos é parte de uma boa apuração.

Lá no fundo, a grande inspiração é o trabalho do professor Philip Meyer, aposentado pela Universidade da Carolina do Norte. Eu tinha 21 anos e era mais um estudante de jornalismo deserdado da matemática quando descobri na biblioteca um exemplar empoeirado de “The New Precision Journalism”. Aquilo mudou minha vida. Na primeira leitura, estranhei: pareceu um “coroa” maluco dizendo que jornalista tinha que estudar matemática e fuçar bancos de dados. Na segunda leitura, logo depois, fiquei empolgado. Naquele mesmo ano fiz minha primeira reportagem usando dados públicos, sozinho para um jornal de bairro de Porto Alegre e com um colega experiente para o “Correio do Povo”, onde eu era auxiliar de alguma coisa. Não quis mais parar.

KC: O que o leitor deve esperar do conteúdo do blog?

MS: Discussão sobre números, entrevistas e uma pitada de bom humor, porque eu não vivo sem. Em termos de assuntos, quanto mais inesperados melhor - os números não estão só no jornalismo econômico, podem estar até nos quadrinhos. Perceba que você está falando com um sujeito que mantém atualizada uma planilha com todos os shows que o Deep Purple fez desde 1968.

KC: Visualização da dados faz parte do projeto?

MS: A Folha já faz visualização de dados em alguns projetos, e eu participo de alguns deles. No ano passado tive uma experiência interessante trabalhando na editoria de Arte da Folha. Sempre que sair algum projeto da Folha com visualização de dados, certamente vou comentar no blog, mas não faria sentido ele ficar só lá. Especificamente para o blog, quero sempre que possível usar algumas ferramentas de que qualquer leitor possa se apropriar: Fusion Tables, Tableau e outras. Falta só apertar mais alguns parafusos para chegar lá.

KC: A expansão do jornalismo de dados e da infografia pode ajudar a atrair a atenção de leitores para notícias online?

MS: Eu acho que sim. Texto a gente já faz no impresso desde Gutenberg. Áudio o rádio faz há décadas e mais décadas. Vídeo a TV faz muito bem, desenvolveu uma linguagem própria. Infografia estática é um ponto forte da Folha há muitos anos. O que o meio digital traz de mais fascinante, além de juntar tudo isso, é a possibilidade de não ficar limitado ao tempo (como no rádio e na TV) ou ao espaço (como nos impressos).

Numa reportagem sobre o Enem, digamos, no jornal, no rádio ou na TV, você só consegue mostrar as tendências gerais e casos contados nos dedos; num banco de dados, você pode contar ao seu leitor o desempenho específico da escola do seu filho e as dos filhos dos amigos, mesmo se elas não estiverem entre as absolutamente melhores ou piores - como é o caso da imensa maioria das escolas. Esse é o ponto mais forte do meio digital; usar visualização de dados para isso só ajuda o leitor a encontrar melhor a informação que mais lhe interessa. E, se for bem feito, dá pra passar horas fuçando.

KC: A aprovação da Lei de Acesso à Informação Pública brasileira influenciou o projeto?

MS: Não exatamente. O foco do “Afinal de Contas” está nos dados que são notícia, independentemente da lei. Podem vir de fora do Brasil. Ou podem não ser informações geradas pelo poder público. Certamente pretendo me valer da lei quando possível, mas especializado em acesso à informação pública já existe o excelente blog “Públicos”, que o Daniel Bramatti e o Fernando Gallo fazem no Estadão. O “Afinal de Contas” é outra coisa.

Minha relação com a lei de acesso, porém, é antiga: em 2004, quando era gerente da Abraji, ajudei o Fernando Rodrigues a organizar a primeira reunião para criar o Fórum de Acesso a Informações Públicas. O Centro Knight, aliás, foi parceiro na organização dos encontros. Acompanhei toda a tramitação da lei, sedento para vê-la passar e poder botar a mão em novos dados públicos. Eu diria que a lei de acesso é mais importante até do que o Código do Consumidor, embora certamente muito menos cidadãos a conheçam. Bem usada, a lei de acesso pode funcionar como o Código do Consumidor de serviços públicos.

KC: Em tempos de Wikileaks, leis de acesso à informação e Anonymous, você acha que o desafio deixou de ser obter dados e passou a ser organizá-los e contextualizá-los? Que novas habilidades são requeridas dos jornalistas para enfrentar essa nova realidade?

MS: Não sei se obter dados deixou de ser um grande problema. Há dados importantes que continuam fechados nos escaninhos do poder público. Outros continuam sendo publicados em PDF, esse formato engessado que atrapalha a análise ao mesmo tempo em que dá uma falsa impressão de transparência.

Anteontem fui escrever sobre uma pesquisa do Ministério da Saúde e precisei converter os PDFs para analisar no Excel. Cada planilha tinha uma página, e foi rápido. Nem sempre é assim: há alguns anos passei duas tardes convertendo em planilha alguns PDFs de até 4 mil páginas com os gastos do cartão corporativo do governo de São Paulo. Na prática, era impossível descobrir quanto cada secretaria havia gasto e quase ninguém deu mais do que um registro quando saiu. Mas eu consegui achar pautas ali, depois de suar muito, convertendo e “faxinando” os dados.

Também não sei se são necessárias habilidades muito novas. Ferramentas, sim. Acho importante adaptar ferramentas novas a velhas habilidades como a curiosidade, o desconfiômetro e a independência em relação a facções. Mas são habilidades que já eram necessárias. Mesmo análise de dados não é novidade. Nos EUA se faz reportagem com o auxílio do computador desde a década de 1960. Lá em 1991, antes de eu entrar na faculdade, o Philip Meyer escrevia que era necessário que os jornalistas se tornassem analistas de dados. Se depois de tantos anos isso ainda é novidade, talvez estejamos atrasados.

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