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Onda de protestos e crise de credibilidade da imprensa tradicional impulsionam meios alternativos e fact-checking no Chile

"Desligue a TV!," "Saia para marchar!," "A TV mente!" liam-se nas ruas de Santiago e outras cidades chilenas durante os protestos mais massivos da história do país contra a desigualdade social, também chamado de 'o despertar do Chile'.

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Quando ocorreu a manifestação em outubro de 2019 devido à crescente desigualdade econômica e social do país, as pessoas marcharam em protesto e de forma pacífica. A mídia tradicional, no entanto, apresentou manifestantes como violentos e ofereceu uma cobertura distorcida, afetando sua já frágil credibilidade. Além disso, existia um ambiente propício à divulgação de fake news.

Como resultado, surgiram meios alternativos e de fact-checking para manter os cidadãos informados sobre o que realmente estava acontecendo nas ruas. Houve uma reflexão no jornalismo de radiodifusão sobre a cobertura de abusos e repressão policial, valendo-se de uma maior variedade de fontes.

A revolução não seria televisionada

“Quando o movimento social começou, o foco da cobertura televisiva era, em geral, a cobertura dos acontecimentos violentos ocorridos em torno das manifestações, que eram muito massivas e aconteciam todos os dias. Isso causou muito aborrecimento entre os telespectadores," disse a jornalista e acadêmica chilena Francisca Skoknic à LatAm Journalism Review (LJR). “As pessoas acabaram odiando jornalistas nas marchas e, em muitos casos, agredindo-os”.

Os meios de comunicação tradicionais chilenos – como TVN, Mega, jornal La Tercera, entre outros – enfatizaram a cobertura dos excessos com longas e ininterruptas transmissões de saques, barricadas e incêndios em diversos pontos da cidade, principalmente no centro da capital, segundo Claudia Lagos, professora de jornalismo da Universidade do Chile e presidente da Rede de Jornalistas do Chile, em entrevista à LJR.

O portal TVN Noticias, do canal Televisión Nacional de Chile, publicou no primeiro parágrafo de uma notícia de 23 de novembro de 2019: “Incêndios, ataques a delegacias e roubo milionário de um banco foram registrados no início deste final de semana, em mais uma noite de violência com novos feridos e detidos em meio à crise social no Chile, informou a polícia”.

O jornal chileno La Tercera publicou em 28 de outubro de 2019, dez dias após o início dos protestos, que fontes de inteligência do governo detectaram a presença de cidadãos cubanos e venezuelanos nos atos violentos dos protestos. Naquele mesmo dia, ele se retratou e se desculpou, dizendo que se tratava de uma informação extra-oficial que a polícia havia repassado ao governo.

No entanto, isso não era novo, disse Lagos, uma vez que a agenda da mídia que cobre delitos, agressões e crimes tem sido o centro da cobertura da televisão no Chile há anos. "Portanto, enfatizar esses aspectos na cobertura das demandas sociais era consistente com essa abordagem dos telejornais das últimas décadas."

Crise de imprensa e credibilidade no Chile

Em uma pesquisa realizada pela Faculdade de Comunicações da Pontifícia Universidade Católica de Chile, 80% dos entrevistados acreditam que os jornalistas não cobriram acontecimentos importantes ou entrevistaram as fontes corretas. “71% disseram que cobriram apenas parte das notícias e 91% disseram não concordar com a afirmação de que os jornalistas foram uma contribuição para a gestão da crise social," disse a jornalista e diretora executiva da Red de Periodistas de Chile, Paulette Desormeaux.

O mesmo estudo apontou que da maioria dos chilenos pesquisados, 80% consomem notícias em redes sociais como Facebook, Instagram e Twitter. “O acesso às notícias no WhatsApp é transversal em termos de gênero e idade," explicou Desormeaux.

O consumidor voltou seu olhar para o Facebook, WhatsApp, Instagram, Twitter, redes utilizadas pelos meios e jornalistas independentes para informar e reportar desde as ruas, disse à LJR Fabián Padilla, diretor e editor geral do site Fast Check CL.

A mídia tradicional fez “vista grossa” aos problemas de direitos humanos que vinham ocorrendo no país desde o início dos protestos, disse Padilla.

Em seu relatório anual de 2020 sobre notícias digitais, o Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo observou que a credibilidade das pessoas na mídia chilena diminuiu substancialmente em 2019, após massivos protestos sociais.

“Em um país com a maior concentração de meios de comunicação da América Latina, os jornalistas são vistos como parte da classe política sem representação e há ressentimento nas ruas com a cobertura jornalística na TV e na imprensa," indica o estudo.

O portal La Voz de los que Sobran publicou recentemente que funcionários do governo do presidente Sebastián Piñera, inclusive o presidente, teriam se reunido com executivos e editores de vários canais tradicionais para coordenar a linha editorial da cobertura dos protestos e mostrar, acima de tudo, a violência.

A falta de diversidade na mídia tradicional chilena, acrescentou Skoknic, é um problema. “Suas linhas editoriais são bastante homogêneas, tendendo para a direita, direita liberal ou direita conservadora e, portanto, esse tipo de fenômeno é visto sob essa perspectiva," explicou.

CNN Chile e Chilevisión, entre os canais de TV, fizeram um esforço para fornecer uma cobertura equilibrada dos eventos durante os protestos, segundo Skoknic.

Como resultado de seus esforços para cobrir os protestos de forma equilibrada, um patrocinador de ambos os canais enviou uma carta para retirar seu anúncio devido ao tipo de cobertura, publicou El Universal de Chile.

“Alertamos os cidadãos que essas práticas antidemocráticas, de quem deseja que a informação jornalística seja controlada por negócios ou interesses políticos, são inadmissíveis diante da justa demanda cidadã que exige uma imprensa democrática, pluralista e com diversidade editorial," disse o Colégio de Jornalistas sobre a ação do patrocinador em seu portal.

Sobre os sites noticiosos, Lagos considerou que Ciper, El Mostrador e Interferencia foram as mídias digitais nativas com a cobertura mais equilibrada dos protestos. “Ciper e Interferencia, enfatizaram exatamente o que a mídia tradicional, especialmente a TV, omitiu: a brutalidade policial, os bastidores da gestão política do governo na crise, etc.," disse ele.

A mídia hiperlocal também ganhou mais relevância com o início das manifestações sociais no país. Houve um aumento do tráfego de mídias hiperlocais como La Voz de Maipú, segundo Lagos, que focou na cobertura da crise em suas comunidades.

Surgimento de mídias alternativas e fact-checking

Segundo Poynter, a desinformação disseminada por meio de serviços de mensagens e plataformas sociais foi uma das consequências mais relevantes da crise política que se desencadeou após a onda de protestos.

Protestas sociales, Chile.

Manifestações sociais no Chile, 2019. (Foto: Cami Urban/REI Chile)

De acordo com a organização norte-americana, em dezembro de 2019 havia no Chile até 17 plataformas ativas de verificação de dados. Entre os meios de comunicação estão Malaespina, REI Chile, Fake News Report, Fast Check CL.

O Fast Check CL, que começou como uma conta do Instagram em 22 de outubro de 2019, tem atualmente cerca de 181 mil seguidores, um endereço na web, uma equipe de oito jornalistas, além de colaboradores, e seu financiamento é baseado em doações. Segundo Padilla, o fundador, o objetivo do site é ajudar as pessoas a lerem informações verificadas diante do caos da desinformação e da falta de credibilidade da mídia.

“Desde 18 de outubro de 2019, os boatos, mensagens virais no WhatsApp desinformando sobre os militares, sobre um possível golpe de Estado, sobre violações dos direitos humanos, sobre centenas de coisas, causaram um choque de desinformação," disse Padilla. Nesse contexto, explicou Padilla, nasceu a Fast Check CL, para combater a desinformação viral e tendo como exemplo as experiências de Chequeado, da Argentina, Full Fact, entre outras.

Mala Espina é outro site de fact-checking que surgiu durante os protestos sociais, a fim de combater a desinformação e documentar essa conjuntura social.

O jornalista Tomás Martínez, editor e fundador da Mala Espina, disse à LJR que nos primeiros quatro meses trabalhou sozinho nas checagens, mas desde abril de 2020 quatro jornalistas e um estagiário ingressaram no grupo de trabalho.

Além dos protestos, Mala Espina também apura dados sobre a pandemia do coronavírus, graças à qual faz parte da rede de verificadores LatamChequea desde abril.

Outra das iniciativas de verificação de dados que alcançou milhares de seguidores foi REI Chile. Este novo meio digital de fact-checking foi criado e é mantido por estudantes universitários que procuraram representar o que estava acontecendo nas ruas, explicou Desormeaux.

REI Chile tem mais de 29 mil seguidores no Instagram e uma equipe de trabalho de 25 pessoas.

“O REI surgiu em 20 de outubro de 2019, dois dias após o início das manifestações sociais. A iniciativa partiu de Kari López, que propôs em um grupo do WhatsApp que pudéssemos nos encontrar com estudantes de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Chile para relatar os eventos que estavam acontecendo no Chile," disse Micaela Marchant, editora geral da REI, à LJR .

O REI foi criado em resposta a um sentimento generalizado de que a mídia tradicional não estava mostrando o que realmente estava acontecendo, disse Marchant, e a ideia do REI era alcançar a informação diretamente, estar na rua, usando suas próprias imagens e critérios editoriais rigorosos.

Atualmente, o formato e a periodicidade das informações mudou. “Decidimos deixar de ter uma cobertura minuto a minuto da rua e passamos a fazer um jornalismo mais digerido, com dados e contexto," disse Marchant.

Reflexão sobre o papel da imprensa

Na opinião da jornalista chilena Paula Molina, os protestos sociais lembraram aos meios de comunicação a importância de trabalhar na rua, de colocar equipes com capacidade suficiente para trabalhar em um “contexto tão volátil e dinâmico," como manifestações e capaz identificar rapidamente os abusos da polícia contra os cidadãos durante os protestos.

“Acho que o que poderíamos aprender com as manifestações é a necessidade de fortalecer as capacidades de reportagem, investigação, checagem de informações, análise de dados: redobrar as ferramentas e o compromisso do jornalismo em buscar a verdade será o melhor antídoto contra a pressão e a imparcialidade," disse Molina à LJR.

A opinião pública, segundo Molina, ainda mais depois das manifestações, exige que a mídia no Chile faça uma reflexão séria sobre as bases de sua credibilidade: "por que o público deve acreditar em nós?"

Segundo Desormeaux, Lagos e Skoknic, dada a situação da imprensa que era atacada cada vez que era advertida nas manifestações, muitos meios de comunicação tradicionais começaram a incluir mais vozes nas semanas após as manifestações. Foram criados programas especiais que incluíam especialistas nos programas matinais - antes destinados apenas para o entretenimento -, lideranças de bairro, organizadores cidadãos, etc.

“Isso abriu um caldeirão de novas vozes na televisão que raramente eram vistas. Lembro-me particularmente da TVN," disse Lagos.

As massivas marchas de protestos sociais no Chile continuaram por um ano, até que o governo cedeu ao pedido principal da população: uma mudança na Constituição Política por maior igualdade de direitos. A votação popular para uma nova Constituição ocorreu em 25 de outubro de 2020 e obteve 78% de aprovação.

Um ano após as manifestações, nasceu o projeto LaBot Documenta. Esta plataforma nasce, de acordo com a descrição do site da LaBot, da ausência de um maior ecossistema de meios de comunicação e jornalistas investigativos no Chile e da necessidade de deixar um registro mais equilibrado das violações de direitos humanos causadas por abusos e repressão policial durante a recente crise social.

Skoknic, junto com seus colegas Andrea Insunza e Paula Molina, lançaram a plataforma LaBot Documenta após o primeiro aniversário das manifestações.

A plataforma já processou mais de 1.500 casos judiciais, que são apresentados como arquivos com uma breve descrição para gerar um banco de dados. Esses arquivos, disse o jornalista, são acompanhados por investigações jornalísticas que analisam alguns padrões de ataques.

Ao mesmo tempo, os três jornalistas criaram um site aberto fact-checking, LaBot Chequea. Ambos os projetos recebem financiamento da Open Society Foundations.

O LaBot Chequea é um bot fechado, como um chat, cujo objetivo é ensinar o usuário a checar as informações.

"Acreditamos que, embora seja muito importante que todos esses pequenos meios de verificação de fatos tenham surgido, a desinformação falsa é sempre mais poderosa e mais rápida," disse Skoknic. “Acreditamos que é importante que os cidadãos tenham ferramentas para que eles próprios aprendam a verificar, duvidar e possam verificar e não acreditar em tudo o que chega pelo WhatsApp”.

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