“Existem projetos que falam de jornalismo e diversidade, mas você olha a cúpula e não tem nenhum negro. A gente presencia muito nesses projetos: ou não tem jornalista negro, ou não tem em posição de decisão.”
A observação é de Marcelle Chagas, fundadora e coordenadora da Rede de Jornalistas pela Diversidade na Comunicação, que tem como missão ampliar a representatividade de jornalistas negros nos meios de comunicação brasileiros. Formada em 2018, incialmente através de um grupo no Whatsapp para compartilhar oportunidades de trabalho entre jornalistas negros, a rede evoluiu para firmar parcerias com empresas de recursos humanos e organizações internacionais. Hoje conta com um banco de dados de mais de 200 jornalistas, os quais recebem mentoria gratuita e são encaminhados para vagas em empresas e outras instituições.
“Já era algo perceptível dentro dos veículos de comunicação a falta de pluralidade. Ao longo da minha trajetória profissional pude perceber que a falta de profissionais de outras etnias nas redações representava um silenciamento de outras narrativas e olhares que poderiam proporcionar uma conexão melhor com a população brasileira,” disse Chagas à LatAm Journalism Review (LJR). “Agora durante a pandemia esses jornalistas sofrem um impacto maior.”
Um desses impactados é a jornalista Thamara Abreu, que ficou desempregada assim que as cidades começaram a fechar como resultado da COVID-19. Ela havia acabado de chegar ao Rio de Janeiro depois de morar dez anos em Brasília. Graças a uma vaga anunciada pela rede, ela se inscreveu num processo seletivo para o Canal Futura, de temática educativa, e desde dezembro trabalha como editora de vídeo.
“Cheguei ao Rio sem saber como as coisas iam acontecer e o grupo me deu um amparo nesse quesito, porque rola conversa, tem rede de apoio e a gente se sente acolhida por serem pessoas negras que estão querendo espaço em lugares majoritariamente de pessoas brancas,” disse Abreu à LJR.
Muitas das oportunidades divulgadas para os membros da rede são voltadas especificamente para jornalistas negros, mas também há aquelas voltadas para o público geral. Foi numa dessas que o jornalista freelancer Renato Costa foi contratado para produzir um relatório para o SOS Mata Atlântica, uma ONG com atuação na área de meio ambiente.
“O edital desta oportunidade apareceu no grupo [online], a gente se inscreveu para concorrer e fomos escolhidos. O edital não tinha nada especificando por ser pessoas negras, a gente ganhou por ter apresentado a melhor proposta,” disse Costa à LJR.
A jornalista Sandra Roza usa a sua própria dificuldade em se colocar no mercado de trabalho para desenhar as parcerias da rede para ampliar a contratação de jornalistas negros. Natural da cidade de Mariana, no interior do estado de Minas Gerais, ela sabe que a distância das grandes cidades é um complicador adicional na disputa por vagas. Na Rede, ela é responsável pelo contato com empresas e outras organizações interessadas em ampliar a diversidade dos seus quadros de profissionais de comunicação.
“Eu trabalho com diversidade e inclusão nas empresas para que elas entendam a necessidade de abrir oportunidades e atrair talentos com origens mais diversas,” disse ela à LJR. “Toda atuação com a gente é voluntária no projeto do grupo, mas a gente está buscando formas de financiamento para ampliar as nossas capacidades".
Mesmo sem remuneração, Roza articulou um um programa de mentoria para profissionais de jornalismo negros e representantes de outros grupos marginalizados. A primeira turma da mentoria termina em agosto, numa parceria com uma consultoria de recursos humanos que também gerencia o banco de vagas e profissionais.
“A maioria dos participantes da rede é de áreas periféricas e do interior, o que muitas vezes é utilizado pelos empregadores como uma justificativa para a falta de representatividade,” disse Chagas. “Nesta capacitação, nosso objetivo é que o jornalista negro desenvolva habilidades ténicas e comportamentais a fim de conseguir diminuir a desigualdade em processos seletivos”, explicou.
Conexões acadêmica e internacional
Para reforçar a necessidade de aumento da representatividade dos profissionais de jornalismo, a Rede de Jornalistas pela Diversidade está desenvolvendo uma pesquisa sobre gênero e raça nas redações dos três maiores jornais tradicionais do Brasil: Folha, O Globo e Estadão. A ideia é entender o tamanho do problema para traçar estratégias para enfrentá-lo com mais eficiência.
Trata-se da segunda edição de uma pesquisa que analisou em 2016 a quantidade de colunistas negros nesses três veículos jornalísticos. Na ocasião, se concluiu que apenas 9% dos articulistas do Globo eram negros; 4% na Folha; 1% no Estadão. Considerando apenas mulheres negras, a situação era ainda pior: 4% no Globo, 1% no Estadão e zero na Folha.
“Isso acaba refletindo o produto final do jornalismo. E no Brasil, 50% da população é negra,” lembra Chagas, acrescentando que esta pesquisa foi uma das motivações que a levou a criar a rede.
De lá para cá, o assunto passou a ser tratado com mais seriedade. A Folha, por exemplo, criou em 2019 uma inédita editoria de diversidade para garantir mais equilíbrio e representatividade na escolha das fontes e especialistas ouvidos pelos repórteres do jornal.
A nova edição do estudo está em fase de levantamento dos dados, ainda sem prazo para conclusão. Ao mesmo tempo, a rede investe na troca de experiências com jornalistas de outros países, integrando a coalizão de jornalistas da diáspora africana.
“Aproveitamos essa oportunidade para estreitar a conversa com jornalistas de outros países. Temos um evento para novembro deste ano sobre os novos caminhos da diáspora africana no Brasil, a fim de discutir uma comunicação mais plural e mostrar o temos feito no país e entender o que é feito no exterior para fomentar a troca de ideias”, disse Chagas.
Discurso importa
Quando ainda estava na faculdade, a jornalista Gabriela Anastácia ouvia de uma professora de telejornalismo que precisaria alisar o cabelo se quisesse trabalhar na TV. Esse foi um dos motivos que a desestimulou a tentar vagas na televisão. Integrante da rede, ela tem consciência do impacto que discursos como esse têm em profissionais de comunicação negros e indígenas.
“Todo mundo que está na faculdade quer trabalhar! Se um professor te fala algo assim, você pode acabar se sujeitando a isso para conquistar o espaço no mercado de trabalho, o que não é certo,” disse Anastácia à LJR.
Através da rede, ela conseguiu uma vaga para atuar no segmento jurídico, onde ela pode aplicar a sua expertise em dados e redes sociais.
“Quando a gente se percebe e se entende negro é libertador, porque a gente já quer mais que se encaixar, a gente quer o nosso espaço. Estar num grupo com o de Jornalistas Pretos faz com que a gente entenda que não está sozinho”.