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Um plano de proteção para jornalistas na Guatemala que não sai do papel

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  • 27 abril, 2022

Por Luis Ángel Sas*

Este é o terceiro artigo de uma série sobre mecanismos de proteção para jornalistas na América Latina.**

Third Seal

(Illustration: Pablo Pérez - Altais)

Em 8 de março de 2022, a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michele Bachelet, apresentou um relatório sobre a Guatemala que alertava para um clima de agressão e hostilidade contra jornalistas.

O relatório dava conta de pelo menos 116 denúncias de restrições à liberdade de expressão documentadas pela Associação de Jornalistas da Guatemala (APG) de janeiro a outubro de 2021 e apontava a necessidade de fortalecer a proteção dos jornalistas.

Paradoxalmente, há exatamente uma década, no mesmo fórum, a Guatemala havia prometido criar um plano para proteger os trabalhadores da imprensa dos crescentes ataques.

Isso aconteceu em 2012 e até hoje o plano não se concretizou.

O mecanismo de proteção foi proposto em decorrência de agressões a jornalistas nos anos anteriores a 2012. Entre 2002 e 2010, foram registradas 489 denúncias de jornalistas e quatro assassinatos de trabalhadores da imprensa.

Mas, ao mesmo tempo, a Guatemala tinha um histórico de violência contra jornalistas, um legado da guerra civil que durou de 1960 a 1996 e deixou mais de 200 mil mortos e 45 mil desaparecidos. Jornalistas e comunicadores não escaparam dessa violência e, segundo dados da organização de direitos humanos Grupo de Apoio Mútuo (GAM), pelo menos 342 jornalistas foram mortos e 126 continuam desaparecidos.

Os ataques a jornalistas continuaram mesmo após os acordos de paz. Um dos casos mais notáveis ​​foi o assassinato de Rolando Santiz, principal repórter do telejornal "Telecentro Trece", em 1º de abril de 2009. Santiz foi morto a tiros por dois homens que atiraram nele mais de 25 vezes no centro da Cidade da Guatemala. O cinegrafista Juan Antonio De León também ficou gravemente ferido no ataque.

Em 2011, outro assassinato confirmou a deterioração das condições de segurança dos jornalistas. Em 19 de maio, Yensi Roberto Ordoñez Galdamez foi assassinado no departamento de Escuintla, 148 quilômetros ao sul da capital guatemalteca. Ordoñez tinha um programa na televisão local e havia dito à sua família que havia recebido uma ameaça de morte. Ele saiu de casa em uma quarta-feira. No dia seguinte, ele foi encontrado dentro de seu veículo com facadas no pescoço e no peito.

A primeira reação das autoridades ao clima de ataques contra jornalistas deveu-se à questão do processamento dos crimes e em 2011 a procuradora-geral Claudia Paz y Paz ordenou a criação de uma unidade específica contra crimes contra jornalistas vinculada à Procuradoria de Direitos Humanos.

Porém, mais tarde ficou claro que o problema tinha que ser atacado a partir da prevenção, buscando evitar que os ataques ocorressem.

Compromisso do governo

Em outubro de 2012, o Governo da Guatemala se comprometeu a desenvolver um Programa de Proteção a Jornalistas para prevenir e evitar abusos contra a imprensa no país. Era o primeiro ano do governo do general aposentado Otto Pérez Molina.

Havia um clima favorável. Pérez Molina, que havia sido protagonista do golpe militar que desencadeou a guerra civil nos anos 1980 e depois liderou o partido da oposição, construiu uma imagem conciliadora e afável com a imprensa. Sua vice-presidente, Roxana Baldetti, também era próxima dos jornalistas, longe de sua imagem de 1993, quando trabalhou na Secretaria de Comunicação do governo de Jorge Serrano Elías e tentou censurar a mídia.

Em 2012, com dez meses de governo Pérez Molina, o país foi avaliado pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e assumiu o compromisso de criar um programa de proteção aos jornalistas.

Um ano depois, em 28 de novembro de 2013, Pérez Molina e Baldetti assinaram o acordo para iniciar o processo de criação.

Quase uma década depois, os jornalistas guatemaltecos ainda não contam com um mecanismo de proteção. Os governos sucessores de Pérez Molina descumpriram a promessa. A causa é um clima crescente de desconfiança entre autoridades e jornalistas.

O começo

A desconfiança estava lá desde o início. Após a assinatura do acordo para estabelecer o mecanismo de proteção, a responsabilidade de desenhá-lo e colocá-lo em prática coube a Francisco Cuevas, secretário de Comunicação do governo Pérez Molina.

Cuevas teve que coordenar outras organizações que participariam do processo, como o Ministério do Interior, encarregado da Polícia; a Comissão Presidencial de Direitos Humanos, a Ouvidoria de Direitos Humanos e o Ministério Público (MP) com a procuradoria de crimes contra jornalistas, cuja criação foi ordenada em 2011.

Entre as primeiras decisões estava a criação de uma mesa de alto nível composta por um representante de cada instituição com o apoio do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU e da UNESCO. Uma mesa técnica também seria formada para avançar na análise da proposta.

As primeiras reuniões foram realizadas em janeiro de 2014. Algumas das pessoas que participaram das reuniões indicaram que sob o comando de Cuevas a criação do plano não avançou. Havia até quem acreditasse que ele não tinha interesse em seguir em frente.

Apesar de ser ele próprio jornalista, correspondente da emissora de televisão mexicana Televisa na América Central há mais de 15 anos, Cuevas não tinha a confiança de seus colegas. Em 2014, um relatório do Comitê para a Proteção dos Jornalistas indicou que os jornalistas guatemaltecos apontavam uma desconfiança específica com Cuevas, não com todo o aparato governamental guatemalteco.

No final de 2014, Cuevas foi destituído de seu cargo e nomeado cônsul da Guatemala em Los Angeles. Em seu lugar veio Karla Herrera, também jornalista responsável pela comunicação do Ministério do Interior.

Foi a partir dessa mudança que a elaboração do plano de proteção começou a avançar. No entanto, ao longo dos meses os erros que enterraram a iniciativa viriam à tona.

Illustration depicting different implementations of a protection mechanism

(Illustration: Pablo Pérez - Altais)

O avanço

Inicialmente, o esforço para avançar em um mecanismo de proteção foi intenso. Entre 2014 e 2015, foram realizadas quase 90 reuniões para discutir o modelo que mais se adequasse ao país. As autoridades confiaram nos programas de México e Colômbia para dar o pontapé inicial e moldá-lo.

Mas as reuniões para criar o plano de proteção aos jornalistas tiveram um setor ausente: os próprios jornalistas. Herrera, que esteve envolvida na iniciativa desde que integrava a equipe de comunicação do Ministério do Interior, disse que as primeiras reuniões foram para criar o quadro conceitual e organizativo.

“Aqui se discutiu o marco legal para sua criação, os recursos financeiros, humanos e tecnológicos”, disse ela à LatAm Journalism Review (LJR).

No entanto, ela admitiu que foi um erro não ter compartilhado com os jornalistas um plano que foi criado para protegê-los, porque faltava a contribuição dos trabalhadores da imprensa em questões cruciais.

“Nós cometemos esse erro. Não levamos mais [o projeto] para o terreno. Ele não se socializava com jornalistas que estavam na linha de frente. Aqueles que podem contar 'da rua'. Aqueles que saem todos os dias em busca de informações”, disse Herrera.

De acordo com Herrera, os jornalistas ficaram de fora de responder a perguntas-chave, como quem deveria ser considerado jornalista, quem estava sujeito à proteção ou em quais autoridades os trabalhadores da imprensa confiavam.

Para criar o plano de proteção aos jornalistas, o governo contratou Margarita Castillo, ex-diretora do Sistema Penitenciário (órgão responsável pelas prisões do país), que foi a consultora responsável pela elaboração do plano.

Castillo também admite que a iniciativa deveria envolver jornalistas, mas atribui esse erro à falta de orçamento. Ela disse que as reuniões foram feitas tentando convocar mais pessoas, mas que o orçamento para montar mesas de trabalho era limitado.

“Foi uma fraqueza, mas não havia recursos suficientes”, disse ela à LJR.

Mas, segundo Castillo, o problema também veio do outro lado, dos mesmos jornalistas que não quiseram participar. “Os jornalistas não confiavam no governo. Então preferiam não fazer parte disso”, disse ela.

Falta de organização

Um dos problemas que existe na Guatemala é que os jornalistas não estão organizados em uma instituição, explicou o jornalista Marvin Del Cid, que teve que deixar o país em 2021 depois de ter sido denunciado criminalmente, assediado nas redes e vítima de vigilância ao realizar reportagens sobre o presidente do país, Alejandro Giammattei.

“Descobrimos que estavam fazendo um plano de proteção, mas nunca fomos levados em conta. Não sabíamos muito sobre a iniciativa”, explicou à LJR.

O plano foi apresentado a várias organizações que afirmam representar jornalistas, embora suas filiações sejam muito diferentes.

A Associação Guatemalteca de Jornalistas representa repórteres e editores, embora nem todos os meios de comunicação do país. A Câmara de Jornalismo da Guatemala é um grupo de empresários, advogados e publicitários, mas não dos jornalistas que trabalham para eles.

Propostas para o plano foram apresentadas a ambos os grupos, mas estas e outras organizações as rejeitaram, alegando que o governo buscaria regular os meios de comunicação.

Em uma reunião em março de 2022 após vários ataques contra a imprensa, o portal Plaza Pública perguntou a mais de 70 jornalistas na ativa se eles sabiam das propostas de um plano de proteção. Apenas um disse que sim.

Crise política

O andamento do plano foi afetado por fatores alheios aos jornalistas. Primeiramente, pela prisão em setembro de 2015 do ex-presidente Otto Pérez Molina e da vice-presidente Roxana Baldetti, acusados ​​de atos de corrupção. Isso interrompeu temporariamente as mesas de trabalho.

Em seguida porque o sucessor de Pérez Molina na presidência, Jimmy Morales, nunca aprovou o acordo para dar continuidade ao plano. Após a posse de Morales como presidente, o produtor de televisão Alfredo Brito foi nomeado secretário de Comunicação e teve que continuar elaborando o plano.

Margarita Castillo, responsável por este processo, disse que o novo governo deveria ter feito um acordo para continuar com o plano. Em 2018, uma minuta foi enviada aos membros da comissão técnica, mas não foi aprovada pelo Presidente.

Desde então, o plano está suspenso. Brito foi consultado pela LJR para saber por que o plano não avançou. Solicitou que as perguntas fossem enviadas por escrito, mas não respondeu.

Desde aquele ano, o plano foi paralisado. Del Cid acredita que se o projeto tivesse sido compartilhado com os jornalistas, eles teriam pressionado para que avançasse, mas como o veem como um estranho, ninguém questionou por que ele está parado.

Birds-eye-view of Guatemala City

View of Guatemala City from above

Duplo crime

Em 10 de março de 2015, enquanto um grupo de jornalistas conversava em um parque na cidade de Mazatenango, 160 quilômetros ao sul da capital guatemalteca, dois homens armados atiraram contra os comunicadores. Os jornalistas Danilo López do jornal nacional Prensa Libre e Federico Salazar da rádio Nuevo Mundo morreram no ato.

Este fato provocou a união dos jornalistas do país que saíram para protestar exigindo justiça para López e Salazar, além de proteção. Em 2016, a antiga Comissão Internacional Contra a Impunidade (CICIG) e o MP apresentaram avanços na investigação do crime contra os comunicadores. O então deputado recém-eleito Julio Juárez foi preso e acusado de pagar US$ 3.200 aos assassinos. As autoridades dizem que Juárez trabalhou em conjunto com políticos locais e agentes da Polícia Nacional Civil (PNC).

Em 18 de março de 2022, o julgamento contra Juárez pela morte dos dois jornalistas foi reativado. Pelo menos um agente da PNC que participou do crime tornou-se um colaborador efetivo e testemunhou como observava os jornalistas antes de serem mortos.

Embora isso tenha enchido de esperança os jornalistas, também demonstrou como é o próprio Estado que atenta contra eles e seu trabalho. De 2011 a 2020, 820 denúncias foram feitas por jornalistas, segundo relatório da Artigo 19. 57% foi por ameaças, 23% por coação e 11% por roubo. Entre esses dados há um que preocupa os comunicadores. Há 46 denúncias de abuso por parte das autoridades. A maioria cometida por agentes de segurança do Estado, que são responsáveis ​​por fornecer segurança aos comunicadores.

O plano de proteção a jornalistas está parado. Nem o governo está preocupado com o progresso do plano e nem os jornalistas acreditam nele. Investigações jornalísticas mostraram como assessores do governo do presidente Alejandro Giammattei criaram contas nas redes sociais para desacreditar os jornalistas. O mesmo teria ocorrido com funcionários do Congresso guatemalteco que usaram seus funcionários para atacar jornalistas quando publicavam algo que os incomodava.

O único avanço real nos últimos anos foi a criação de uma promotoria de crimes contra jornalistas inaugurada em 10 de dezembro de 2019, mas esta é para a acusação de crimes. O plano de prevenção não tem nenhum avanço.

Del Cid não tem esperança de que um mecanismo de proteção aos jornalistas avance.

“Eles (o Governo) não têm interesse e nós não confiamos. Então não há futuro para algo andar, pelo menos neste governo”, disse.


*Luis Ángel Sas é jornalista do portal Plaza Pública na Guatemala.

**Este é o nono artigo de um projeto sobre segurança de jornalistas na América Latina e Caribe. Este projeto LatAm Journalism Review é financiado pelo Fundo Mundial de Defesa da Mídia da UNESCO.

Leia outros artigos do projeto neste link.

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