"O jornalismo é uma profissão muito sofrida e que acarreta muitos danos colaterais. [Os jornalistas] vão deixando pedaços de sua saúde no caminho". A avaliação é da mexicana Luisa Ortiz, após realizar 100 entrevistas com jornalistas de todo o mundo sobre sua saúde mental e bem-estar emocional relacionados à profissão
"O custo de ser jornalista é altíssimo em nível psíquico, emocional, familiar e físico", afirmou Ortiz à LatAm Journalism Review (LJR). "[Os jornalistas são] pessoas apaixonadas, viciadas em adrenalina, muito comprometidas e até kamikazes, que exercem um trabalho de amor".
A partir de uma bolsa de estudos de jornalismo JSK na Universidade de Stanford, realizada entre setembro de 2022 e junho de 2023, Ortiz desenvolveu o Projeto Jornalístico "Condição Humana".
Luisa Ortiz apresentando "Condición Humana" na Casa Refugio Citlaltépetl, na Cidade do México. (Foto: Acervo de Luisa Ortiz)
Trata-se de uma peça teatral escrita, dirigida e atuada por ela sobre jornalismo. Seu objetivo é "abrir a conversa sobre o que torna os jornalistas felizes, o que os fere, e, sobretudo, do que precisam de ajuda como profissionais", explicou. Além disso, busca "gerar empatia e compreensão entre as pessoas que desejam cultivar um relacionamento mais longo, saudável e duradouro com o jornalismo".
A encenação consiste em uma série de monólogos que Ortiz já apresentou na Califórnia, Buenos Aires e Cidade do México, e que em abril levará a Berlim. Lá, a mexicana narra as histórias dos jornalistas, como se relacionam com seu trabalho e com que feridas precisam lidar.
As feridas na saúde mental e no bem-estar emocional que Ortiz identificou em jornalistas, e que aparecem nos monólogos, são ansiedade, depressão, alienação ou um sentimento de não sentir nada.
Sobre as feridas físicas que o jornalismo deixa naqueles que o exercem, ela relatou que nas conversas com jornalistas surgiram "problemas de coluna, pescoço, punhos; muitos problemas gastroenterológicos; problemas de próstata e uterinos; diabetes e hipertensão".
Além disso, Ortiz reconheceu que esses problemas de saúde são pouco discutidos entre os colegas e que "o corpo é uma das ferramentas de trabalho que o jornalista trata muito mal". E acrescentou: "Se fossem trabalhadores da construção civil, usariam luvas e capacete, mas no jornalismo há muito pouca atenção e cuidado com o corpo".
Outra ferida identificada por Ortiz está relacionada ao "trauma compartilhado" de ser jornalista. Sobre isso, ela disse: "O jornalista constantemente cheira a carvão, apaga incêndios, é como um bombeiro, isso o faz ser um bom jornalista". Ela também destacou o "tema relacional", ou seja, "o dano que os jornalistas causam nas redações, o bullying, os maus tratos, as energias ruins e o contexto brutal em que o jornalismo vive hoje".
Ortiz levou três meses para definir a pergunta básica das 100 entrevistas que realizou com jornalistas de todo o mundo: "Como é estar no seu lugar?".
"Essa pergunta implica movimento, agência, ação, desubjetiviza o jornalista que odeia falar de si mesmo e permite uma reflexão profunda sobre sua pessoa", disse.
Ortiz, de 52 anos, se considera uma "profissional multifacetada". Ela foi diretora e gerente editorial de meios digitais, é doutora em filosofia política e fundou três organizações. Uma delas é a Vita Activa, uma linha de apoio a mulheres e pessoas LGBTIQ+, jornalistas, ativistas e defensores dos direitos de gênero, do trabalho, da terra e da liberdade de expressão.
Ela contou que para criar a peça teatral "Condição Humana" se baseou em "Os Monólogos da Vagina" de V Ensler (antes Eve), que pergunta a centenas de mulheres qual é a relação delas com suas vaginas. Ortiz faz o mesmo com os jornalistas, perguntando sobre sua relação com o jornalismo.
Cada monólogo, segundo Ortiz, tem um tema principal ou "ferida" que aflige os jornalistas entrevistados. O primeiro é sobre depressão, o segundo sobre falta de pertencimento, o terceiro sobre alienação (ou não sentir nada), o quarto sobre ansiedade, o quinto sobre a morte e o sexto sobre princípio e dúvida.
Para alimentar os monólogos, ela elaborou mais duas perguntas que fez aos jornalistas entrevistados: O que impede você de fazer seu trabalho bem? e Qual é a ferida que o jornalismo lhe causou e em que parte do seu corpo está?
"Tenho muito carinho pelo jornalismo, parece que é a única coisa que nunca me decepcionou na vida", diz Ortiz em um dos monólogos. Em entrevista, ela considerou que "os jornalistas adoram o jornalismo e adoram falar sobre seu trabalho. Tenho horas de conversa gravadas falando e falando sobre isso".
O fio condutor das entrevistas foi que os entrevistados exercem o jornalismo e também amam o que fazem.
Luisa Ortiz apresentando "Condición Humana" na Casa Refugio Citlaltépetl, na Cidade do México. (Foto: Acervo de Luisa Ortiz)
"Pensei que esse trabalho era sobre a dor, mas não, é sobre o amor que as pessoas colocam no jornalismo todos os dias. É um trabalho de amor. Todo mundo diz isso à sua maneira e com suas palavras", disse Ortiz.
Para a seleção dos entrevistados, ela começou inicialmente por pessoas próximas. Depois, criou um mapeamento interseccional que abrangeu entrevistados de diferentes regiões, idades, funções dentro da profissão e que tivessem abertura para falar. Logo, os próprios jornalistas começaram a contatá-la para conversar, tendo sido avisados por outros. Ela entrevistou jornalistas que estão no final de suas carreiras e outros que estão começando. As entrevistas foram feitas virtualmente, porque, segundo ela, essa distância proporcionou uma certa segurança aos entrevistados.
Cada um dos monólogos pertence a uma pessoa, mas não se pode saber quem é devido à proteção da identidade dos jornalistas que exercem a profissão atualmente, contou Ortiz.
"Há um aceno para cada pessoa, por exemplo, se eu usar uma camisa branca em um monólogo é porque essa pessoa sempre usa uma camisa branca. Cada uma das pessoas leu sua peça, editou, deu seu consentimento e se entregou ao processo".
A peça Human Condition foi produzida por María Zurita Ontiveros,. O dramaturgo Branislav Kakovljevic e a coreógrafa Aleta Hayes, ambos professores em Stanford, apoiaram o processo de criação e encenação da peça.
"Aprendi que nenhum meio de comunicação merece colocar em risco a estabilidade emocional, o bem-estar emocional, ou algo do tipo. Como jornalistas, precisamos de apoio", relatou Ortiz em um dos monólogos.
Isso acontece porque a responsabilidade dos meios de comunicação é determinante para a saúde dos jornalistas.
"O clima de trabalho nos meios de comunicação é insalubre", disse em entrevista à LJR Nicole Martin, jornalista e diretora executiva da Vita Activa. "Há uma responsabilidade dos meios de comunicação e de quem os dirige em continuar promovendo esse ambiente tóxico para a saúde mental, onde não se considera nenhum tipo de pausa, promove-se a competição extrema e há uma ode à produtividade".
Durante 2023, a Vita Activa acompanhou 125 casos, fornecendo primeiros socorros psicológicos e digitais online. Destes, 40% são jornalistas, 53% têm menos de 30 anos e 91% são mulheres, de acordo com o último relatório anual da organização.
As principais razões pelas quais as jornalistas recorrem à Vita Activa são para lidar com as violências e crises emocionais que sofrem devido ao exercício da profissão, segundo Martin. Quando se trata de violência digital, ela explicou que envolve "assédio online, hacking de contas, divulgação de imagens íntimas sem consentimento, perfis falsos, suplantação e roubo de identidade, acesso ou controle não autorizado de informações, monitoramento e perseguição, e ataques à segurança digital".
A violência digital tornou-se um obstáculo na carreira das jornalistas. De acordo com dados da Unesco e do ICFJ de 2022, 73% das jornalistas mulheres em todo o mundo sofreram violência digital relacionada ao trabalho. Por sua vez, a International Women Media Foundation afirmou no ano passado que uma em cada três mulheres considerou deixar seu trabalho devido ao assédio digital.
Quanto às crises emocionais pelas quais as jornalistas recorrem à Vita Activa, Martin disse que estas envolvem "estresse, ansiedade, tristeza, depressão, pânico e luto. Também pode ser devido a uma perda de controle emocional, problemas de trabalho que causam uma crise emocional e burnout ou síndrome de esgotamento".
Para a diretora executiva da organização, "seria muito importante que as jornalistas tivessem o número da Vita Activa salvo em seus celulares, porque o apoio inicial dos primeiros socorros psicológicos é fundamental quando você acaba de sofrer o impacto de uma notícia, um acidente ou vivenciou violência digital".
