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Imprensa também é responsável por crise da democracia e por eleição de Bolsonaro e Trump, diz Eliane Brum, ganhadora do prêmio Cabot

A imprensa precisa fazer um mea-culpa sobre o seu papel na eleição de presidentes "neofascistas" como Jair Bolsonaro e Donald Trump, afirma a jornalista, escritora e documentarista brasileira Eliane Brum, uma das ganhadoras dos Prêmios Maria Moors Cabot de 2021.

"Sim, há o fenômeno da pós-verdade, da autoverdade, das fake news etc. Mas a imprensa também perdeu credibilidade junto à população, por suas próprias escolhas editoriais, comerciais e políticas, bem pouco transparentes. E porque, em vários países e também no Brasil, grande parte da população não se sentia representada pela cobertura da imprensa nem se reconhecia nela. Sem enfrentar essas contradições e responsabilidades, será difícil avançar num momento tão complexo e difícil como o atual", disse ela, em entrevista à LatAm Journalism Review (LJR).

Segundo Brum, "as forças neofascistas" se aproveitaram dessa crise de credibilidade para enfraquecer a imprensa e a democracia. "Mas só puderam forjar a indústria de 'fatos alternativos' porque a crise de credibilidade e de representação já estava lá", explica.

Na entrevista, Brum fala também sobre as vezes em que sofreu assédio sexual e discriminação nas redações brasileiras, sobre a experiência de ser mãe aos 15 anos e a falta de apoio no trabalho, além da decisão de se mudar, em 2017, da maior metrópole brasileira, São Paulo, para Altamira, um município violento no interior da Amazônia.

Os prêmios Cabot são concedidos pela Columbia Journalism School dos Estados Unidos e "homenageiam jornalistas e organizações de notícias pela excelência de carreira e cobertura do Hemisfério Ocidental que promova o entendimento interamericano". Neste ano, pela primeira vez desde a sua fundação em 1938, todas as vencedoras são jornalistas mulheres. Elas vão receber medalhas de ouro e um honorário de US$ 5.000. A cerimônia de entrega dos prêmios é em 12 de outubro.

A jornalista Eliane Brum

A jornalista, escritora e documentarista brasileira Eliane Brum, uma das ganhadoras dos Prêmios Maria Moors Cabot de 2021. Foto: Azul Serra

LatAm Journalism Review: Neste ano, todas as ganhadoras dos prêmios Cabot são mulheres. Quais desafios você enfrentou por ser uma jornalista mulher trabalhando na América Latina e no Brasil? 

Eliane Brum: O ambiente das redações de jornal costumava ser – e em muitos casos ainda segue sendo – muito machista. Assédio sexual e moral com relação às mulheres era encarado como “normal”. Sofri assédio sexual em diferentes momentos, por parte de homens em posições de chefia, nos lugares em que eu trabalhei, mas reagi com contundência todas as vezes e não sofri represálias por isso, como aconteceu com outras colegas em outros contextos. Também sofri assédio no sentido das piadas machistas, dos comentários misóginos e das “cantadas” e “brincadeiras”. Percebi nos últimos anos que, nesses casos, eu mesma havia introjetado a “normalidade” do anormal e do inaceitável, convivendo com esse tipo de assédio como se não fosse absurdo. Neste sentido, sou muito grata à novíssima geração de feministas que levou adiante a luta de suas mães, avós e bisavós, riscando o chão e estabelecendo limites claros, em movimentos como “Primeiro Assédio”, “Ni Una a Menos” e “Me too”.

Outra forma de assédio moral corriqueiro é, quando você reage ao inaceitável, ser tachada de “louca” ou “descontrolada”, ser alvo de comentários como “deve estar na TPM” ou “é mal comida”. Ou, então, é chamada de “puta” ou “vagabunda”. Isso não acontece só dentro das redações, mas também fora. Em 2011, num sábado pela manhã, eu estava conversando com meu marido e minha filha na sala de casa quando uma mensagem entrou no meu celular. Um amigo me avisava que o pastor Silas Malafaia, uma das lideranças evangélicas neopentecostais do Brasil, agora apoiador de Jair Bolsonaro, mas antes de outros governos, me chamava de “tramp” numa entrevista que deu ao The New York Times. Malafaia não gostou de um artigo que eu escrevi sobre os evangélicos e reagiu me chamando de vagabunda num dos maiores jornais do mundo.

Com relação ao trabalho de reportagem, uma vez fui preterida para uma cobertura de guerra com a explicação de que, profissionalmente, eu era a melhor escolha, mas, por ser mulher, seria muito perigoso. Decidiram então mandar um homem. Respondi que só entendia aquela decisão se o repórter homem escolhido precisasse escrever a reportagem com o pinto. Respondi à discriminação, mas isso não mudou a escolha dos chefes e, portanto, sofri a discriminação, que me tirou uma oportunidade importante.

Uma outra questão é a falta de apoio às mulheres trabalhadoras. Tive uma filha aos 15 anos de idade e me tornei uma mulher chefe de família, como acontece com tantas no Brasil e em toda a América Latina. Meus pais me apoiaram, e muito, mas viviam a seis horas de Porto Alegre, onde trabalhei como jornalista por 11 anos, antes de ir para São Paulo. Tive que fazer malabarismos para conciliar trabalho e cuidados com a minha filha, depois que ela deixava a escola, porque não havia nenhum tipo de suporte ou apoio. Às 8h da manhã, quando iniciava no jornal, eu já tinha pegado quatro ônibus e caminhado outro tanto desde as 5 horas da manhã. Deixava minha filha por cima do muro da escola, onde ela ficava esperando o porteiro aparecer, sozinha e presa dentro dos muros, porque o horário do jornal não admitia mudanças.

Outras vezes, ficava desesperada porque tinha ido cobrir uma enchente numa região a três horas da cidade ou estava cobrindo um motim num presídio e não conseguiria voltar a tempo de buscar minha filha na escola. Lembro de uma cena, com água pela cintura, colada num telefone público, porque ainda não existiam celulares, tentando achar alguma amiga solidária para buscar minha filha na escola, porque eu só conseguiria voltar à cidade à noite e ainda teria que escrever a matéria. Sabíamos, sem que precisasse ser dito, que se precisássemos faltar porque um filho estava doente ou se recusássemos uma pauta porque não voltaríamos a tempo de buscar um filho na escola ou se precisássemos de um horário diversificado, seríamos preteridas nas pautas mais interessantes ou mesmo demitidas. Ao mesmo tempo, não havia creches nem nenhum tipo de apoio. Ainda hoje, mesmo que não seja dito, alguns chefes buscam investigar se há chance de gravidez antes de contratar uma mulher. A discriminação encontra muitos caminhos, alguns explícitos, outros mais sutis, mas ela segue muito presente.

Também é fundamental percebermos que, se as mulheres estão conquistando mais espaço nas redações e no jornalismo, como acontece em diferentes áreas da sociedade, isso não ocorre porque há uma percepção de dentro para fora. Mas sim o inverso. A imprensa muda muito lentamente pela pressão que vem de fora. E, salvo exceções, no geral a imprensa costumava ser – e segue sendo – bastante conservadora. E, com frequência, também machista, misógina, transfóbica e racista. Se há muitas mulheres brancas nas redações da imprensa brasileira, raramente em posição de comando, é obrigatório perceber que ainda são raras as mulheres negras e as mulheres trans.

As mulheres não são um genérico. As mulheres negras sofrem muito mais discriminação do que as brancas, por exemplo. Num país como o Brasil, onde o racismo é estrutural, as mulheres negras têm muitas dificuldades de acesso à educação e são discriminadas no mundo do trabalho não só por serem mulheres, mas também por serem pretas. São também as que mais morrem de parto, as que mais enterram filhos por violência, as que moram em casas e regiões mais insalubres e sem saneamento básico. E também as que menos chegam às redações da imprensa. Há um longo caminho até a equidade de gênero e de raça em nossos mundos.

LJR: Nos últimos anos, a situação dos jornalistas e da imprensa no Brasil se tornou mais difícil. Qual é a sua visão do jornalismo no país para os próximos anos?

EB: Acho que é importante levarmos em conta que a imprensa, no geral, também é responsável pela crise das democracias e pela eleição de neofascistas como Jair Bolsonaro e Donald Trump, entre outros. Sim, há o fenômeno da pós-verdade, da autoverdade, das fake news etc. Mas a imprensa também perdeu credibilidade junto à população, por suas próprias escolhas editoriais, comerciais e políticas, bem pouco transparentes. E porque, em vários países e também no Brasil, grande parte da população não se sentia representada pela cobertura da imprensa nem se reconhecia nela. Sem enfrentar essas contradições e responsabilidades, será difícil avançar num momento tão complexo e difícil como o atual.

As forças neofascistas perceberam essa crise de credibilidade e a usaram para fragilizar a imprensa e, com a imprensa, a democracia. Mas só puderam forjar a indústria de “fatos alternativos” porque a crise de credibilidade e de representação já estava lá. No enfrentamento de déspotas eleitos como Bolsonaro, parte da imprensa está recuperando sua credibilidade. Mas, como as responsabilidades não foram assumidas nem propriamente enfrentadas, há recaídas monumentais que só apontam que o problema é muito anterior e muito mais embaixo. Em 29 de maio, por exemplo, centenas de milhares de brasileiros ocuparam as ruas do país para pedir o impeachment de Bolsonaro, gritando “Fora Bolsonaro” e “Bolsonaro Genocida”. No dia seguinte, a manchete de dois dos maiores jornais do Brasil ignorava o acontecimento. Ou seja: ignorava centenas de milhares de brasileiros pedindo o impeachment do presidente. Em vez disso, a manchete principal de um deles foi “o reaquecimento do PIB” e, do outro... “turismo”. Como então recuperar credibilidade junto ao leitor?

Também neste ano, de crise tão profunda, a Agência Pública, uma agência independente de jornalismo investigativo, fez uma reportagem brilhante, com investigação de alto nível, sobre o fundador de um dos principais grupos de varejo do país. Mostrava que Samuel Klein, das Casas Bahia, um ícone do mercado no Brasil, teria estuprado e abusado de meninas pobres menores de idade. A reportagem foi ignorada pela maior parte do que se chama “grande imprensa” ou “imprensa tradicional”. Como então recuperar credibilidade junto ao leitor?

Faço essa longa ressalva porque acredito muito profundamente no papel fundamental da imprensa para uma democracia que mereça esse nome e sou apaixonada pela reportagem como documento sobre a história em movimento. A imprensa precisa ser melhor, mais honesta e mais inclusiva para recuperar sua credibilidade e os imensos desafios do nosso tempo. E cada um de nós tem um papel nesse caminho.

Hoje, há uma parte da população que não lê, não ouve e não assiste nada que for produzido pela imprensa. Não há sequer conflito, porque essa parte da população simplesmente ignora a imprensa, optando por escolher seus próprios fatos, como se isso fosse possível. Sabemos que a negação da realidade enfrenta os limites da própria realidade. Assim, a única maneira de enfrentar a crise da imprensa é fazendo o melhor jornalismo possível, com respeito profundo aos fatos e às pessoas, enfrentando as contradições e sendo transparentes com relação aos limites do jornalismo.

LJR: Em 2017, você se mudou de São Paulo, a maior metrópole brasileira, para uma cidade no interior da Amazônia, Altamira, no Pará. Agora, cerca de quatro anos depois, como essa mudança afetou o jornalismo que você faz? Como avalia sua decisão atualmente? 

EB: Eu me mudei de São Paulo para Altamira em agosto de 2017 para ser coerente com aquilo que acredito como jornalista e como pessoa vivendo nesse momento limite, exposto pela emergência climática e pela sexta extinção em massa das espécies, ambas provocadas por ação de uma parcela dos humanos. Por tudo o que estudei e investiguei como jornalista e pelo meu aprendizado de mais de 20 anos cobrindo as várias Amazônias (porque elas são muitas), me parece necessário uma diferente compreensão do que é centro e do que é periferia. Me parece que os suportes naturais de vida, como os oceanos e as florestas tropicais, devem ser tratados como centros do mundo porque efetivamente são. As prioridades hoje estão deslocadas, mas precisamos recolocá-las e realocá-las para sermos capazes de enfrentar os desafios inéditos desta época.

Como jornalista brasileira, nada me parece mais essencial do que cobrir o que acontece na maior floresta tropical do mundo, que está chegando aceleradamente ao ponto de não retorno. Pesquisas recentes mostraram, inclusive, que partes da floresta já estão emitindo mais carbono do que absorvem, o que é uma notícia terrível para quem se preocupa em barrar a nossa própria extinção. Assim, se eu defendo que a Amazônia é centro – e não porque tirei isso da minha cabeça, mas porque é o que minha apuração jornalística me aponta –, como então poderia seguir cobrindo a Amazônia desde São Paulo?

Me mudei para Altamira, uma das cidades mais violentas da Amazônia e um dos epicentros da destruição, para poder ver o planeta desde a Amazônia. Esse deslocamento que defendo como conceito e que fiz com meu próprio corpo transformou profundamente a minha forma de compreender a floresta, o planeta e a mim mesma. Isso melhorou e ampliou a profundidade do meu jornalismo, porque não sou mais uma “enviada especial” à Amazônia. Posso, eventualmente, ser uma enviada especial a São Paulo, Brasília ou Washington. Mas investigo a Amazônia desde dentro e olho o mundo a partir dela. Essa escolha mudou inclusive a minha própria linguagem e a minha forma de habitar o planeta. É claro que houve um grande custo pessoal, mas também houve um grande ganho pessoal. Esse percurso jornalístico está contado num livro que será lançado no final deste mês, no Brasil, pela Companhia das Letras, e nos Estados Unidos em 2023, pela editora Graywolf.

*Nota do editor: Rosental Alves, presidente do conselho do Cabot, é fundador e diretor do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, que publica a LatAm Journalism Review.

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