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Jornalistas que criticam governador do Mato Grosso enfrentam processos e investigações; STF intervém

O dia raiava em 6 de fevereiro deste ano quando, pouco antes das 6h, batidas insistentes na porta de casa despertaram o jornalista Alexandre Aprá em Cuiabá, no Mato Grosso. Agentes da Polícia Civil cumpriam um mandado judicial de busca e apreensão assinado pelo juiz João Bosco Soares da Silva, do Núcleo de Inquéritos Policiais (NIPO) após o governador do estado, Mauro Mendes do partido União Brasil, entrar com uma representação numa delegacia especializada em crimes digitais. 

“Os policiais recolheram aparelhos eletrônicos, computadores, ipads. Não fizeram nenhum outro tipo de apreensão”, afirmou Aprá à LatAm Journalism Review (LJR). “Foi uma operação para tentar descobrir minhas fontes. Jamais imaginei que dariam essa escalada absurda, mas isso é retrato desse cenário de total aparelhamento dos órgãos. Estão acontecendo atrocidades em Mato Grosso”.

Outros dois jornalistas, Enock Cavalcanti e Marco Polo de Freitas Pinheiro, conhecido como Popó Pinheiro, também sofreram com operações em suas casas naquela manhã. As supostas violações dos três, que renderam acusações pelos crimes de calúnia majorada, perseguição majorada e associação criminosa, teria sido reproduzir, no dia 23 de setembro do ano passado, uma reportagem do site Repórter Brasil, de autoria de Daniel Camargos e Daniel Haidar, noticiando que, mesmo sendo sócio de uma mineradora, o desembargador Orlando de Almeida Perri, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJ-MT), atuou em um julgamento relacionado ao setor mineral no estado.

A Polícia Civil fez um pedido à Justiça de mandados de prisão preventiva contra Aprá, de remoção de conteúdo, de busca e apreensão domiciliar e de quebra de sigilo dos aparelhos eletrônicos apreendidos dos três jornalistas. O pedido de prisão foi negado pela Justiça, mas os outros requerimentos foram atendidos.

Os processos, que foram criticados pelas principais organizações de defesa da liberdade de expressão do Brasil, são exemplos do que enfrentam jornalistas que publicaram notícias desfavoráveis a Mendes. Há informações sobre 18 jornalistas sendo processados ou investigados após escreverem sobre o governador e seus aliados. 

Governador do Estado do Mato Grosso, Mauro Mendes (Foto: Geraldo Magela/Agência Senado)

Junto a si, dizem os alvos do processo, o governador conta com o apoio das instituições judiciais mato-grossenses.

“Não temos esperança nenhuma nos órgãos locais, porque há um aparelhamento brutal”, disse Aprá. “Há uma promiscuidade muito grande entre os poderes, e Mauro Mendes está movendo mundos para nos calar”.

Enquanto isso, o governador se diz vítima de calúnia e difamação, e que tem o direito de buscar a Justiça. A Polícia Civil afirmou que o processo está em sigilo e que coletou elementos que mostram uma ação coordenada para a "fabricação e disseminação de fake news e arquivos digitais". Já o Ministério Público de Mato Grosso, que deu parecer favorável às ações policiais, que o sigilo da investigação visa não prejudicar o seu andamento, e que as ações não prejudicam a liberdade de expressão ou o direito ao sigilo de fonte. 

Na quarta-feira (6 de março) o Supremo Tribunal Federal (STF) deferiu uma liminar relacionada ao caso de busca e apreensão do equipamento eletrônico dos jornalistas, e suspendeu a decisão da Justiça do Mato Grosso. Na liminar, a relatora Cármen Lúcia cita a inconstitucionalidade da censura prévia, a impossibilidade de os jornalistas trabalharem após terem os seus materiais apreendidos e a violação do sigilo de fonte como motivos. 

'Chuva de processos'

O caso de Aprá é emblemático dos tormentos judiciais que jornalistas em Mato Grosso estão enfrentando. 

A hostilidade de Mendes contra ele, relata o jornalista, começou ainda em 2013, quando o agora governador cumpria o primeiro ano de seu mandato como prefeito de Cuiabá.

“Quando ele era prefeito, nas primeiras matérias em que fiz, já percebi a animosidade. No primeiro ano, escrevi uma matéria sobre uma licitação para uma locação de maquinário que um sócio dele ganhou. Logo depois, ele me xingou em uma coletiva”, afirmou Aprá. “Foi um trem doido. Percebi que ele não aceitava ser questionado”. 

Homem sentado em frente a computador com mãos sobre teclado

Jornalista Alexandre Aprá, cuja prisão foi pedida por delegacia de Mato Grosso. O pedido foi negado pela Justiça (Foto: Reprodução/Acervo Pessoal)

A partir daí, disse Aprá, ele começou a receber “uma chuva de processos”. 

“Acho que atualmente são uns 15 processos por parte do governador, seus parentes e secretários”, disse Aprá.

Em 2020, Aprá foi condenado por calúnia por uma reportagem publicada em fevereiro de 2016. No texto, o jornalista afirmou que uma auditoria independente apontava que o governador e a primeira-dama teriam supostamente transferido R$ 23 milhões para terceiros e fraudado o processo de recuperação judicial da Bipar, uma empresa de sua propriedade, lesando credores. Aprá começou a cumprir a pena em junho de 2023, com pagamento mensal de uma indenização.

Aprá disse que Mendes tentou silenciá-lo não só por meio da Justiça. Um exemplo chamativo do que vive o jornalista ocorreu em 2021 e ganhou o apelido de “Caso Detetive”.

Em junho daquele ano, Aprá escreveu uma nota numa coluna do site Isso é Notícia sobre uma postagem de 2019 no Instagram da primeira-dama do estado, Virgínia Mendes, na qual ela mostrou uma foto de um anel e um agradecimento ao publicitário Ziad Fares

A partir dali, relata Aprá, ele começou a ser perseguido pelo detetive particular Ivancury Barbosa. Sem saber que estava sendo filmado, o detetive foi filmado instalando um rastreador no carro de Aprá. Conforme noticiado na época, em gravações de áudio com um interlocutor a serviço de Aprá, o detetive afirmou que foi contratado indiretamente para fazer o serviço para a primeira-dama do Mato Grosso, e disse que pretendia forjar um flagrante no qual o jornalista seria preso com traficantes de drogas ou com adolescentes em um motel.

Aprá entregou as provas à Polícia Federal e deixou o estado na ocasião, temendo por sua vida. O caso foi encerrado em abril de 2022 pela Polícia Civil do Mato Grosso sem indiciamento dos suspeitos. 

Desde setembro de 2021, o Caso Detetive estava sob os cuidados da Delegacia Especializada de Repressão a Crimes Informáticos (DRCI). 

A delegacia está no coração das denúncias de perseguição feitas pelos jornalistas. Segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e o Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso, 15 processos contra jornalistas em 2023 passaram pela delegacia.

“Mendes adota sempre a mesma estratégia: ele registra o boletim de ocorrência e direciona os casos para a Delegacia de Repressão de Crimes Informáticos, criada por ele sob a justificativa de combater fraude e fake news. Mas na verdade virou uma polícia política”, afirmou Aprá. “Todas as demandas do governador vão para essa delegacia, e o delegado fazia uma investigação absolutamente tendenciosa para favorecer o governador, no sentido de se perseguir jornalistas que desagradaram o governador”.

O advogado de alguns dos jornalistas afirma que, em termos de procedimentos, os expedientes judiciais adotados contrariam a prática usual de crimes contra a honra.

De acordo com o advogado André Matheus, que atua pela Rede de Proteção de Jornalistas e Comunicadores e representa seis dos jornalistas processados, no caso dos crimes contra a honra, categoria na qual estão incluídos os casos de calúnia e difamação, quando alguém se sente injuriado, a pessoa em geral vai em uma delegacia próxima qualquer. Essa, então, envia o caso para um juizado, que promove uma audiência de conciliação, antes da abertura de uma queixa-crime – um tipo de denúncia mais séria.

“Crimes contra a honra não são investigados em delegacias desde 1995”, afirmou Matheus à LJR. “Mas eles [Mauro Mendes e seus advogados] estão colocando outros tipos penais para justificar a ida à DRCI e aumentar a gravidade, como associação criminosa e stalking. Mas escrever uma matéria não configura stalking”. 

Segundo Matheus, as DRCIs, delegacias especializadas em crimes informáticos que se tornaram mais comuns no Brasil, são pensadas para combater “grandes crimes, como extorsão ou estelionato, e não crimes contra a honra”.

Pedido de indenização milionária

Outro jornalista investigado pela DRCI foi Pablo Rodrigo

Segundo relatou à LJR, a animosidade de Mendes contra o jornalista começou em 2019, quando ele estava em seu primeiro ano como governador. O incômodo piorou em 2020, disse Rodrigo, quando ele escreveu com Lázaro Thor Borges uma matéria para o site Congresso em Foco na qual citava uma delação da Operação Lava Jato que mencionava um suposto pagamento de propina para Mendes em 2012.

“Depois dessa matéria, ele começou a ficar mais incomodado”, afirmou Rodrigo.

A situação, relata o jornalista, piorou em julho de 2023, quando publicou no jornal Gazeta Digital que o filho de Mendes, Luis Antônio Taveira Mendes, era um dos empresários investigados pela Polícia Federal por suposta compra de mercúrio sem autorização legal para usar em garimpos nos Estados de Mato Grosso e Pará. 

 

O jornalista Pablo Rodrigo e o governador de Mato Grosso, Mauro Mendes (Foto:Rogério Florentino/ OD)

Quatro dias após a publicação, em 13 de julho de 2023, o governador e seu filho ingressaram com uma ação criminal contra o jornalista e o veículo de imprensa que publicou a matéria. Na ação, eles pediram censura da matéria; retratação pública; pedido de desculpas; condenação dos réus, pagamento de indenização por danos morais fixados em R$ 660 mil, além de honorários de sucumbência, custas processuais, e juros de 1% ao mês a serem aplicados desde a data da publicação da matéria. 

Com os juros, atualmente a ação já está em mais de R$1 milhão, afirma Rodrigo. 

“Usaram o argumento de fake news, considerado um crime de informática, para ajuizar lá. Mas como uma reportagem publicada em um jornal pode ser um crime virtual?”, afirmou Rodrigo. “Estão tentando criminalizar o jornalismo profissional”.

Documentos judiciais confirmam a investigação, embora não especifiquem detalhes do caso.

Rodrigo também disse que recebe recados “de terceiros” de que pode vir a ter um flagrante forjado contra si, como por exemplo uma apreensão com drogas.

“Chegam muitos recados. Isso prejudica a nossa profissão, inclusive nas relações com as fontes. Há pessoas que falam ‘o cara está sendo grampeado, monitorado’”, disse Rodrigo.

O maior prejuízo, todavia, é no âmbito pessoal.

“Minha preocupação maior é por conta da minha esposa e do meu filho. Há uma tentativa de linchamento moral. Me dizem que vou sofrer uma busca e apreensão, que serei preso. Imagine seu filho de 13 anos vendo na imprensa que o pai jornalista mentiu”, afirmou Rodrigo.

Em sua defesa, o jornalista conseguiu uma prova substancial: em novembro, a Polícia Federal divulgou que investigava duas empresas nas quais o filho de Mendes é sócio por comércio ilegal de mercúrio, usado para extração de ouro na Amazônia. A investigação está em andamento.

Represália a opiniões

No caso de Enock Cavalcanti, um texto de opinião motivou um processo por associação criminosa, um pedido de prisão e uma batida da Polícia Civil em sua casa.

Em seu blog “Página do Enock”, o jornalista de 70 anos escreve artigos sobre a política nacional e local. Ele reproduziu o texto da Repórter Brasil, inserindo comentários antes de colá-lo dizendo que as denúncias mereciam investigação, contou Cavalcanti à LJR.

“O desembargador Orlando Perri sempre teve projeção no Mato Grosso atuando como desembargador que combatia a corrupção, jamais tivemos informação de que atuasse na área da mineração”, afirmou Cavalcanti. “Pedimos explicações a Perri, porque seu nome de jurisconsulto apareceu em uma área cercada de muitas denúncias. No Mato Grosso, o garimpo frequenta mais as páginas policiais do que a Economia”. 

Segundo o pedido de busca e apreensão, o crime de Cavalcanti foi “sugerir, ainda que indiretamente, que há tratativas ilícitas” entre Mendes e Perri, em um texto atualmente indisponível após ordem da Justiça,A Polícia Civil argumenta que o jornalista escreveu frases como “Perri deve urgentes explicações à sociedade” e que os dois podem estar “imbricados na exploração dos ricos filões minerais em Mato Grosso”.

No dia 6 de fevereiro, às 5h40, seis policiais civis apareceram para apreender seu celular e seu laptop, contou Cavalcanti. Segundo o jornalista, ele então não sabia qual acusação motivava a operação de busca e apreensão, e demorou horas até descobrir. 

O “maior absurdo” do caso, segundo ele, foi o uso do aparato policial em vez de uma ação privada.

“O absurdo não é um governador questionar jornalista, mas questionar jornalista usando a estrutura do Estado. Mauro Mendes, em vez de fazer ação privada questionando, usou seis policiais para invadir a casa de um jornalista de 70 anos que deveria ser tratado com maior respeito”, disse Cavalcanti.

Uma das queixas do jornalista é a pouca repercussão nacional e local do caso.

“Nós somos uma periferia do Brasil, e quem é que olha as periferias do Brasil? Em todos os estados, o principal anunciante na maioria dos casos é o poder público. Ele detém o caixa, e com isso, controla quase todas as redações”, disse Cavalcanti. 

Na mesma ação policial, o terceiro alvo foi Popó Pinheiro, que é diretor do site gw100.com.br e irmão do prefeito de Cuiabá e rival político de Mendes, Emanuel Pinheiro. Neste caso, a polícia alega que ele teria compartilhado o link para a matéria em um grupo de Whatsapp. No pedido feito pela Polícia Civil, consta apenas um printscreen de uma notícia compartilhada em um grupo de Whatsapp por Pinheiro, com o texto “Essa notícia está nos dez mais vistos do UOL”.

Cortes publicitários

Há ainda denúncias de sanções extra-judiciais. 

O site VG Notícias, baseado em Várzea Grande e um dos quatro mais acessados no estado, alega ter tido verbas publicitárias cortadas de modo injusto. 

Os problemas começaram, segundo a sua proprietária, Edina Araújo, quando a sua chefe de redação publicou uma crítica ao casamento de Mendes no Instagram da primeira-dama.

“Num sábado pela manhã, não sei por que, uma das nossas funcionárias resolveu entrar no Instagram da primeira-dama e escreveu ‘casamento forçado’, com emojizinhos de nojo”, afirmou Araújo à LJR.

Logo o veículo viu sua verba publicitária do estado secar, disse Araújo.

Depois disso, segundo Araújo, o governo do estado começou a não mais responder a pedidos de informação.

“Depois disso começaram a nos perseguir. A gente faz questionamentos de acordo com a Lei de Acesso à Informação. Eles não respondem. Solicitamos a versão dos fatos de outras partes envolvidas, e não respondem. Isso nos deixa vulneráveis, pois há o risco de sermos acusados de não buscar o contraditório, mesmo tendo feito esforços para tal”, disse Araújo.

Araújo disse também que, após noticiar a investigação relacionada à suposta compra ilegal de mercúrio com empresas ligadas ao filho do governador, acabou envolvida na investigação da DRCI.

“Nós não espalhamos fake news, pelo contrário, somos um veículo muito responsável. No entanto, torna-se inviável operar em um estado governado dessa maneira, onde jornalistas temem fazer perguntas”, disse Araújo.

Além dos jornalistas citados acima, há ainda 13 outros que enfrentam ações após publicarem sobre  Mendes e seus aliados, segundo contas da Fenaj: Victor Nunes, João Dorileo Leal, Maria Luiza Nogueira, Janice Ortis Ramos, Edivaldo de Sá Teixeira, Rodrigo Gomes Vieira, João Adevilson de Souza, Marcos Fabiano Peres Sales, Ari Dorneles Pereira, Haroldo de Arruda Júnior, Ulisses Lálio Pereira Barros, Daniel Pettengill e Hevandro Peres Soares.

STF intervém

Na quarta-feira, após um pedido de liminar feito pela defesa dos acusados na segunda-feira, a ministra Cármen Lúcia, do STF, suspendeuo a decisão judicial que fundamentou a operação de busca e apreensão, a quebra do sigilo e a remoção dos conteúdos.

Na liminar, além de sustar completamente a decisão proferida contra Aprá, Cavalcanti e Pinheiro, Lúcia critica o cerceamento judicial à imprensa.

“Para além do cerceamento à liberdade de imprensa se tem na espécie – pelo menos do relato inicial do quadro fático e processual feito pelo reclamante – o impedimento de sua atuação profissional pela busca e apreensão de aparelhos vinculados à sua conduta profissional. E ainda mais do que isso, os aparelhos que teriam sido apreendidos poderiam revelar fontes, em outra contrariedade ao sistema constitucional”, afirma a liminar.

Lúcia também fez uma defesa da liberdade de imprensa

“Ao determinar o juízo a busca e apreensão de computadores e celulares de jornalistas e impor a supressão de matéria de conteúdo jornalístico e informacional, pode-se frustrar o direito à liberdade de imprensa e de expressão, inibindo-se atividade essencial à democracia, como é o desempenho jornalístico político e investigativo”, diz o texto.

Com a decisão, segundo André Matheus, os textos que foram tirados do ar devem ser republicados, e os equipamentos eletrônicos apreendidos devolvidos. Segundo ele, os celulares foram devolvidos na noite de sexta-feira (8 de março), e a previsão é que os computadores o sejam na segunda-feira. O advogado considera a decisão de Lúcia “paradigmática”.

“O caso vai servir de paradigma para outros casos que tentarem violar sigilo da fonte”, disse Matheus.

A coordenadora de incidência da Repórter Sem Fronteiras na América Latina, Bia Barbosa, disse à LJR considerar a liminar “mais uma ação do STF em defesa das garantias não apenas constitucionais, mas democráticas, e do exercício da liberdade de imprensa e do jornalismo no país.

Barbosa afirmou que “há na liminar uma compreensão bastante ampla de que a busca e apreensão e a existência de um inquérito geram cerceamento da liberdade, impedem e constrangem jornalistas. Na decisão, Lúcia afirma que a imprensa muitas vezes trata o que governos ocultam. Ela tem compreensão ampla da importância estratégica do jornalismo para a democracia”.

Antes da decisão, oito entidades de defesa da liberdade de imprensa, entre elas a Fenaj, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a Repórteres Sem Fronteiras, a Artigo 19 e o Instituto Vladimir Herzog publicaram uma nota crítica à operação contra Aprá, Cavalcanti e Pinheiro, a classificando como “uma grave violação à liberdade de imprensa”. 

No dia 1.º de março, o caso foi analisado pelo Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores Sociais em audiência em Brasília. Em novembro do ano passado, a Fenaj e o Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso pediram à Procuradoria Geral da República (PGR) intervenção federal no Estado e o afastamento do governador Mendes por conta dos recorrentes ataques ao livre exercício do jornalismo.

Um grupo de cinco homens e uma mulher olhando frontalmente para a câmera em um corredor

Comitiva de jornalistas do Mato Grosso antes da audiência do Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores Sociais do Ministério da Justiça em Brasília; ao centro, o secretário nacional de Justiça, Jean Uema (Foto: Sindjor/MT)

 

O Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso está atuando em quatro dos 18 casos. O presidente do sindicato, Itamar Perenha, disse acreditar que o objetivo com a apreensão dos celulares e computadores de Aprá, Cavalcante e Pinheiro fosse descobrir as fontes dos jornalistas.

“Quando se quebra o sigilo, se está chegando a todas as fontes do jornalismo. Ninguém usa um telefone e joga fora como criminosos. Jornalistas têm direito a usar sigilo da fonte”, disse Perenha à LJR.

O jornalista critica em especial a imputação de associação criminosa, que considera ter sido usada para justificar o pedido de prisão negado pela Justiça.

“É preciso ter o mínimo de elementos contextuais para se tentar justificar a abertura do inquérito com o crime de associação criminosa. É preciso ter um chefe, cada um com um papel. Se não, não é associação, mas bagunça. Não houve nada para justificar isso. Apropriaram-se de um tipo penal para fazer inquérito em outros casos”, afirmou. 

O advogado Matheus também critica o uso da expressão fake news em investigações para silenciar jornalistas.

“No passado recente, teve muita gente propagando fake news no Brasil. Mas hoje estão usando uma jurisprudência defensiva para censurar jornalistas que estão narrando a verdade”, disse. 

Outros lados

Em sua decisão, a ministra Cármen Lúcia deu um prazo de 48h para o Núcleo de Inquéritos Policiais do Poder Judiciário de Mato Grosso dar informações sobre o caso. Procurado pela LJR, o órgão disse apenas que os autos do processo são sigilosos e não irá comentar o caso com a imprensa.

A LJR consultou o Gabinete de Mauro Mendes sobre acusações de abuso do setor público e perseguição a jornalistas antes da recente decisão do STF de conceder a liminar. O Gabinete se limitou a dizer em nota que “assim como qualquer cidadão, o governador tem o direito de buscar as autoridades competentes quando é vítima de crimes sistemáticos de calúnia e difamação”.

A Polícia Civil afirmou em nota anterior à intervenção do STF que as investigações “para apurar a conduta de uma suposta associação criminosa, responsável pela fabricação e disseminação de fake news e arquivos digitais, seguem em andamento”.

Sobre quais elementos haveria para imputar os crimes aos jornalistas, a Polícia Civil disse que os questionamentos estão “no bojo do inquérito policial, que segue sob sigilo, não podendo ser passadas mais informações até a conclusão dos trabalhos”.

Ainda segundo o órgão, “nas investigações são realizadas inúmeras diligências, como oitiva de testemunhas, e a análise de materiais coletados e apreendidos. Durante as apurações foram colhidos inúmeros elementos informativos que possibilitaram estabelecer a conexão e coordenação entre os investigados”.

A Polícia Civil disse também que “todas as ações realizadas até o momento foram analisadas e obtiveram parecer favorável do Ministério Público e deferimento do Poder Judiciário. Todos os requerimentos feitos ao Judiciário estão fundamentados nos autos com a indicação das possíveis infrações penais”.

A Polícia Civil disse ainda que “finalizará as investigações e encaminhará ao Ministério Público Estadual e do Poder Judiciário para apreciação dos elementos apurados e responsabilização dos investigados. Como previsto no ordenamento jurídico brasileiro, os atos de Polícia Judiciária Civil são fiscalizados pelo Ministério Público Estadual”.

Procurado, o Ministério Público Estadual (MPE) de Mato Grosso disse em resposta por escrito anterior à decisão do STF que as “medidas de busca e apreensão se deram por requerimento subscrito pela Autoridade Policial e com manifestação favorável do Ministério Público com fundamento legal no artigo 240 do Código de Processo Penal, que autoriza a medida a fim de que se possa colher elementos de convicção importantes à investigação, elementos de convicção estes que não poderiam ser colhidos por outros meios”.

Questionado sobre a necessidade e propósito de quebrar sigilo de jornalistas, o órgão afirmou que “os indícios encontrados não podem ser, POR ORA, divulgados, porque as investigações estão sob sigilo. Porém, o que se pode afirmar, com certeza, é que as buscas e apreensões se destinaram a colaborar com a colheita de informações imprescindíveis, que não poderiam ser obtidas de outra maneira, tais como mensagens eletrônicas enviadas e recebidas via e-mail ou através do aplicativo Whatsapp”.

Segundo o órgão, “a intenção da medida de busca e apreensão jamais foi (e nunca será) ofender o princípio constitucional do resguardo do sigilo da fonte; até porque o Ministério Público não compactua com nenhum ato inconstitucional, principalmente atos atentatórios aos direitos e garantias fundamentais, como é o caso do sigilo da fonte”.

O MPE afirmou ainda que “o sigilo em medidas de busca e apreensão é decretado quando a divulgação das informações possa prejudicar o andamento das investigações, ante a possibilidade de desaparecimento de provas. Contudo, é imperioso lembrar que o Ministério Público é instituição incumbida constitucionalmente da defesa do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, por conseguinte, da livre manifestação do pensamento, não compactuando com atos de censura”.

O Ministério Público acrescentou ainda que atua “em cada caso concreto com zelo e destemor, de modo que, quaisquer tentativas de intimidar ou silenciar as atividades profissionais, notadamente as atreladas à liberdade de expressão, serão imediatamente repudiadas”.

Finalmente, o órgão disse que, “de acordo com a lei brasileira, a investigação criminal é atividade exclusiva da Polícia Judiciária Civil, porém, a parte investigada tem acesso ao teor da investigação e, quando houver sido decretado o sigilo, esta situação é sempre temporária, porque todo cidadão investigado tem o direito de contrapor as provas produzidas contra si e de se defender na Polícia, como também judicialmente, já que a Constituição Federal lhe dá direito a ampla defesa e ao contraditório”.

Próximos passos

Após o Núcleo de Inquéritos Policiais (Nipo) do Poder Judiciário de Mato Grosso se manifestar, um desembargador pode contestar a decisão do STF. Ainda deve demorar no mínimo algumas semanas até uma decisão definitiva do Supremo Tribunal sobre o caso da busca e apreensão.

Em relação ao conjunto de casos, André Matheus disse esperar a absolvição dos jornalistas, porque a jurisprudência do tribunal costuma ser a favor da liberdade de imprensa. 

“O STF tem um entendimento muito consolidado da liberdade de imprensa desde a ADPF-130, de 2009, quando não foi sancionada a Lei de Imprensa”, afirmou o advogado.

Até isso acontecer, no entanto, os jornalistas precisam lidar com os ônus de serem acusados, com fontes que não querem falar, com o temor e o desgaste. O processo, no caso, já é uma forma de castigo.

“Passo o dia indo atrás de advogado, respondendo a processos, indo a audiências. Minha vida virou isso”, disse Aprá.

Regras para republicação

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