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Como jornalistas de Bolívia, Colômbia e México combatem opacidade e desinformação para cobrir crise hídrica

Quando os jornalistas Jennifer González e Alejandro Melgoza, da N+ Focus, a unidade de jornalismo investigativo da rede Televisa do México, produziram o especial multimídia "Ciudad sin agua, un pueblo contra el gigante de concreto" (“Cidade sem água, uma cidade contra o gigante de concreto”), eles perceberam o quanto as concessões de água da Cidade do México beneficiam empresas privadas, apesar de as leis mexicanas determinarem que esse recurso natural é um bem nacional.

O especial, publicado em maio de 2023 e vencedor do Prêmio Ortega y Gasset deste ano na categoria de Melhor Cobertura Multimídia, conta a história da luta dos habitantes de Xoco, uma cidade indígena na Cidade do México que, nos últimos anos, foi encurralada por um complexo imobiliário de arranha-céus e shopping centers que monopolizou a água e outros recursos naturais da região.

O sistema de concessão de água do México foi projetado para que somente aqueles com mais recursos econômicos possam extrair e administrar a água, disse González à LatAm Journalism Review (LJR). Isso fez com que as concessões fossem monopolizadas por setores como o imobiliário, o de alimentos e o de refrigerantes, entre outros.

"A legislação foi criada para que a água seja gerenciada dessa forma", disse González. "Essas reservas de energia estão sendo criadas por meio da administração da água, quando ela deveria ser um bem nacional e deveria ser priorizada para alimentos, uso humano e doméstico.”

Screenshot of N+ Focus' multimedia report "City without water, a town against the concrete giant".

O especial, publicado em maio de 2023, e vencedor do Prêmio Ortega y Gasset deste ano na categoria de Melhor Cobertura Multimídiaa. (Foto: Captura de tela do site da N+ Focus)

 

 

Para os jornalistas, essas condições implicam em vários obstáculos ao acesso à informação, disse ela. Para conduzir sua investigação, a equipe do N+ Focus solicitou dados sobre o consumo de água a vários órgãos públicos por meio da Lei de Transparência e Acesso à Informação do México.

Em vários casos, as instituições responderam que não poderiam fornecer determinadas informações porque elas estavam protegidas por sigilo fiscal, pois envolviam entidades privadas. O complexo imobiliário investigado no relatório é de propriedade de um fundo fiduciário administrado por instituições bancárias.

"O fato de a água, os recursos e o território serem administrados como bens privados está impedindo o acesso a informações que deveriam ser públicas", disse González. "Acho que esse é um obstáculo que estará cada vez mais presente em investigações como esta.”

Assim como González e Melgoza, outros jornalistas que investigaram a crise hídrica na América Latina enfrentaram obstáculos para acessar informações, seja devido à opacidade das autoridades ou a sistemas de transparência deficientes. Eles também tiveram que lidar com a desinformação cada vez mais predominante sobre questões relacionadas às mudanças climáticas.

O jornalista ambiental Iván Paredes, da Bolívia, também enfrenta constantemente obstáculos ao acesso a informações em suas investigações sobre a crise da água e de outros recursos naturais. Paredes disse que os mecanismos de transparência em seu país são muito limitados e ineficientes. As autoridades, segundo ele, geralmente respondem quando veem o trabalho jornalístico publicado, e geralmente apenas para pedir um direito de resposta.

"Você pode apelar [às autoridades ambientais] verbalmente, por telefonema, ou procurar a autoridade para obter informações, enviar uma solicitação oficial por carta, e-mail... e eles geralmente não respondem", disse Paredes à LJR. “Você publica a reportagem e diz que foi feita uma tentativa de procurar a autoridade e ela não respondeu. Essa autoridade procura a mídia em busca do direito de resposta porque foi afetada pelo problema. Então você recebe informações que talvez pudessem ter enriquecido ou equilibrado a reportagem, mas já existe um vazio.”

Mas Paredes, que em março deste ano publicou a reportagem “Estrategias para la vida: comunidades indígenas en la Amazonía boliviana luchan contra las sequías e inundaciones” ("Estratégias para a vida: comunidades indígenas da Amazônia boliviana lutam contra secas e inundações") no meio digital Mongabay Latam, encontrou uma estratégia que facilita um pouco o acesso às informações públicas: realizar cafés da manhã de trabalho com autoridades do Ministério do Meio Ambiente.

Nessas reuniões, ele disse, pode apresentar aos funcionários um guia de temas nos quais planeja trabalhar para ver se podem fornecer informações sobre eles.

"Não fazemos nenhum acordo, mas pelo menos damos a eles uma agenda para que as autoridades do Ministério possam oferecer informações públicas", explicou. "Esse acesso a informações públicas deve fazer parte do nosso trabalho e do trabalho deles."

Eliminando a desinformação sobre a água

desinformação e a informação incorreta sobre as mudanças climáticas são problemas que já estão disseminados em todo o mundo e se tornaram grandes obstáculos na luta contra a crise climática, de acordo com a coalizão global Climate Action Against Disinformation (CAAD).

Na América Latina, alguns políticos e seus apoiadores têm sido apontados nos últimos anos como responsáveis pela disseminação de desinformação sobre a emergência climática, de acordo com o estudo “Misinforming Latin America: narrative analysis of extreme weather in Brazil, Chile and Peru” (“Desinformando a América Latina: análise narrativa do clima extremo em Brasil, Chile e Peru”), produzido em 2023 pelo CAAD e outras organizações.

"Tentam desinformar culpando, neste caso aqui na Bolívia, o capitalismo, os Estados Unidos, os países europeus, de que eles são os culpados por essa crise e que, por causa deles, estamos em má situação", disse Paredes. “Nós [jornalistas] estamos tentando mostrar que esse não é o caso. Com nosso trabalho, estamos mostrando que a mudança climática é um fator para o qual todos nós contribuímos, muito ou pouco.”

O jornalista disse que, em suas reportagens, tenta mostrar que há fatores impulsionados pelo governo, como a industrialização e algumas políticas públicas, que também contribuem para agravar os efeitos das mudanças climáticas sobre a água.

"Devemos ir ao local e mostrar que estamos em uma mudança climática que avança a passos largos, mostrar histórias de como as pessoas não têm água, histórias de como as pessoas estão consumindo água do rio e como essas pessoas estão ficando doentes com cólera, mostrar que essas pessoas estão sofrendo com a seca", disse Paredes. "Isso não é culpa apenas da mudança climática, é preciso que haja políticas de prevenção antes que algo aconteça.”

A insuficiência de informações também pode contribuir para o surgimento de informações errôneas sobre a questão da água.

O jornalista Edwin Caicedo, do jornal colombiano El Tiempo, observou que havia muito pouca cobertura sobre os páramos, ecossistemas de alta montanha que, naquele país, estão localizados principalmente nas montanhas andinas. Isso ocorre apesar da recente controvérsia sobre a ameaça a esses ecossistemas devido à expansão de indústrias como a mineração e a criação de gado.

Por esse motivo, Caicedo propôs à equipe editorial que fizesse uma reportagem especial sobre os páramos e a importância que eles têm para a água consumida por milhões de colombianos. Foi assim que surgiu a reportagem multimídia “Páramos: altas temperaturas y depredación aceleran su muerte” ("Páramos: altas temperaturas e depredação aceleram sua morte"), publicada em 2023.

"Cada vez mais pessoas sabem que [os páramos] são importantes, mas muitas pessoas não sabem sobre eles, há muitos mitos em torno deles", disse Caicedo à LJR. "Estamos todos ofuscados pelo que está acontecendo na Amazônia [...] mas não somos apenas selva, também somos páramos, e o cuidado com os Andes é fundamental e isso é algo que não está recebendo atenção suficiente no país hoje".

De acordo com Caicedo, a reportagem conseguiu desmistificar alguns dos mitos que cercam os páramos e o impacto que o aumento das temperaturas globais poderia ter sobre sua capacidade de fornecer água aos colombianos.

As vantagens do longo prazo

Os jornalistas consultados concordaram que é necessário realizar longas investigações para reportagens sobre a crise hídrica e outras questões ambientais. Isso se deve não apenas ao fato de permitir uma exploração mais aprofundada das questões ambientais, mas também porque a cobertura de tais questões exige a consulta a documentos que normalmente levam muito tempo para serem acessados.

"Esse tipo de trabalho, de alguma forma, força você a investigar a longo prazo, dado o tempo que a autoridade lhe impõe quando você quer ganhar, por meio de pleitos, documentos através [das leis] da transparência", disse Melgoza à LJR. O jornalista acrescentou que, mais de um ano após a publicação de sua reportagem, algumas agências ainda estão respondendo às suas solicitações de acesso a informações.

Por sua vez, González acredita que a investigação a longo prazo oferece uma oportunidade de explicar a crise hídrica em uma escala maior, e não apenas como casos isolados.

"Para entender a parte sistêmica e a parte complexa, acho que isso deve ser feito com esse tipo de trabalho, a médio e longo prazo", disse ele. "Acho que tem de haver cobertura diária. Sem essa cobertura, um trabalho como esse também não existiria, mas acho que pode ser feito em ambas as velocidades, é muito necessário para a parte analítica e até mesmo para a política pública."

Mas as investigações longas também têm desvantagens. Uma delas é o alto custo que às vezes representam, tanto financeiramente quanto em termos de recursos humanos, mesmo para grandes meios de comunicação como o El Tiempo, disse Caicedo. Isso se deve em parte ao fato de que a questão da água exige que os jornalistas viajem para diferentes regiões para fazer a cobertura, acrescentou.

"O jornalismo que fazemos especificamente tem muito a ver com ir aos lugares, conhecer o que está acontecendo lá para poder reportar", disse Caicedo.  "Houve amplas discussões sobre os recursos e a disponibilidade dos jornalistas, porque um editor permite que um jornalista vá a um páramo por uma semana. Mas nós éramos cinco ou seis na equipe, e fomos a vários páramos várias vezes.”

No entanto, Caicedo acredita que vale a pena investir tempo e recursos em um trabalho de longo prazo sobre questões ambientais devido ao impacto que o formato pode ter. A reportagem do El Tiempo foi reconhecida com o Prêmio de Jornalismo sobre Mudanças Climáticas Ángela Restrepo Moreno, concedido pelo governo de Antioquia, e com o Prêmio Lazos de Sustentabilidade 2023, concedido pela Câmara de Comércio Britânico-Colombiana.

"O especial mostrou como a cobertura ambiental e científica pode gerar fortes impactos em questões de proteção da biodiversidade", disse ele. "Os impactos que esse especial específico teve foram muito grandes e isso mostra como [a reportagem a longo prazo] pode ser relevante em comparação com outros produtos."

5 dicas para cobrir melhor a crise da água

Os jornalistas consultados compartilharam algumas estratégias que outros jornalistas podem implementar para melhorar sua cobertura sobre a água.

  1. A hiperespecialização é fundamental

Menos de 2% da cobertura mensal da mídia na América Latina e no Caribe trata de mudanças climáticas, de acordo com um estudo de 2023. Por esse motivo, Paredes acredita que jornalistas que cobrem o meio ambiente precisam se especializar o máximo possível no assunto.

"Eles [jornalistas ambientais] têm que se tornar muito bem informados sobre o que precisa ser feito. A questão ambiental é muito complexa porque tem vários temas", disse Paredes. "Há muito poucos jornalistas na Bolívia que cobrem questões ambientais. É por isso que temos de ler muito sobre o que está sendo feito lá fora, como se trabalha com dados na área ambiental.”

  1. Os cientistas são aliados

Em questões ambientais como a crise da água, o apoio de cientistas ou especialistas acadêmicos no assunto é essencial para uma boa cobertura, concordaram os jornalistas. De acordo com Paredes, os cientistas ajudam a orientar o jornalista sobre o assunto, servem como uma voz especializada nas reportagens e até abrem caminho para novos temas a serem explorados.

"O que eu faço é entrar em contato com professores de água e recursos hídricos nas universidades", disse ele. "Eles podem alimentar seu trabalho com suas posições e com os dados que manipulam. Dão prestígio à sua reportagem porque você tem uma voz mais especializada para que a população possa entender em profundidade sobre o que você está escrevendo.”

Caicedo disse que, para o especial sobre os páramos colombianos, foram consultados cerca de 30 especialistas nacionais e internacionais sobre esses ecossistemas. Isso, segundo ele, deu mais credibilidade e solidez ao trabalho.

"Ter a presença deles nas reportagens é fundamental para nós porque, sem eles, não podemos falar sobre ciência. A ciência é feita por cientistas, ponto final", disse Caicedo. "É uma regra do meio [no qual ele trabalha] que, se vamos falar sobre um tema científico, deve haver duas ou três fontes científicas para apoiar ou confrontar o que estamos dizendo.

  1. As autoridades podem ajudar

Trabalhar com as autoridades relacionadas ao meio ambiente pode facilitar o acesso às áreas protegidas para fazer trabalho de campo e gerenciar o apoio em questões de segurança, de acordo com Paredes.

Caicedo concordou e disse que, para o trabalho de campo de sua reportagem, sua equipe foi acompanhada pelo Sistema de Parques Nacionais da Colômbia.

  1. Colocando um rosto na crise

A cobertura da crise hídrica deve retratar como ela afeta a vida das comunidades, de acordo com os jornalistas consultados.

"O objetivo dos jornalistas é alcançar e mostrar como eles [as populações afetadas] vivem, viver isso com eles, estar com essas pessoas que sofrem para ter acesso à água", disse Paredes.

Em seu trabalho de campo, González e Melgoza coletaram vários testemunhos de famílias que contaram como a construção do empreendimento estava afetando suas vidas, sua saúde e suas finanças.

"As melhores pessoas para mostrar como essa crise de disponibilidade de água afeta e quem ela afeta são as comunidades e as pessoas que estão sofrendo com isso", disse González. "Isso não significa que você deve simplesmente aceitar o que eles dizem ou acreditar neles sem verificar, mas acho que um dos primeiros passos é sempre ouvi-los e ir a campo para ver com seus próprios olhos como isso os afeta.”

  1. O contexto legal é importante

Em questões de exploração de recursos naturais, é útil conhecer as leis para entender a base jurídica do problema, disse Melgoza.

"Não há como trabalhar nesse tipo de investigação sem entender muito bem a estrutura legal, porque a estrutura legal nos permite entender um sistema", disse ele. “É importante ter um contexto completo das estruturas jurídicas, ter iniciativa para poder entender a lei em torno da questão, estudá-la o máximo possível.”

Foi porque a equipe do N+ Focus entendeu a estrutura jurídica em torno das concessões de água na Cidade do México que eles sabiam que tinham que levar sua investigação aos tribunais de justiça administrativa, não apenas aos tribunais de justiça criminal.

"Olhem para os tribunais administrativos, nem tudo está configurado nos tribunais criminais. Nos tribunais administrativos, vão [casos de] multas contra grandes empresas, grandes empresários. Nos tribunais administrativos, os grandes casos de corrupção são decididos por meio da concessão de licenças de água para favorecer uma empresa", disse Melgoza. "Embora possa parecer enfadonho, isso tem de ser feito. Eu diria que é obrigatório devido à complexidade das questões sistêmicas.”

Traduzido por Carolina de Assis
Regras para republicação

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