texas-moody

Governos na América Latina apertam o cerco contra organizações sem fins lucrativos, sufocando o jornalismo independente

Elas têm nomes diferentes – “Leis sobre Agentes Estrangeiros” ou “Leis de ONG” – e vêm de governos de todo o espectro político, mas organizações de defesa dos direitos humanos têm um objetivo semelhante: asfixiar o trabalho das organizações da sociedade civil. 

Propostas de leis que miram o trabalho de organizações da sociedade civil proliferam na América Latina. Com a justificativa de aumentar a transparência do terceiro setor e proteger a soberania nacional da influência de atores estrangeiros, Paraguai, Peru e Venezuela atualmente discutem leis que interferem nas atividades dessas organizações. Países como Nicarágua, Guatemala, El Salvador e México já aprovaram ou debateram iniciativas análogas.

Essas leis têm o potencial de afetar diretamente o jornalismo. A crise econômica da indústria da mídia levou a um aumento de organizações jornalísticas financiadas por fundações e filantropia internacional. o que é especialmente importante nos casos do jornalismo de interesse público e de organizações independentes. Quando as atividades da sociedade civil são restritas como um todo, jornalistas e veículos de mídia estão entre os alvos potenciais.

"Muitas iniciativas de jornalismo adotaram um modelo de estruturação como organizações sem fins lucrativos, especialmente com a precarização financeira do setor. Dependem de fontes de financiamento internacional e cooperação externa para sobreviver", afirmou Artur Romeu, diretor-executivo da Repórteres Sem Fronteiras (RSF) para a América Latina, à LatAm Journalism Review (LJR).  "Essas leis são criadas justamente para dificultar esse tipo de captação de recursos, o que leva muitas dessas organizações a enfrentarem enormes barreiras para continuar operando”. 

Autoritarismo crescente

A Nicarágua é o país mais avançado em termos de medidas autoritárias para limitar a sociedade civil. Em outubro de 2020, a Assembleia Nacional, controlada por aliados dos ditadores Daniel Ortega e Rosario Murillo, aprovou a chamada “Lei Mordaça” para inibir a atuação de agentes estrangeiros no país. 

Em consequência, cada pessoa, organização ou instituição, incluindo os meios de comunicação social e as organizações não governamentais, precisa estar registrados no Ministério do Interior para atuar no país, sujeitando-se a uma rígida vigilância e a abster-se de intervir em questões, atividades ou temas de política nacional.

A Fundação Violeta Barrios de Chamorro, que trabalhava por uma imprensa livre e independente na Nicarágua, encerrou  as atividades por causa da lei. O setor nicaraguense da Pen International, que também trabalha para defender a liberdade de expressão, também fechou em consequência da lei.

Como foi discutido no último Colóquio Ibero-Americano de Jornalismo Digital, já não há mais jornais independentes atuando dentro da Nicarágua, e profissionais que se arriscam a noticiar com autonoISOJ -17 Coloquio Ibero-Americano de Periodismo Digitalmia enfrentam o exílio e a prisão. As leis autoritárias nicaraguenses não param: em setembro, o país aprovou uma Lei de Crimes Cibernéticos, que limita a atuação de organizações que atuam desde o exílio. 

Na Venezuela, Nicolás Maduro também fecha cada vez mais seu regime. Três semanas depois das eleições de 28 de julho, cujo resultado favorável a Maduro contém fortes indícios de fraude, a Assembleia Nacional aprovou em 15 de agosto, em primeira discussão, o projeto da “Lei de Fiscalização, Regularização, Atuação e Financiamento das ONGs e Afins”.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) alertou que tal legislação, que ainda precisa passar por uma votação final para ser aprovada, restringe o direito de associação, a liberdade de expressão e a participação pública, aprofundando o cerco sobre a sociedade civil. A CIDH criticou o “clima de hostilidade contra as pessoas e organizações que defendem os direitos humanos ou exercem o jornalismo na Venezuela”.

Os meios independentes na Venezuela são altamente dependentes de doações internacionais, já que não têm acesso a recursos provenientes do governo ou de empresas privadas.  

"A lei afetaria principalmente os meios de comunicação independentes. Hoje, muitos sobrevivem graças a essas doações e colaborações", afirmou à LJR Marivi Marín Vázquez, diretora-executiva da organização venezuelana ProBoX VE, que opera no exílio. "O que eles buscam é precisamente limitar a sobrevivência e o crescimento dos meios independentes, que atuam como uma camada adicional de contenção ao autoritarismo."

No Paraguai – país que, segundo a Freedom House, ao contrário dos dois regimes autoritários anteriores, segue sendo uma democracia – o Senado aprovou em julho uma lei com o suposto fim de regulamentar as organizações sem fins lucrativos que recebem fundos públicos e privados de origem nacional ou internacional. As organizações devem ser incluídas em um registro único nacional, fornecer detalhes das atividades que realizam e apresentar relatórios detalhados sobre o uso dos fundos. A lei  ainda precisa passar na Câmara dos Deputados. 

Segundo Ana Piquer,  diretora das Américas na Anistia Internacional, “o projeto de lei pode levar ao silenciamento da sociedade civil e ao desmantelamento de um ambiente que permite à sociedade se manifestar e se organizar diante de atos arbitrários ou omissões por parte das autoridades”.

O Peru, por sua vez, discutiu nos últimos meses seis projetos de leis para controlar a sociedade civil, alegando falta de supervisão e ameaças contra o Estado de direito do setor. Em outras partes da região, em 2021, uma lei de agentes estrangeiros esteve perto de ser aprovada em El Salvador. A Guatemala aprovou em 2020 uma “Lei de ONGs” que outorga ao governo o poder de tirar o registro de ONGs. Em 2022, o México também discutiu uma lei que iri inibir a sociedade civil.

Retrocesso democrático mais amplo

Esse tipo de lei frequentemente busca conferir uma aparência de legalidade a medidas que, na verdade, visam restringir a democracia e a participação da sociedade civil, disse Artur Romeu, da RSF. Ele acrescentou que o impacto das legislações restritivas sobre o espaço cívico e o jornalismo não podem ser considerados isoladamente, mas precisam ser analisados dentro de cada contexto nacional. 

"Para entender onde essas leis são mais perigosas e onde são menos, temos que observar o todo. Não apenas sua existência isolada como ferramenta de controle, mas como parte de uma estrutura maior de deterioração do ambiente democrático", disse Romeu.

Os casos de maior deterioração na região são Nicarágua, onde o regime de Ortega e Murillo cada vez mais se assemelha a uma ditadura dinástica; a Venezuela, onde Maduro controla todos os poderes com apoio dos militares; e El Salvador, onde Nayib Bukele detém o controle pleno do Legislativo.

“Nesses casos, as leis são sintomas de processos já avançados de deterioração democrática. São situações de hermetismo total e absoluto de fechamento a todo tipo de espaço envolvendo a participação da sociedade civil, inclusive da igreja”, disse Romeu. 

Em outras situações, todavia, as leis podem ser iniciativas de grupos minoritários dentro do Congresso, acrescentou Romeu. Nesses casos, os projetos podem acabar passando e se tornarem leis no papel, mas sem fiscalização na prática. Acabam assim sendo menos nocivas prática, servindo para alimentar teorias da conspiração de certos grupos políticos, como a narrativa de que impedem o “globalismo”.

“Isso responde à necessidade de um eleitorado, mas tem pouco impacto”, disse Romeu.

Os argumentos das leis

Há na América Latina uma tendência à redução dos espaços cívicos e das liberdades de expressão e de imprensa independentemente do espectro político daqueles no poder , sejam de esquerda ou direita, afirmou Carlos Cárdenas Angel, gerente regional da ONG sueca ForumCiv. 

“Penso que o que se está a tornar transversal, infelizmente, é a redução dos espaços cívicos independentemente do espectro em que se move a instância de poder vigente num determinado momento”, afirmou à LJR.

Quem é a favor das leis, em geral argumenta agir na defesa da soberania nacional ou na proteção do país contra a corrupção, disse Armando Chaguaceda, professor de Ciência Política no Colégio de Veracruz e pesquisador da ONG Gobierno Y Análisis Político AC, ambos na Cidade do México. 

“Todas essas leis, em maior ou menor grau, baseiam-se no argumento de que essas ONGs ou essas organizações sociais se tornaram espaços de lavagem de dinheiro ou espaços de influência estrangeira nos sistemas políticos e, portanto, devemos restringir isso”, disse Chaguaceda à LJR. .

As leis geralmente restringem três áreas principais: acesso a financiamento, capacidade de organização e incidência, disse Chaguaceda. Há uma circulação de práticas autoritárias, com governos aprendendo uns com os outros como controlar a imprensa e a sociedade civil, acrescentou. 

O pesquisador aponta diversas influências para as legislações: em primeiro lugar, a Rússia, país que adotou uma lei de agentes estrangeiros em 2012 e conta com dezenas de legislações contra a sociedade civil; mas também Cuba, nos casos dos governos de esquerda da Nicarágua e da Venezuela, e a Hungria, do premier conservador Viktor Orbán. 

Uma diferença crucial separa as leis de iniciativas legítimas para regulamentar o terceiro setor e inibir ameaças à soberania nacional: os governos e partidos que promovem as leis não atuam com preocupações em fortalecer a pluralidade própria da democracia, mas antes buscam avançar uma visão única da sociedade, disse Chaguaceda. 

"Em um regime democrático, o Estado e o Governo podem e devem se proteger de, por exemplo, ações de desinformação ou da influência de regimes autoritários que, em seus próprios países, proíbem a autonomia da sociedade civil”, afirmou o pesquisador. “Em contraste, um regime autoritário proíbe tudo, porque tudo que é autônomo ou distinto em geral é adverso a ele".

Romeu, da RSF, afirmou que “é muito simples” perceber que, no caso dessas leis, a visão estratégica avançada “não está acontecendo como uma tentativa legítima do Estado de preservar o pluralismo, a diversidade e a soberania do espaço comunicacional”.  

Se quiserem avançar nessas pautas, os governos não devem inibir o financiamento de atores da sociedade civil, mas sim estimular a promoção do pluralismo por meio de editais públicos e buscar formas de fortalecer o ecossistema de jornalismo local, afirmou. 

“Isso inclui criar mecanismos regulatórios que fortaleçam a expressão nacional e regionalizada dentro de um corpo nacional, garantindo a discussão sobre a representação simbólica do país”, disse Romeu. “Se um governo quiser falar seriamente sobre isso, há muito o que discutir antes de pensar em fechar o espaço público”.

Regras para republicação

Artigos Recentes