O ranking mundial de liberdade de imprensa da ONG Repórteres sem Fronteiras (RSF) confirmou uma tendência percebida na América Latina: uma piora geral nas condições para o exercício do jornalismo no continente. Dos 24 países da região analisados, 19 perderam pontos no levantamento da RSF.
Entre os destaques negativos está a Nicarágua. O país teve a maior perda nominal de pontos segundo os critérios da RSF entre os vizinhos da América Latina e caiu quatro posições no ranking global. A Nicarágua ocupa agora a posição 121, de um total de 180 países. No país presidido desde 2007 por Daniel Ortega, é comum ver jornalistas presos, agredidos e exilados.
A pressão contra a imprensa da Nicarágua aumentou com a aprovação da nova Lei da Mordaça no ano passado, que pune com até oito anos de prisão quem divulgar notícias falsas. Para jornalistas independentes, a legislação legaliza a repressão contra a categoria.
“Com o estado de militarização policial, a legalização da repressão e da censura contra jornalistas e meios de comunicação, a situação se torna mais complexa no contexto eleitoral que deveria ser organizado para novembro de 2021,” disse à LatAm Journalism Review (LJR) a jornalista Ileana Lacayo, membro da comissão executiva da associação de Jornalistas e Comunicadores Independentes da Nicarágua (PCIN, na sigla em espanhol).
Em 2020, a PCIN registrou 1.678 agressões contra a liberdade de imprensa e acesso a informação na Nicarágua. “O jornalismo independente resistiu por mais de uma década à repressão e às estratégias de censura brutal do governo Ortega. Apelamos à solidariedade e colaboração de jornalistas de todo o mundo para denunciar o que está acontecendo na Nicarágua contra a imprensa independente e dissidente,” disse Lacayo.
Também na América Central, El Salvador experimentou uma queda acentuada nos níveis de liberdade de imprensa e perdeu oito posições no ranking da RSF e ocupa a 82ª colocação. É a maior queda da região e a terceira maior do mundo. Desde a posse do presidente Nayib Bukele, no poder desde agosto de 2019, os ataques contra jornalistas salvadorenhos se tornaram motivo de preocupação. O assédio contra a imprensa é liderado pelas autoridades públicas.
Outro destaque negativo no ranking é a Argentina, que caiu cinco lugares e está no 69º lugar. A situação no país é considerada “sensível” de acordo com a RSF. Contribui para esse resultado “um aumento de procedimentos jurídicos abusivos contra a imprensa, geralmente iniciados por políticos ou representantes do Estado,” segundo a RSF.
Um dos casos emblemáticos é do jornalista argentino Daniel Santoro, processado por extorsão, coerção e espionagem num caso em que uma das suas fontes era investigada por esses crimes. Santoro, editor do Clarín, teve o processo revogado em dezembro de 2020, depois de mais de um ano de batalha judicial.
Depois que o ranking da RSF foi divulgado, foi divulgado que Santoro será processado por outro suposto caso de tentativa de extorsão
“Na mesma linha, um juiz solicitou o registro de câmeras de segurança que teriam captado um encontro entre um jornalista e suas fontes, ignorando o sigilo profissional constitucionalmente protegido. Esse desconhecimento do papel jornalístico e da relação do jornalista com suas fontes está presente nas denúncias implícitas no discurso sobre a lei, tese que suscita conluio entre setores da política, justiça e imprensa, que esteve na boca do presidente [Alberto Fernandéz], da vice-presidente [Cristina Kirshner] e referentes dos setores mais difíceis da coalizão governista,” disse à LJR Daniel Dessein, presidente da Comissão de Liberdade de Imprensa da Associação de Entidades Jornalísticas da Argentina (Adepa, na sigla em espanhol).
Também tiveram quedas expressivas no ranking da RSF Haiti, Colômbia e Brasil. Cada um perdeu quatro posições. No caso do Brasil, que já havia caído duas posições no ranking anterior, o país entrou na zona “vermelha” da classificação da RSF, que indica países onde a situação da liberdade de imprensa é “difícil”. É o segundo pior nível classificatório da organização.
“Temos acompanhado casos inéditos de violação à liberdade de imprensa por parte de cidadãos comuns, como agressões, assédio virtual, ameaças e até mesmo uma tentativa de incêndio de uma redação no interior de São Paulo. Atribuímos esses fenômenos ao discurso estigmatizando do presidente Jair Bolsonaro contra a imprensa, que numa estratégia típica do fascismo, tenta jogar sobre jornalistas a pecha de inimigos da pátria,” disse o presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Marcelo Träsel, à LJR.
Outro fato de preocupação no Brasil, segundo Träsel, é a mobilização de agentes do Estado contra a imprensa e outras vozes críticas na sociedade, atrás da Lei de Segurança Nacional. “Mesmo com uma eventual derrota de Bolsonaro em 2022, é possível que a militância de tendências fascistas que hoje apoia o presidente encontre um novo objeto de culto e siga perseguindo jornalistas e violando a liberdade de imprensa. (…) A médio e longo prazo, é necessário identificar e submeter ao Judiciário os responsáveis por crimes contra jornalistas, que historicamente gozam de impunidade no Brasil,” disse Träsel.
COVID-19 contribui para piora da liberdade de imprensa
A RSF ressalta no seu relatório anual que “a crise do coronavírus desempenhou um papel na aceleração da censura na América Latina e criou sérias dificuldades de acesso às informações sobre o manejo da epidemia pelos governos da região”. Segundo a RSF, “essas restrições resultaram em uma deterioração espetacular do indicador ‘Transparência’, que mede as dificuldades dos jornalistas no acesso à informação.”
É o caso de países como Brasil e Venezuela, que omitem dados consolidados sobre casos e mortes de COVID-19. No caso do Brasil, os dados de governos estaduais são compilados e divulgados por um consórcio de veículos de comunicação.
A cobertura independente sobre a pandemia também é alvo de perseguição. Na Argentina, a prefeitura de Quilmes registrou uma queixa criminal contra um jornalista que escreveu sobre o suposto acondicionamento indevido de vacinas contra a COVID-19. Na Guatemala, um jornalista recebeu ameaças de morte após compartilhar a sua experiência pessoal após ter contraído a doença.
“Violações vinculadas a excessos na aplicação dos protocolos de saúde, como os registrados na província de Formosa [Argentina], que afetaram a possibilidade de cobertura jornalística. Rejeição da transferência de fronteiras para jornalistas, campanhas difamatórias contra a mídia que refletiam violações de direitos humanos em centros de isolamento, prisão e violência por parte das forças policiais, discursos agressivos de líderes, etc.”, disse Dessein.
Os profissionais de imprensa na linha de frente da cobertura da pandemia também sofrem com demissões e condições precárias de trabalho e risco de contaminação: a América Latina registra mais de uma morte de jornalista por dia devido à COVID-19.
Os outliers
Apesar da piora geral dos indicadores de liberdade de imprensa na região e da maioria dos países enquadrados em situações longe das ideais, quatro países se destacam no top 20 do ranking global: Uruguai (19º), Uruguai (18º), Jamaica (7º) e Costa Rica (5º).
A Costa Rica chama a atenção positivamente por ter subido duas posições este ano e só ter à sua frente os países nórdicos que lideram o ranking da RSF: Noruega, Finlândia, Suécia e Dinamarca. O país é um outlier entre os seus vizinhos na América Central, onde a situação de jornalistas é muito mais difícil. A Costa Rica supera também, e com folga, os Estados Unidos, que ocupa apenas a 44ª posição no ranking.
Do outro lado, Cuba segue na lanterna, na posição 171 de um total de 180 países. Honduras, Venezuela, México e Colômbia completam as últimas cinco posições entre os países latinoamericanos, onde jornalistas são vítimas também do crime organizado, não raro pagando com a própria vida o preço de atuar com independência.