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Do descrédito à censura: o que acontece quando o poder ataca a imprensa na América Latina

  • Por Suhelis Tejero*
  • 26 março, 2024

O presidente da Argentina, Javier Milei, ordenou o fechamento da agência de notícias estatal Télam há alguns dias, uma medida que parece ser o ponto de partida para o desmantelamento da rede de meios públicos da Argentina, que ele mantém sob intervenção. Perante o Congresso de seu país, o presidente também estigmatizou a imprensa, salientando que ela é o sustento de um sistema "corrupto e podre" do qual a mídia vive graças à "publicidade oficial e aos formadores de opinião comprados que olham para o outro lado ou que escolhem cuidadosamente quem acusar e quem não acusar".

No México, no outro extremo da sub-região, os vazamentos de dados pessoais de jornalistas estiveram no centro das atenções neste ano. Em janeiro, uma aparente invasão do sistema informático do governo revelou os dados pessoais de mais de 300 jornalistas que cobrem a “mañanera", a coletiva de imprensa diária dada pelo presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO).

Como se isso não bastasse, um mês depois, o próprio presidente publicou o número de telefone de Natalie Kitroeff, correspondente do The New York Times no país, que, para completar, é um dos mais perigosos do mundo para se trabalhar como jornalista. AMLO confessou que não foi um erro e que o faria novamente porque, acima do direito à privacidade e à proteção do exercício do jornalismo, há "a autoridade moral, a autoridade política" do presidente.

E recentemente o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, acusou os meios de comunicação RCN e Caracol de "entorpecer a sociedade" e de querer desacreditá-lo.

"Quando alguém liga a TV, não encontra nada além de uma mídia entorpecente que está anestesiando a sociedade colombiana", disse o presidente durante um evento público.

A estratégia de descrédito desde o governo não é nova nem exclusiva de Argentina, Colômbia e México. Outros países, como Cuba, Guatemala, Nicarágua, Venezuela e, mais recentemente, Bolívia e El Salvador, refletem como o poder político pode atacar a mídia de diferentes maneiras até que ela desapareça.

León Hernández, professor do Centro de Pesquisa em Comunicação da Universidade Católica Andrés Bello (UCAB), na Venezuela, não hesita em considerar essas ações como parte de uma estratégia de controle político para gerar medo, "porque onde há medo pode haver autocensura e também censura". Ele adverte que "há uma profunda decadência das estruturas democráticas em nível institucional", o que permitiu que alguns líderes, independentemente de suas tendências políticas, "adotassem uma estratégia de desacreditar a mídia e os jornalistas, com a clara intenção de gerar uma relativização da verdade, de mudar as estruturas de confiança e credibilidade da mídia para afetar o tecido da formação da opinião pública", disse Hernández a CONNECTAS.

O índice de liberdade de imprensa apresentado todos os anos pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) mostra que a sub-região, longe de melhorar seus níveis de liberdade e proteção do jornalismo, ainda enfrenta sérios problemas. O relatório de 2023 indica que praticamente toda a América Latina apresenta situações que variam de simples obstáculos a ameaças realmente graves. Apenas quatro países apresentaram níveis satisfatórios de liberdade de imprensa na América Latina e, curiosamente, um deles foi a Argentina.

Assim que Milei anunciou o fechamento da Télam, Repórteres sem Fronteiras não perdeu tempo e advertiu que o desmantelamento dos meios públicos representa um risco real para o pluralismo na Argentina.

"Trata-se de um duro golpe contra o jornalismo e o direito à informação. Pedimos a suspensão dessa decisão brutal", declarou Artur Romeu, diretor do escritório da RSF na América Latina, em um comunicado publicado há alguns dias.

No país sul-americano, não foi a medida em si que surpreendeu, mas sua virulência. Desde a campanha eleitoral, Milei tem as ameaças contra o sistema de informação pública e os ataques à imprensa como parte fundamental de seu repertório, algo que ele mantém desde que chegou ao poder. A presidente do Fórum de Jornalismo Argentino (Fopea, na sigla em espanhol), Paula Moreno, reconhece que ficou particularmente impressionada com a rapidez com que a agenda do governo contra a mídia avançou.

Ela acrescentou que eles também viram como os ataques do presidente a jornalistas – às vezes com nomes e sobrenomes – provocaram agressões, especialmente na internet. Por esse motivo, ela está particularmente preocupada com o fato de que os insultos oficiais possam levar a "situações impensáveis de violência" para jornalistas, bem como à autocensura e até mesmo à censura. Moreno acredita que o próprio Milei não dimensiona o alcance que pode ter chamar jornalistas de mentirosos ou comprados.

"Devido ao papel que desempenhamos no processo democrático, o jornalismo merece respeito, tanto quanto nossa democracia. Desse ponto de vista, consideramos muito grave a rotulação de jornalistas como comprados ou mentirosos, assim como todas as generalizações. Não há como rebater o que o presidente diz porque a relação é assimétrica", enfatizou Moreno.

Mas se na Argentina está chovendo, no México está fazendo tempestade. Lá, os ataques e os vazamentos oficiais assumem uma conotação ainda mais grave, pois o México já é um dos países mais perigosos do mundo para se trabalhar como jornalista, com 163 jornalistas assassinados e 32 desaparecidos entre 2000 e 2023, de acordo com a Artigo 19, organização internacional de defesa da liberdade de expressão. O controle territorial exercido pelos narcotraficantes em várias regiões, além de sua infiltração nas estruturas públicas, faz com que os crimes contra os profissionais da imprensa permaneçam impunes. Por esse motivo, as campanhas de difamação contra a imprensa que AMLO está realizando na presidência do México pressionam ainda mais uma situação muito complicada.

Pedro Cárdenas, diretor de proteção e defesa da Artigo 19 México, disse que eles observaram que os governos abusam da plataforma pública para estigmatizar jornalistas críticos, que eles classificam como adversários ou inimigos, o que contribui para o clima de violência.

"Embora a violência venha se arrastando desde os governos anteriores, esse tipo de discurso não ajuda a reduzi-la e, pelo contrário, gera um efeito cascata em que agora não apenas a Presidência, mas também autoridades locais e até mesmo atores privados, usam esse discurso para justificar sua violência contra a imprensa, dizendo que [jornalistas] estão sendo pagos por alguma oposição política", disse ele.

Ele garantiu que, por essa razão, nos últimos anos, o nível médio de violência tem se mantido porque os governos não geraram políticas públicas abrangentes para prevenir a violência contra a imprensa e proteger os jornalistas. Cárdenas também alertou sobre os vazamentos de dados de jornalistas e o fato de AMLO justificar sua autoridade política e moral como estando acima da legislação mexicana sobre a proteção de dados pessoais.

O estado da censura

Outros países da região, como Cuba, Nicarágua e Venezuela, têm um histórico muito mais longo de ataques e violações da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. Esses governos autoritários geralmente se cercam de um escudo legal contra o jornalismo, pois isso permite a instauração de processos. Em meados do ano passado, o governo cubano conseguiu algo incrível: reforçou mais de 60 anos de estrutura legal contra a imprensa com a Lei de Comunicação Social, que dá ao governo poderes ainda mais amplos do que os já existentes para controlar ou fechar meios independentes.

Na Venezuela, desde o início, o presidente Hugo Chávez acusou insistentemente a mídia de ter se aliado à oposição e de ser inimiga de sua revolução. Em 2001, a Lei de Conteúdo, posteriormente convertida na Lei de Responsabilidade Social em Rádio e Televisão (Resorte), serviu como base legal para justificar o fechamento de meios.

Com decisões administrativas emitidas por órgãos reguladores de telecomunicações, o governo de Chávez fechou dezenas de estações de rádio e televisão, incluindo a RCTV, em 2007. Desde 2003, quase 300 estações de rádio deixaram de funcionar por ordem do chavismo.

E o atual presidente, Nicolás Maduro, não baixou o tom: grupos próximos ao chavismo compraram a meios independentes, enquanto o governo bloqueia a mídia digital e os canais de televisão estrangeiros. O caso mais recente é o da emissora alemã DW, que não pode mais ser vista na televisão venezuelana por ordem do governo, depois de transmitir uma reportagem criticando o governo Maduro.

Na Nicarágua, o regime de Daniel Ortega também adotou um discurso de ódio contra a imprensa que incluiu prisões, banimentos e exílios forçados, além de censura, fechamento de meios e confiscos. O governo não hesitou em insultar duramente os jornalistas, chamando-os de servos, escravos, aproveitadores, vendidos e mentirosos. Desde 2018, quando eclodiram os protestos que radicalizaram o governo, foram registrados cerca de 1.200 ataques contra a imprensa.

Hernández, da UCAB, ressalta que essas campanhas de difamação têm uma intenção clara: destruir a base de credibilidade da mídia, criando uma sociedade polarizada na qual apenas os extremos são válidos. E o perigo disso, na opinião do comunicólogo, é que o espaço para o entendimento social se romperá.

A Bolívia, desde as sucessivas presidências de Evo Morales, também passou por uma campanha de difamação contra a mídia que não parou sob a atual administração do presidente Luis Arce. As táticas oficiais variaram de insultos à redução do orçamento de publicidade estatal como um mecanismo de pressão política. O governo até produziu um documentário intitulado "El Cartel de la Mentira", como a mídia é chamada pelos que estão no poder. E nem todo mundo é capaz de resistir a isso. Em meados do ano passado, o jornal Página Siete teve que encerrar suas operações depois que um corte na publicidade estatal causou uma grave dificuldade econômica da qual não conseguiu se recuperar.

Mais recentemente, em El Salvador, o presidente Nayib Bukele atacou jornalistas e classificou a mídia como sua inimiga por reportagens críticas sobre os acordos de seu governo com as gangues. Como medida concreta, ele aprovou uma reforma do Código Penal que estabelece penas de prisão de até 15 anos para jornalistas que publicarem informações produzidas por gangues que possam gerar pânico ou ansiedade entre a população.

O grave das campanhas de difamação não é apenas que elas levam a uma redução das liberdades, mas também a um confronto contínuo entre as autoridades e os meios de comunicação. Vários governos latino-americanos que já ultrapassaram os limites do autoritarismo se consolidam como donos da verdade absoluta, a ponto de considerar que aqueles que não seguem seus ditames são traidores da pátria. E outros, que não chegaram a tais extremos, parecem dispostos a brincar com fogo.

Toda semana, a plataforma de jornalismo latino-americano CONNECTAS publica análises dos eventos atuais nas Américas. Se você estiver interessado em ler mais informações como esta, clique neste link.

* Membro do Conselho Editorial da CONNECTAS

Traduzido por Carolina de Assis

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